
Cidades do Futuro-Presente
A inovação e a tecnologia ajudando a construir espaços urbanos inclusivos
Thyago Brandão e André Magno
Com a contínua digitalização do mundo contemporâneo, nos deparamos cada vez mais com novos aparatos tecnológicos dentro do nosso dia a dia. Dos pagamentos por aproximação de cartões à presença das assistentes virtuais, situações que antes pareciam impossíveis ou distantes da humanidade se tornam crescentemente comuns no cotidiano de muitas pessoas. Entre os diversos fenômenos que têm ganhado destaque nos últimos anos se encontram as cidades inteligentes.
Longe da associação que comumente se faz, as “smart cities” ou cidades inteligentes não necessariamente se referem a cidades de estética futurista com luzes neon e carros voadores como sugere a ficção científica. “De maneira resumida, smart city geralmente se refere a cidades ou localidades que utilizam tecnologias de matriz digital”, afirma Guilherme Oliveira, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (PPGCOM/UFS) e pesquisador do Laboratório de Análise de Visualidades, Narrativas e Tecnologias (LAVINT/UFS).
De acordo com ele, através da digitalização de locais – seja a partir de infraestruturas já existentes ou construídas do zero – é possível integrar e interagir com aspectos do ecossistema urbano do lugar, ou seja, saúde, meio ambiente, mobilidade, recursos energéticos e outros. Mecanismos como a sincronização de semáforos, o controle personalizado do consumo energético e o acesso pleno à internet são exemplos de algumas possibilidades das cidades inteligentes.
No Brasil, São Paulo aparece na 100ª posição do ranking de 2020 do Instituto de Desenvolvimento de Gestão (IMD) que avalia e classifica as cidades inteligentes no do mundo. No ranking nacional Connected Smart Cities do mesmo ano, São Paulo, Florianópolis e Curitiba compõem o pódio das cidades brasileiras com o maior potencial de conectividade.
Mapa do Brasil com as cidades mais inovadoras. (Arte: Amanda Batista e Larissa Barros)
Mesmo com a ausência de localidades ao norte brasileiro entre as dez primeiras cidades nesse ranking, o Norte e Nordeste também contam com iniciativas de digitalização e com suas próprias smart cities. É o caso da Smart City Laguna, localizada na zona metropolitana de Fortaleza, no município de São Gonçalo do Amarante do Ceará. Fruto do Grupo Planet, Laguna foi construída a partir do zero e recebeu seus primeiros moradores em 2019.
Entre as Possibilidades e os Riscos das Cidades Inteligentes
“O maior benefício das smart cities está em trazer uma melhor qualidade de vida para as pessoas”, comenta Gilton Ferreira, professor do Departamento de Computação (DCOMP) da UFS.
Ele aponta que atualmente há uma parcela muito grande de pessoas “conectadas” que possuem uma presença digital no ambiente denominado de “ciberespaço”. Nesse contexto, as cidades inteligentes servem como um espaço mediador entre o meio digital e o meio físico, possibilitando interações das pessoas com as smart cities a partir do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

Um dos principais pilares defendidos em favor das cidades inteligentes é sua grande potencialidade gestora. “A grande promessa das smart cities é que você consegue tomar decisões mais assertivas, com maior eficiência, maior produtividade”, comenta Daniel Marques, doutorando da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço (Lab404/UFBA).
Outro fator comumente associado às cidades smart se refere à preservação do meio ambiente e da promoção de uma vida mais sustentável e “verde”. Sara Juliana, geógrafa e analista ambiental, defende que as cidades inteligentes podem colaborar com a inserção da sociedade nas questões ambientais por meio da tecnologia. “O geoprocessamento, como um serviço inteligente, engloba desde uma caracterização geológica até a questão de um uso e ocupação do solo”, ela afirma. Em seu trabalho Sara utiliza o geoprocessamento e a análise de satélites para acompanhar níveis de desmatamento, preservação e impacto em diversas áreas.
Em meio a tantas potencialidades, algumas críticas surgem às cidades inteligentes. Em um mundo cada vez mais hiperconectado e em que o comércio de dados já é uma realidade, há preocupações com relação à privacidade dos dados dos habitantes da smart city. Outro ponto é a crença cega em um solucionismo guiado pelas inovações tecnológicas que essas localidades pretendem incorporar em sua infraestrutura.
Para Guilherme Oliveira, o principal risco seria o apontamento das tecnologias digitais como um trunfo discursivo da promoção da qualidade de vida num local. “Esse processo representa um pouco o que chamo na minha pesquisa de controvérsias, ou seja, soluções que sustentam o argumento de promoção de qualidade de vida propagado pelas smart cities e que ao mesmo tempo suscitam essas disparidades ou abismos sociais”, afirma o pesquisador.
Já para Daniel Marques, o problema se concentra na crença da boa fé das empresas. “Existe essa mitologia, esse imaginário ao redor da tecnologia de que se a gente concede isso para as empresas privadas, e principalmente para as empresas de tecnologia, mágica e automaticamente todos os serviços passarão a funcionar melhor”, adverte o pesquisador. O doutorando também aponta a existência de uma naturalização dos serviços que podem ser oferecidos por empresas responsáveis pelas cidades inteligentes.
“[Estamos] vivendo em uma sociedade em que as pessoas estão menos interessadas em saber os riscos sociais de você ter a privatização e a transformação em dados de uma informação dessa natureza”, argumenta.
Aracaju: Cidade Inteligente?
Na capital sergipana, a pauta da smart city é um tema presente nos planos de governo. O prefeito Edvaldo Nogueira incluiu o tema tanto em sua gestão passada como na gestão atual, tendo como mote de sua governança o slogan “cidade humana, inteligente e criativa” . Logo no início do seu plano de governo de 2020 é possível encontrar a promessa de uma “cidade inteligente e mais inclusiva”, com diversas propostas que dialogam com o tema das smart cities como a adoção de câmeras e softwares para fortalecer a segurança pública e a utilização de inteligência artificial no auxílio à gestão de serviços urbanos.

Mapa de Aracaju, com seu planejamento inicial.
De acordo com o arquiteto e urbanista e vereador aracajuano do partido dos Democratas (DEM), Breno Garibalde, alguns exemplos de inovações tecnológicas já se encontram implantados ou em curso em Aracaju, são eles: a implementação de semáforos inteligentes, a parceria público-privada (PPP) de iluminação pública, a monitorização por câmeras e o uso de aplicativos de colaboração como o “Colab”. Guilherme também menciona a adoção do site e aplicativo “AjuInteligente”, criado durante a primeira gestão de Edvaldo e que permite uma maior desburocratização ao acesso de serviços de diversas secretarias do governo municipal.
Pautando a questão ambiental, Sara Juliana pensa na possibilidade de criação de um aplicativo ou software que promova ações ambientais dos habitantes da cidade por intermédio da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e da Administração Estadual do Meio Ambiente de Sergipe (Adema). “Talvez a disponibilização desses aplicativos, já que a gente tá vivendo uma fase mais tecnológica, poderia trazer uma intervenção muito mais ativa dos cidadãos com relação à preservação e a criação dessas áreas”, ela sugere.
Quando questionado sobre como fortalecer as práticas de smart cities em Aracaju, o vereador Garibalde defende que é preciso que a conscientização sobre o tema comece na educação da população. “Primeiro precisamos pensar numa cidade para as pessoas, educar as pessoas a serem cidadãos e parte da cidade, muito disso precisa acontecer na escola de base”, comenta o vereador. Ele defende que só é possível ter uma cidade inteligente de fato na capital quando a população estiver engajada em melhorar a cidade.
Embora não seja algo comum entre cidades inteligentes, os especialistas ouvidos pelo Contexto são unânimes: os cidadãos devem estar no centro do desenvolvimento das smart cities. “É preciso que o cidadão faça parte do processo desde o começo. As pessoas precisam ser ouvidas e precisam participar também da construção dessa ideia de inteligência; ‘inteligência pra quem? Pro Estado? Pra empresa? Pro cidadão?’”, defende Daniel Marques.
Para Gilton Ferreira, é necessário que, antes de qualquer implementação de serviço inteligente, sejam levantadas quais são as necessidades e demandas da população. Só a partir daí que os projetos urbanos inteligentes devem ser colocados em prática. “O melhor caminho é tornar o cidadão participativo e que de forma colaborativa e ativa possa participar de parcerias público-privadas para a criação de novas soluções para melhorar a qualidade de vida de todos”, afirma.
Já Guilherme Oliveira ressalta que é essencial a participação popular através de gestões públicas participativas e colaborativas, aliadas à transparência na forma como dados gerados por cidadãos dentro das cidades são comunicados e gerenciados. “É preciso pensar que o sujeito/cidadão não se torne um mero produtor de dados, alimentando a base de dados”, diz.
Além disso, o pesquisador defende que, por si só, serviços inteligentes não são o suficiente para resolver problemas complexos das cidades. Para Oliveira, as soluções tecnológicas de resultado rápido oferecidas por empresas podem em alguns casos ofuscar necessidades reais da cidade, o que, segundo ele, vai contra o próprio argumento que sustenta a lógica smart.
“É possível usar tecnologias digitais na gestão [pública], mas, a meu ver, é incompatível, por exemplo, implantar sistemas de monitoramento de tráfego sem investimento em políticas públicas de infraestrutura”, pontua o estudioso.
Não há caminho simples ou fácil para o desenvolvimento de uma cidade inteligente. Problemas urbanos complexos não conseguem ser resolvidos com um simples aplicativo. Porém, com o cidadão no centro das tomadas de decisão, a tecnologia pode ser um grande aliada na vida e serviços urbanos e melhorar a forma como a população habita e se relaciona com a cidade.
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