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Um (re)conhecimento da Feira das Trocas

Por João Felipe Tavares, Laura Malaquias e Maiara Ellen Souza

 
Comerciantes montam as barracas para mais um dia de feira. Foto: Laura Malaquias

Nas proximidades da ponte que liga Nossa Senhora do Socorro e Aracaju, no bairro Lamarão, fica localizada a Feira das Trocas. Ir até lá pela primeira vez, gerou uma mistura de expectativas, pois as falas prévias a descreviam como um lugar perigoso. Mas o receio de estar em um espaço desconhecido durou apenas os primeiros minutos e um domingo que começou marcado pela lama da chuva passageira, deu espaço à euforia e à curiosidade típicas de uma manhã de sol.


Do ponto de ônibus, dava para ver o conjunto de barracas abaixo da pista. Chegavam clientes de bicicleta, motos, ou a pé, como nós. O lugar se movimentava como uma feira de frutas, mas com outros produtos. O ritmo vinha das conversas constantes, da oferta de mercadorias e das caixas de som, que tocavam axé e brega e faziam recordar outras periferias. Mesmo para quem é de fora, não é difícil se reconhecer ali.


Ao percorrer os espaços entre as bancas, vários sentimentos foram despertados. A nostalgia de avistar produtos que faziam parte da infância nos anos 2000. O afeto de um senhor de meia idade, que oferecia uma galocha e um violão, enquanto contava histórias de sua neta. E a empolgação e insistência do vendedor de eletrônicos que tentou, por minutos, nos convencer a comprar um fone de ouvido, que não funcionava e do qual não precisávamos.


Na segunda visita, no sábado da semana seguinte, os rostos já se reconheciam, de um lado e do outro. Seu Genival, um vendedor de ventiladores, nos ofereceu uma garrafa de água de presente, apenas por cordialidade. Este contato tornou mais simples a caminhada lá dentro, assim como ver crianças acompanhadas pelos responsáveis, o que ajudava a confirmar que a Feira das trocas é também um ambiente familiar.


Entre as especulações sobre os preços e produtos, surgiram os diálogos e os nomes. E assim, na terceira e última visita, os comerciantes aceitaram, gentilmente, a proposta de serem entrevistados. Alguns deles não quiseram falar seus sobrenomes e preferiram não ser fotografados, mas isso não limitou a conversa. Foi um momento em que eles contaram sobre a Feira das Trocas a partir da própria vivência. A feira que frequentam, conhecem e amam e não a feira do estereótipo e dos medos sem fundamento. E em nós já não havia mais receio.


A FEIRA


Cercada pelo mangue do Rio do Sal e por um campo de futebol, a Feira das Trocas tem um ambiente similar ao de várias outras regiões populares da capital Sergipana. Ela acontece de sexta-feira a domingo, mas o fluxo é maior no fim de semana.


Ao som de várias músicas, que são tocadas simultaneamente, as pessoas caminham entre a parte de cima e a parte de baixo da feira, dividida apenas por uma pequena ladeira de terra. Ambos os trechos não possuem uma organização linear das bancas, pois estas, nem sempre cobertas, são montadas onde há espaço.


As pessoas movimentam a feira ao redor do mangue. Foto: Laura Malaquias

Os produtos à venda são constantes nos dias de feira, mas se diversificam ao longo do trajeto. Relógios antigos de parede, câmeras fotográficas, bicicletas, gaiolas, roupas e rodas de patins. Nem tudo funciona perfeitamente, pois alguns objetos estão lá para serem reciclados. Por outro lado, há também botas de trilha, perfumes, óculos, ferramentas mecânicas, fones de ouvido e diversas outras mercadorias novas, ainda na embalagem. Em um trecho de terra mais aberto ficam galinhas, galos e passarinhos em gaiolas, dispostos à venda.


De acordo com José Santos, vendedor de aparelhos de som e de ventiladores, os produtos são os mesmos vendidos em lojas, mas por um preço acessível. “Aqui é como a feira livre. A diferença é que vendemos mais objetos ao invés de comida. Por exemplo, às vezes você está na sua casa e precisa de um ventilador, basta ir para a Feira das Trocas que com certeza vai ter disponível para comprar, por um valor muito abaixo do preço de mercado”, afirma.


Há produtos que são reciclados e comercializados na feira. Foto: Laura Malaquias

A maioria dos comerciantes são homens de meia-idade, entre 40 e 60 anos. Eles usam roupas casuais, bonés e tênis. Alguns, com óculos de sol e pochete na cintura, outros, de calça e blusa com proteção ultra-violeta. Entre as poucas mulheres que trabalham lá, quase todas estão acompanhadas por seus maridos. Exceto dona Maria, uma moradora do Bairro Industrial, que se desloca semanalmente até a Feira com seu brechó de chão.


Ela conta com a ajuda de suas filhas para garimpar nos brechós de Aracaju, a fim de levar as roupas para comercializar na feira. Em sacos de plástico e sob uma lona, dona Maria expõe as peças que, segundo ela, são iguais as das meninas vistas no TikTok.


Dona Maria é a única comerciante mulher na parte de cima da feira. Foto: Laura Malaquias

A Feira não se resume somente a um ambiente comercial. Aos sábados, há bingo e roleta de times, em que as pessoas trocam apostas e se divertem. Ao redor delas, ficam barracas de salgados e espetinho, e Antônio, vendedor de pastel, diz que no fim do expediente sempre “rola uma cervejinha”. A interação semanal proporciona a criação de vínculos entre os trabalhadores e de uma relação fraterna, segundo o vendedor de ferramentas, Ricardo. "Somos todos irmãos", ele diz enquanto aponta para os amigos em volta.


Os feirantes aproveitam o início do expediente para conversar entre si. Foto: Laura Malaquias

ESTIGMAS NA PERIFERIA


Há vendedores que trabalham na Feira há mais de vinte anos, quando ela ainda estava localizada no bairro Siqueira Campos. Edinailson, por exemplo, conta que vende produtos reciclados por lá desde 1993. A maioria dos vendedores tem esse perfil regular e alguns se conhecem desde a antiga localização da Feira. Já outros vendedores, aparecem eventualmente para ofertar um ou dois produtos, com abordagens individuais e exposição discreta da mercadoria. Estes são, segundo Edinailson, os que trazem má fama à feira.


“O problema é quando chegam pessoas de fora para fazer coisas erradas, mancham a imagem da gente, e aí nos chamam de marginal. Tem muitos aqui que nunca tiveram sequer uma queixa na delegacia, como é que é marginal?”, questiona. De acordo com o cientista social e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Ugo Maia, as periferias no Brasil possuem uma conotação negativa dentro da sociedade, relacionada aos perfis de quem as ocupa.


Há vendedores que só aparecem às vezes na feira. Foto: Laura Malaquias

Sobre esses perfis, na feira é possível visualizar diversos: vendedores regulares, alguns de produtos usados, outros de produtos novos. Vendedores inconstantes, uns interessados em trocar ou repassar objetos que já não usam e outros, decididos a vender produtos com uma rapidez e discrição suspeitas. Os compradores e os que vão só pela alegria da festa e das companhias.


Apesar disso, recai sobre os frequentadores o peso da generalização em direção à criminalidade. Edinailson, assim como outros comerciantes, se descreve como um homem de bem, além de apresentar uma questão difícil de desconsiderar. "Se eu fosse criminoso estaria aqui todos os dias?". Segundo ele, os que não são trabalhadores, os que podem merecer a fama de "ladrão", são os que repassam mercadorias às pressas e vão embora.


Para a antropóloga e professora da UFS, Yérsia Assis, existe um imaginário social construído, e alimentado pelas elites brasileiras, de que a periferia é uma zona orientada para práticas ilícitas e para desordem social. “Há, na verdade, uma desumanização dos habitantes daquele espaço, e mais do que isso, um amplo processo de racismo e manutenção de desigualdades. O processo da imagem sobre as comunidades periféricas recai numa perspectiva social envolvida em preconceitos, estereótipos e discriminações”, explica.


Esse estereótipo tipifica todos os habitantes do lugar, como perigosos. É o que a sociologia chama de generalização do particular. "É como se as pessoas que moram nas periferias tivessem uma predisposição maior à criminalidade, independente de ser o seu João ou dona Zefinha. Qualquer indivíduo passa a ser suspeito, porque ocupa aquele espaço social", problematiza Ugo Maia.


Os comerciantes Edinailson e Genival, da esquerda para a direita. Foto: Laura Malaquias

Edinailson lembra que em todo lugar, da Zona Norte à Zona Sul, há boas pessoas e há quem faça “coisa errada”. E ensina. “É preciso conhecer o espaço e os trabalhadores que ali residem, antes de sair chamando todo mundo do que não presta.” “Aqui (para a feira) vem muitas pessoas boas. Eu sou pai de família e muitos daqui também são”, afirma.


AS TROCAS


Os comerciantes relatam indignados o peso de carregar consigo, os estigmas da marginalização. “Quem critica as Trocas, é porque não precisa delas”, afirma o vendedor José Santos. Outro feirante, também chamado José, conta sobre a necessidade de resistir dentro daquele espaço de trabalho e interação social. "Faça chuva ou faça sol, nós estamos aqui. E é na Feira que os trabalhadores lutam, dignamente, para ganhar o pão de cada dia", ele diz.


Simultaneamente, o vendedor de ferramentas, Ricardo, define a Feira das Trocas como um ambiente acolhedor. Ele conta que fica contente em trabalhar com pessoas que acolhem quem chega lá pela primeira vez. E esse foi o nosso caso. Durante as três semanas de visitas, o cotidiano se mostrou acolhedor e gentil, graças às pessoas que nos receberam. No sábado, nos deram água de graça e um aperto de mão. No domingo, fomos recebidos com acenos e histórias sobre a vida.


A barraca de Cida começa a vender café da manhã logo cedo. Foto: Laura Malaquias

“A periferia enquanto comunidade. É esse o espaço da solidariedade coletiva, das trocas, é o espaço onde há outras moralidades e valores. Essa perspectiva se contrapõe àquela outra noção de lugar marginalizado. São imagens que se sobrepõem”, retrata Ugo Maia sobre outro aspecto da periferia, em termos sociais.

Os comerciantes expõem os produtos de diferentes formas. Foto: Laura Malaquias

Essa junção é a Feira vista de fora, por quem a desconhece, e as Trocas vistas de dentro, por aqueles que as vivenciam. A dualidade é enfrentada pelos feirantes, que não estão nos centros das cidades, e é percebida por quem se aventura, ocasionalmente, naquele espaço. Quem assume a aventura sem o peso das predisposições, pode sentir o que sentimos. Saímos marcados pelas pessoas, mais leves dos preconceitos e mais carregados de histórias.



Para conhecer e ouvir mais sobre os personagens desta reportagem, ouça o podcast da Zona Contexto: “Os feirantes trocadores”.


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