Por Karla Mota, Raíssa Sousa e Tauã Ferreira
Caminhar pelas ruas do Centro de Aracaju pode até ser desafiador. É preciso saber transitar entre os carros que atravessam as ruas apertadas e entre as pessoas que caminham pelos calçadões. Também é necessário guardar um lugar na bolsa para as dezenas de panfletos que serão oferecidos durante o percurso, além de saber se localizar em meio à sobreposição de vozes e ao acúmulo de estímulos visuais. Todo esse movimento transforma o Centro no que ele é, um lugar onde a vida se aproxima do caos.
Há quem prefira ficar longe dessa bagunça, também existem aqueles que optam por fazer as compras em bairros mais próximos, ou pela internet. Apesar disso, o Centro permanece vivo no vai e vem diário das pessoas acostumadas com a confusão cheia de vida que o faz ser diferente de qualquer outro lugar em Aracaju.
Para descobrir esse universo (caótico) caminhe, olhe para os lados (para cima e para baixo também), cuidado com os carros. E, não importa a hora que esteja passando (é sério), sempre haverá alguém por perto para um “oi”, um “boa tarde”, ou para as famosas chamadas para comprar.
O CENTRO É O COMÉRCIO
São pessoas como o vendedor de água de coco Paulo Henrique Santos, que transformam o Centro no que ele é. Segundo ele, a escolha pelo local, há quase quinze anos, se justificava pela movimentação no Calçadão da Laranjeiras. Sobre suas vendas na região ao longo dos anos, ele relata perdas.
“Quando dá melhorzinho você vende uns 30 a 40 cocos. Antigamente vendia mais, há uns oito anos chegava a vender 70, 80”.
E, ele acredita que um dos fatores para a queda no comércio foi a crise dos últimos anos no país. “Não é à toa que muitas lojas estão fechando”, completa o ambulante.
Do outro lado, e bem próximo dessa realidade, os lojistas, representados pela Fecomércio sentem também os impactos da economia nos últimos anos, principalmente no contexto pandêmico pelo qual o mundo ainda passa. Para lidar com a atual situação, a Fecomércio atende os lojistas através dos seus sindicatos, que são responsáveis por ouvir as queixas, sugestões e necessidades de cada grupo. “Ao repassar as informações para os superiores, essa cadeia produtiva gera ideias e novos projetos para contribuir com o setor em questão”, descreve o presidente da Fecomércio, Marcos Andrade.
Os representantes da Fecomércio atribuem a situação atual às vendas digitais que foram alavancadas durante o auge da pandemia e mantiveram-se em alta, pela redução de custo que representam para os comerciantes. “Quando você tem o online, você vende mais barato e com melhor custo porque não precisa de empregado e não vai gastar com vale alimentação ou vale transporte”, explica Marcos.
O conforto de comprar sem precisar sair de casa e receber o produto na porta, além da segurança de não se expor ao vírus, pode ter sido um dos motivos que afastaram os consumidores do Centro de Aracaju, assim como nos demais centros.
“Em São Paulo não é diferente, você chega no Rio e não é diferente. Sergipe não é uma ilha, Aracaju não é uma ilha, então está dentro desse contexto”, relata Marcos ao comparar o Centro de Aracaju a outras capitais brasileiras.
Apesar da importância comercial, o vice-presidente da Fecomércio, Alex Garcez, acrescenta duas outras dimensões essenciais para compreender as dinâmicas do Centro: a cultura e o turismo. Por esse motivo, em parceria com a prefeitura, a federação busca realizar ações que valorizem o Centro de forma mais ampla, como o Natal Iluminado e o São João na Praça. “Ambas as propostas têm o interesse de chamar atenção de visitantes e moradores locais para as atividades realizadas e, a partir dessa relação com a localidade, incentivar o consumo dos produtos que ela pode oferecer”, detalha Alex Garcez.
O CENTRO É O TRÂNSITO
Em meio ao emaranhado de veículos que tentam encontrar uma vaga na região central, escutam-se, misturadas às buzinas dos carros, vozes de motoristas que gritam pedindo pressa a quem está à frente. “Bora!”. “Anda logo!”. Apesar do esforço, o barulho não permite que a mensagem vá muito longe, apenas quem presta atenção ao redor consegue escutá-la. O estrondoso barulho das buzinas se impõe.
Veículos disputam espaço na estreita Rua José do Prado Franco. Imagem: Karla Mota
O flanelinha Bruno Alexsandro trabalha há dois meses no estacionamento próximo ao Mercado Albano Franco e reconhece que, até para ele e para seus colegas de profissão, o trânsito na região é complicado. Segundo ele, muitas vezes, os motoristas que chegam para estacionar se estressam uns com os outros. Ele conta que, durante a semana, o trânsito é mais tranquilo, tanto que ele consegue parar por um tempinho para conversar. “No final de semana fica aquele trânsito chato, os motoristas têm muita dificuldade para passar por aqui”, relata Bruno.
Apesar de pouco tempo trabalhando como flanelinha, Bruno já trabalhou no mesmo local como vendedor de CDs e de frutas, por isso, está bem familiarizado com essa sinfonia de carros passando pela Rua José do Prado Franco, que liga a Praça dos Mercados ao calçadão da João Pessoa.
O trânsito caótico que se vê nesse local, não é atípico, segue por quase todos os pontos do Centro. Não muito longe de onde Bruno trabalha, por exemplo, especificamente na Rua Apulcro Mota, Tatiane Santos, outra flanelinha, ajuda um motorista a fazer uma baliza.
Tatiane trabalha no Centro de segunda a sábado, que de acordo com a moça é o mais caótico dos dias. Ela conta que, apesar das rondas policiais e da fiscalização, acidentes sempre acontecem. “Tem um povo que não respeita o trânsito, vê o sinal fechado e passa assim mesmo”, relata.
A jovem ainda ressalta que o local anda muito perigoso para quem está de carro ou moto. “Um cara atropelou uma mulher ali, ó!”, ela diz apontando para o semáforo ao lado de uma farmácia na Rua Travessa Hélio Ribeiro. “A mulher vinha passando, uma senhorinha, e o carro estava em alta velocidade, ele não parou e ‘pegou’ ela. Foi um trauma enorme”, comenta Tatiane, ao relembrar o episódio.
Apesar de toda essa movimentação e toda dificuldade do trânsito, o Centro de Aracaju não vive mais o movimento que vivia há anos. “Aqui já foi mais movimentado, agora a gente vê muito carro, mas não vê essa quantidade toda de gente não”, conta a flanelinha, que trabalha no mesmo ponto há oito anos. Sem saber, ela repete o discurso de outros trabalhadores que também sentem, no bolso, o diminuir dos passos, que ocupam a região.
E não é possível culpar os motoristas por levar menos pessoas para consumir ou passear pelas ruas do Centro. Rildo José Campos é motorista de lotação há 30 anos e também compartilha dos impactos sentidos por outros trabalhadores.
Nossa geração, criada com os celulares no rosto e o carro parado na porta, falaria da uberização dos empregos. Mas, com tantos anos de estrada, ou melhor, de vias e ruas de Aracaju, o motorista não culpa os ubers, mas chama a atenção para o desemprego como um problema anterior. “Só existe tanto Uber porque não tem emprego”.
Além dos táxis lotação e dos motoristas de aplicativo, que Rildo menciona, há aqueles que vão ao Centro em carro próprio, esses também sentem dificuldade em transitar e estacionar no local. Para o autônomo Christian Silvestre a solução é estacionar longe do seu destino. “Eu mesmo quando vou para o Centro, deixo o carro ali no estacionamento próximo aos mercados porque ali é mais fácil de achar e vou caminhando até o calçadão, é uma caminhada mais longa, mas é melhor do que ter a dor de cabeça de ter que ficar rodando com o carro”.
Ayala Bastos também menciona a dificuldade em encontrar locais para estacionar seu veículo. "Muitos estacionamentos são caros. Eu já cheguei a pagar 10 reais por 30 minutos", destaca a frequentadora. Em função das dificuldades, tanto Ayala quanto Cristian dizem que, muitas vezes, preferem outras formas de se locomover até ali.
Christian conta que seu meio alternativo é a bicicleta. “Geralmente opto pela bicicleta porque chego no local muito mais rápido e me exercito também. O único problema é que não tem estacionamento para isso, mas deixo em frente à loja enquanto resolvo rapidinho e peço para alguém ficar de olho”, destaca.
Já para Ayala, o meio de trabalho de Rildo José é a segunda alternativa para ir ao Centro. “Muitas vezes vou ao Centro de lotação justamente porque é difícil encontrar estacionamento”, comenta a moça.
O CENTRO É ARTE E CULTURA
Em meio à circulação caótica, em frente à antiga C&A, uma das maiores lojas de departamento do Brasil (e que fechou suas portas recentemente), a vida, a arte e a cultura no Centro encontram um jeito de resistir. Diante da loja fechada, que ainda choca os passantes, é possível encontrar Montanha. O rapaz, natural de São José dos Campos - SP, viajou pelas estradas do Brasil e do mundo por cerca de 22 anos, até chegar em Aracaju, onde há quase oito anos fincou raízes.
Seu comércio é a arte. “Eu sou um cara que vive da arte. Só sei fazer isso aqui, sei fazer outra coisa não”, ele disse. Mas, para além da arte, ele conta que conhece pessoas todos os dias, lida com elas, e por vezes é até uma espécie de ouvinte e de animador.
Perto de Montanha, na verdade, se apresentando em frente a ele, ao som de um POP marcante e com uma dança digna de majestade, está o astro Michael Jackson, ou melhor, nesse caso, Júnior Jackson. O cover do astro pop se desloca, em sua moto, quase todos os dias da região do Rosa Elze até o Centro de Aracaju, onde encanta as pessoas com sua arte há três anos.
Ele diz que através de seu trabalho, já ganhou reconhecimento. “Às vezes quando vou sair de noite para lanchar com minha esposa, o povo fala ‘Você não é aquele cara que faz o Michael Jackson no Calçadão?’ e eu digo “É! Sim, sou eu”, comenta Júnior.
O CENTRO É SEGURANÇA
No meio da multidão de pedestres, um único veículo se destaca no calçadão, posicionado no Centro dos mais de 370 metros da rua, em um local conhecido pela presença de artistas como o dançarino Júnior Jackson e o artesão Montanha, a viatura da polícia militar se tornou uma presença comum naquele lugar nos últimos anos.
Mesmo com as rondas, facilmente encontradas por quem caminha pelas ruas do Centro, a violência ainda está presente no cotidiano dos frequentadores. “A maioria é roubo e furto”, diz o policial André Luiz Vasconcelos sobre as ocorrências mais comuns atendidas por ele.
De acordo com o policial, durante datas comemorativas, aumenta o número de compradores e também cresce a frequência das ocorrências. André, de forma bem-humorada, lembra do trabalho durante o natal. “No natal é polícia batendo em polícia”, se referindo ao aumento do efetivo policial no Centro durante a data.
Apesar da velha fama de violento, para quem frequenta e já se acostumou com a rotina caótica, o Centro passa a surpreender pela sua tranquilidade. “Aqui é tranquilo, durante esses três anos nunca aconteceu nada de me roubarem”, comenta Júnior Jackson.
Para o bairro, que desde a sua criação ficou conhecido pelo seu comércio, a permanência do fluxo constante de pessoas é primordial para os negócios, por essa razão o controle da violência no local é tão importante para que os compradores continuem escolhendo o Centro como principal destino de compras.
O CENTRO É VIVÊNCIA E EXPERIÊNCIA
Conversar com as pessoas no Centro, apesar da sua lotação, pode ser mais difícil do que se imagina. Por lá, encontramos quem não quer falar; quem fala, mas fala desconfiado; quem caminha enquanto fala; e até quem fala, mas não consegue ser ouvido, pelo barulho em volta. Mas, o olhar fala, as memórias falam e o corpo entrega, sem palavras, as suas vivências no Centro.
“Se eu disser a você que eu tenho 38 anos e nunca entrei em um shopping? No shopping, julgam muito as pessoas pela aparência, acham que vão roubar, no Centro não”, conta Eliane Souza.
Em meio a passos apressados sob o sol das três da tarde, passa pelo calçadão da Laranjeiras em busca de uma boneca para a sua afilhada.
Para ela, a escolha pelo Centro não é só pela variedade de produtos ou pelos preços baixos, mas por ser um espaço mais acolhedor. Estar em um lugar que a aceita, independente do seu estilo ou classe social, compensa toda a caminhada em busca de produtos, mesmo embaixo do sol quente.
Não muito longe de Eliane, Edna dos Santos, uma senhorinha de sorriso fácil, descansa em um dos bancos do Calçadão da João Pessoa. Ela conta que mora no bairro Japãozinho, Zona Norte de Aracaju e vai ao Centro todos os dias via lotação. “É rapidinho, desço ali e venho caminhando. Você sabe onde é o táxi lotação?”, ela pergunta enquanto aponta no sentido da Rodoviária Velha.
Edna vai ao Centro comprar roupas e frutas no mercado e diz que, sempre que vai, gosta de sentar e passar um tempo olhando o movimento. “Venho sozinha e quando não tenho o que fazer fico aqui sentada”, ela fala com um grande sorriso no rosto. “Eu gosto de vir para cá”, ressalta.
Enquanto Edna descansava tranquilamente, Jéssica dos Santos procura, em meio aos passantes, uma resposta positiva. “Empréstimo! Quer empréstimo, moça?” Ao abordar Jéssica, vendedora em uma loja de crédito financeiro, uma dentre as várias que agora se encontram na região, ela conta com um olhar desconfiado e uma voz cansada que trabalha no Centro há três meses, mas que na empresa, há mais tempo.
A vendedora é mãe de dois filhos em idade escolar e, para sustentar a família, fugindo da crise e do desemprego, está diariamente pelas ruas do Centro, convocando pessoas para contornar as marcas do desemprego através de um empréstimo. “Eu chego aqui às 7 horas, 7:30h, e saio às 17. Mas, começo a trabalhar às 8:00 horas”, comenta Jéssica sobre sua jornada.
Há 28 anos no Centro de Aracaju, desde que era um menino de dez anos, José Ailton da Silva, hoje com 38, já se acostumou com o vai e vem dos passos no local. Enquanto conversava, costurava um sapato que um cliente acabara de deixar. E contava, com orgulho, que passou de engraxate a sapateiro e que com o ofício sustenta seus dois filhos.
Mas, conversar com seu Ailton não foi um trabalho fácil. Suas respostas eram curtas e por mais que esses meros estudantes de Jornalismo quisessem se sentar e ouvir pelo resto do dia. As histórias não fluiam. Talvez porque próximo dali uma caminhada política acontecia e o barulho, que se misturava com a multidão, impedia qualquer um de conversar.
Ou talvez Ailton, assim como muitos que trabalham por ali há décadas, já esteja tão acostumado com o clima do Centro, que a rotina impede de perceber a riqueza das suas vivências.
Desistir de ouvir Ailton, entretanto, não era uma opção. Por isso, a equipe foi ainda outras vezes em busca do menino que se tornou adulto consertando os sapatos dos passantes. Mas, nas vezes seguintes, continuamos sem sucesso. Talvez outro dia, outro passante tenha mais sorte do que nós.
E consiga compreender que o Centro é mais do que o caos que vemos nele, mas sim um emaranhado de histórias que são construídas dia a dia por cada um que por ali passa, desde a senhorinha sorridente que gosta de ver o movimento do calçadão até o Ailton, que fez do local sua segunda casa.
Para desvendar mais esse caos, escute o podcast “A Rua Santa”, um perfil de uma das ruas mais antigas e movimentadas do centro de Aracaju.
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