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Barulho das Tototós não abafa o som do esquecimento

Por Eduardo Costa, Larissa Nascimento e Pedro Nascimento

 

Tototós atravessam o rio Sergipe diariamente e vão contra a maré do esquecimento. Foto: Pedro Nascimento

O fenômeno das marés é a alteração periódica entre a maré alta e maré baixa, em um intervalo de aproximadamente seis horas. O fenômeno pode ser comparado com o fluxo de pessoas que utilizam as navegações. Pessoas que vêm e vão, aumentam e diminuem o fluxo de travessia. O que aconteceria com as canoas, se a maré secasse e não voltasse mais? O que aconteceria com as pessoas que dependem dela para sobreviver? O problema das tototós, que conduzem as pessoas sobre o Rio Sergipe, de Aracaju para a Barra dos Coqueiros e também no sentido inverso, é que as marés continuam regulares, sobem e descem como esperado, mas as pessoas já não aparecem mais.


Seis horas. Seis dias. Seis meses. Seis anos. E já se passaram 16 anos desde a inauguração da ponte Construtor João Alves… E assim como na maré baixa, que deixa a faixa de areia exposta pelo recuo das águas, a diminuição do fluxo de pessoas deixou as embarcações expostas. Ironicamente, à deriva. Fazendo com que os que utilizam desse trabalho para garantir o sustento, tenham que buscar outros meios de sobrevivência.


As tototós são embarcações de madeira motorizadas, que possuem cerca de três metros de largura e 15 metros de comprimento, cujo som marcante deu origem ao nome. Introduzidos na região estuarina do Rio Sergipe em meados do século XX, as embarcações foram, por um longo período de tempo, a forma mais viável de atravessar para o município que hoje conhecemos como Barra dos Coqueiros. Visto que para chegar a Barra por terra, era necessário dar a volta por Maruim, município sergipano localizado a aproximadamente 40 minutos da capital, aumentando o tempo da viagem em mais de uma hora.


Descaso na manutenção do cais e das embarcações na Barra dos Coqueiros. Foto: Pedro Nascimento

Um fato que pode despertar curiosidade sobre as Tototós, é que a chuva não é tão importante para que a rota aconteça normalmente, mas sim o vento. Em dias chuvosos, os canoeiros vão ao seu local de trabalho normalmente e sem intervenção de qualquer fiscalização. No entanto, em dias de ventania, a Capitania dos Portos chega rapidamente para fazer com que os barcos não sejam utilizados.


O debate acerca da importância da preservação das tototós continua sendo válido porque as pessoas continuam usufruindo delas, seja transportando e tirando o sustento desse trabalho, seja sendo transportadas. Se tratam de gerações que tiveram suas vidas afetadas pelo funcionamento da ponte Construtor João Alves e que precisam redefinir a forma como levam a vida. A Prefeitura da Barra dos Coqueiros afirma estar buscando meios de manter as atividades dos canoeiros a salvo de um risco de extinção, no qual é inevitável pensar quando se compara o momento atual à realidade do período pré-ponte.


Em 2011, a Lei n.7.320 tornou as tototós Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado de Sergipe, essa lei foi criada no intuito de ajudar os canoeiros na luta pela valorização, manutenção e resistência da atividade. Apesar de serem oficialmente reconhecidas como um patrimônio para a história e para a cultura do estado, as informações sobre as tototós são escassas. A Capitania dos Portos de Sergipe, órgão federal da Marinha responsável por coordenar e fiscalizar todas as atividades mercantes marítimas, praticamente não possui dados sobre os canoeiros além dos registros das embarcações.


A Associação dos Usuários de Tototó (ASTOTOTÓ), instituição responsável por representar oficialmente os canoeiros ativos, não possui nenhum suporte online ou acervo oficial sobre essa atividade que foi vital para o crescimento e o desenvolvimento da Barra dos Coqueiros. Nem mesmo os sites oficiais das prefeituras de Aracaju e da Barra possuem um espaço voltado especificamente para as tototós, apenas matérias eventuais que não trazem informações sobre o funcionamento e a importância histórica e social das embarcações.


Atualmente, a principal fonte de informações sobre as tototós vêm de uma instituição privada, a Fundação Alphaville, que além de publicar novidades, fotos e dados sobre o funcionamento das embarcações, realizou ações em conjunto com outros órgãos (públicos e privados) em prol da manutenção e revitalização das canoas.


AS TOTOTÓS DE HOJE: O DESAMPARO E A REVOLTA


Segundo pescadores da região, cerca de quatro Tototós circulam atualmente, um número bem inferior aos quase 12 barcos que faziam a travessia antes da ponte.Os canoeiros que resistem estão entre os que já atuavam na época de ouro do negócio, o que mostra que a atividade tem gerado desistência e não renovação.


Essa redução, visível para qualquer um que observe as margens do Rio Sergipe, está marcada nas vozes dos trabalhadores quando relatam que, apesar de a ponte ter sido uma grande evolução para a relação entre as cidades de Aracaju e Barra dos Coqueiros; ela também destruiu grande parte do ‘’ganha pão’’ dos canoeiros.


Ednaldo Francisco é canoeiro desde criança, e relata que antes da construção da ponte, as Tototós viviam o seu ápice no Rio Sergipe. ‘‘Eu trabalhava na época que não tinha ponte. Ali eu ganhei dinheiro. Quem enricou, enricou’’. Ednaldo lamenta o fim da época de ouro, mas diz que a situação vai melhorar nos próximos meses. ‘‘Com a ponte quebrou mais. Porém, o inverno acabou e agora vem o verão, dá pra matar 300 a 500 reais por dia. O pessoal gosta de vir turistar.’’


André dos Santos é outro canoeiro desde criança e relembra a época antes da construção da ponte, quando as tototós e as lanchas eram as únicas opções viáveis para as idas e vindas da população da Barra dos Coqueiros. “Acabou aquele tempo em que existia uma quantidade muito grande de pessoas, em que formavam uma fila para fazer a travessia”. Além das pessoas, André ainda chama a atenção para outra função interrompida. ‘‘Existia o transporte de coco, mangaba, maxixe, quiabo, caranguejos, jatobá. Existia um mercado aqui na Barra, onde todo mundo fazia compra e descia de volta (para Aracaju)’’, diz o trabalhador.


André dos Santos na frente de seu Tototó. Foto: Larissa Nascimento

Ainda de acordo com André, grande parte dos trabalhadores largaram a profissão devido o baixo movimento e foram atuar em outras áreas, como a pesca. ‘‘O clima já era outro, mas depois que construiu essa ponte, o movimento caiu em 100%, nem 50% foi. Uma canoa dessa anda com 60 passageiros e nessa última viagem eu levei só 12 pessoas’’, explica.


Uma queixa comum entre os canoeiros se refere ao desamparo diante da mudança na realidade. De acordo com os trabalhadores, as Prefeituras de Aracaju e da Barra dos Coqueiros não deram nenhum suporte financeiro. Anselmo Silva mora na cidade vizinha à capital desde os 13 anos e diz ser um “filho da Barra”. Ele menciona que até a manutenção das embarcações é um desafio.


“A canoa do meu irmão já quebrou diversas vezes, ele já gastou quase 20 mil reais em reparos, conseguiria comprar até outra canoa. A Prefeitura não dá suporte nenhum ao canoeiro", lamenta Anselmo.

João Eduardo Nascimento, canoeiro que assim como os demais trabalha nas embarcações desde a infância, se tornou presidente da Associação dos Tototós (ASTOTOTÓS) há menos de um ano. Ele reclama da falta de apoio das prefeituras aos trabalhadores e menciona uma inconsistência, apesar de as Tototós serem consideradas patrimônio cultural, por Aracaju e pela Barra dos Coqueiros e pelo Estado de Sergipe, de nenhum desses lados vêm um apoio concreto aos canoeiros.


O presidente explica que o único aporte financeiro recente foi com a Lei Aldir Blanc, na pandemia. No entanto, relata que o valor recebido foi de aproximadamente R$ 6 mil, que dividindo para os 18 canoeiros gerou cerca de R$ 330 reais para cada, o que segundo João é um valor irrelevante para a manutenção das canoas.


Para lidar com os custos de manutenção e garantir a sobrevivência, além da travessia Aracaju-Barra dos Coqueiros, os canoeiros fazem passeios turísticos pelo litoral aracajuano para tentar complementar a renda. Ednaldo revela que é cobrado uma diária da canoa e que o turista é acompanhado durante todo o tempo. “Se você quiser fazer um passeio, a gente passa um dia. Você pode levar a família, os amigos, levamos cerca de 10 pessoas. Por dia cobramos 300 reais, tem outros que cobram mais caro”, anuncia o canoeiro.


Passageiros fazendo a travessia. Foto: Eduardo Costa

Diante das inúmeras adversidades enfrentadas, os canoeiros envolvidos com as Tototós ainda possuem planos e esperanças para o futuro. “A gente precisa continuar lutando em prol das embarcações e da cidade, porque as pessoas ainda precisam das Tototós”, disse Ubirajara dos Santos, mais conhecido como “Bira”, um dos canoeiros mais experientes em atividade. “Precisamos fazer uma série de reformas, começando pelos portos [...] Como vamos atrair novos passageiros se os portos são os mesmos desde sempre?”, completou.


"Bira" falando sobre a necessidade de ajuda. Foto: Larissa Nascimento

Mas o futuro não mudará enquanto as coisas permanecerem do jeito que estão, ao menos é isso que pensa o Presidente da Associação das Tototós, João Eduardo. “Nós precisamos de ajuda na prática. Quando alguém pergunta pelas tototós nos órgãos públicos, todo mundo diz que somos um importante patrimônio histórico, mas quando nós precisamos de auxílio para manter as embarcações, eles somem.”


No seu ano à frente da Associação, João Eduardo sentiu não só a falta de recursos financeiros, mas também os impactos da maior crise sanitária da história recente da humanidade, a pandemia de Covid-19. “ muito difícil. A maioria dos canoeiros não possuem outro trabalho, agora que as coisas estão dando uma melhorada, mas ainda está sendo muito complicado para a gente se manter em atividade”, afirmou. “A única renda que fazemos por fora são as viagens turísticas que às vezes fechamos.”


Apesar de sempre ter sido explorado pelos donos das embarcações, o turismo marítimo tornou-se e tende a continuar sendo uma fonte de renda indispensável para todas as Tototós, afirma André “Pombo”, canoeiro ativo há mais de 15 anos. “O turismo com as embarcações sempre existiu, antigamente fazíamos praticamente todo final de semana o percurso Barra – Atalaia e era sempre lotado. Hoje em dia esse percurso não existe mais, mas atualmente nós fechamos pacotes com turistas ou até grupos de moradores que estejam interessados em conhecer um pouco mais da vista da cidade “, disse.


Canoeiro em pleno trabalho. Foto: Larissa Nascimento

Ciente desse potencial para as Tototós, Diego Araújo, Secretário Municipal de Cultura da Barra dos Coqueiros, afirmou que a prefeitura tem incentivado a utilização das embarcações para fins turísticos. “A prefeitura da Barra dos Coqueiros vem mobilizando, principalmente os turistas que visitam o município, para o uso das embarcações não apenas para o translado Aracaju-Barra, com o incentivo a passeios nas margens do rio Sergipe e demais afluentes, com a apreciação da Vela do Navio, manguezais, o percurso realizado por D. Pedro II e demais pontos turísticos”, afirmou.


Mas, para os canoeiros, isso não basta. Eles necessitam de ações práticas em conjunto com as duas prefeituras para a manutenção desse patrimônio histórico, cultural e necessário para a cultura sergipana. “Por que eles não se reúnem e fazem um passe-livre para idoso? Por que não criam uma carteirinha para estudantes da Barra? Coisas simples que ajudariam tanto a população que precisa, quanto nós... É desse tipo de iniciativa que a gente precisa”, terminou João.


A travessia com as tototós leva em média 5 a 7 minutos de duração. Foto: Larissa Nascimento


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