Por Ianna Karoline, João Daniel e Samara Letícia
São Cristóvão possui uma história rica em detalhes desde a sua colonização até os dias atuais. A cidade é, inclusive, o quarto município mais antigo do Brasil, após Salvador, Rio de Janeiro e João Pessoa. É por esse motivo, que a cidade inteira foi reconhecida como conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico e tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No entanto, além da história reconhecida e valorizada existe outra, que não se limita à Praça São Francisco, localizada no centro histórico da Cidade Mãe.
Essa outra história não é a dos reis e imperadores, mas a de gente simples. Trabalhadores que construíram a cidade e ainda espalharam cultura e contribuíram para que São Cristóvão seja o que é hoje. Esses formadores da cidade, apesar da importância, não costumam ser homenageados em monumentos. Na verdade, por muito tempo, eles eram proibidos de frequentar as igrejas e os espaços que foram forçados a produzir.
Longe de ter ficado no passado, a cidade ainda hoje carrega as marcas da segregação. Ela continua dividida em dois planos, que marcam a diferença social no Brasil Colônia: a Cidade Alta, onde ficava a sede do poder civil e religioso e residiam os ricos, e a Cidade Baixa, local onde ficava o porto e onde morava a população de baixa renda.
O artista plástico Nivaldo Oliveira retratou essa diferença entre a parte alta e baixa do município em uma de suas obras. “O ‘Trem Virado’ mostra um trem virado na Cidade Baixa. Enquanto a Cidade Alta dorme, a tragédia acontecia na Cidade Baixa”, explicou. A obra traz a interpretação do artista para a divisão social das duas São Cristóvão, a que dorme é tranquila e abastada; a que se desespera, passa por dificuldades, sofrimentos e maus maltratados, sem que a outra desperte do seu sono.
Além da arte, a separação também é marcada na memória dos mais antigos. Dona Marieta, que já foi pescadora e morou na parte baixa do município por muito tempo, hoje é proprietária da Casa da Queijada, patrimônio histórico localizado em um espaço de destaque. Ela mora na parte alta da cidade há 20 anos e contou que a divisão social antes era bastante evidente. “Naquele tempo, só quem morava na Cidade Alta era rico, pobre não morava. Era branco e rico”.
Para Dona Marieta, essa diferença se perpetua até hoje, mesmo que já não de maneira tão evidente. Ela conta que algumas de suas amigas mais antigas, que vivem na cidade baixa, tem uma certa resistência em visitá-la. “Muitas delas eu conheço da época que moravam na maré, hoje em dia quando chamo elas para vir para cá, elas não vêm, não sobem de jeito nenhum”.
TOMBAMENTO E ESQUECIMENTO
A Praça São Francisco, que possui arquiteturas civis e religiosas relevantes e é nela que todas as expressões culturais de São Cristóvão se concentram, como explica a arquiteta Sarah Elizabeth. “Para a gente falar de São Cristóvão, temos que falar dessa praça. Ela é o principal ponto, serve de palco para todas as apresentações e manifestações culturais”, afirmou.
A Praça é, inclusive, reconhecida como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 3 de agosto de 2010, como explica o chefe do Escritório Técnico de São Cristóvão, Tiago Santos. O Governo do Estado, a Prefeitura de São Cristóvão e o Iphan estão criando projetos para a Praça São Francisco.
“Em parceria com os três órgãos, se pretende criar um plano de gestão da Praça de forma compartilhada para a manutenção e preservação do local, por orçamentos de todas as partes”.
Não é a primeira vez que investimentos para preservação da cidade são destinados apenas para a Praça. Segundo Tiago Santos, isso acontece porque ela é a única parte do município considerada Patrimônio Mundial. “Para se manter como Patrimônio Mundial, ela precisa ter um plano de gestão. Mas o Iphan tem verbas individuais para os bens que estão dentro de São Cristóvão”. Ele não tinha informações exatas sobre o valor destinado para as outras partes tombadas da cidade e os números também não estão disponíveis na internet.
Mas ao redor de suas construções seculares, a história daqueles que construíram a primeira capital de Sergipe continua esquecida, como uma segunda história não contada e enterrada nos escombros de uma cidade histórica. As marcas dos povos esquecidos estão presentes na cultura tradicional de São Cristóvão. São parte da rotina dos moradores, e atrativos para turistas. Apagar essas histórias e costumes é negar o passado deste lugar.
As periferias de São Cristóvão têm as marcas dos “segundos povos”, escondidas na culinária, em marcas de esculturas e em pequenas estruturas. A historiadora Sandra Ribeiro conta que a luta de grupos para conseguir valorização se deu por muitos anos da história de São Cristóvão, porém o reconhecimento veio apenas após o tombamento da cidade mãe na totalidade. “Percebe-se, sem desconsiderar o mérito gigante e o engajamento de grupos aguerridos, que a valorização efetiva veio com o reconhecimento externo. No momento em que a Unesco reconhece como patrimônio, é como se fosse a chancela para a valorização interna.”
Segundo ela, isso afeta o sentimento de pertencimento daquele local, pois suas memórias, tradições e costumes não têm o mesmo destaque que os mais centralizados, mesmo com o tombamento e reconhecimento de entidades internacionais. A sensação de que o reconhecimento é sempre associado a uma aprovação externa traz esse apagamento.
APAGAMENTO DAS MEMÓRIAS E RESISTÊNCIA
Marcas poderosas de histórias não contadas foram deixadas ao redor da praça, contendo memórias de mãos que construíram a cidade, mesmo diante do apagamento dos rostos, corpos e nomes . Seja na Casa da Queijada, que carrega o peso da escravidão e a revolução da liberdade em seu sabor, seja nos becos que ainda guardam os segredos das cachaças, o patrimônio de São Cristóvão ultrapassa os limites da praça e alcança a cultura preta e indígena que resiste ao longo dos anos.
De tão poderosas, a força das marcas históricas dos povos escravizados entra pelas paredes e corre pelas estruturas da Igreja da Matriz de Nossa Sra. Da Vitória. Com seu teto reformado, a história dos incêndios revoltosos é ouvida pelos visitantes do edifício sacro. Segundo a guia turística da igreja, Nair Santos, houve revolta contra os escravistas e catequizadores, e, com o intuito de expulsá-los, atearam fogo nas estruturas poderosas, como os prédios religiosos. Essa história, pouco lembrada, relata a dor e o sofrimento dos povos escravizados, mas antes de tudo é sinal de força e resistência.
A cidade mãe de Sergipe abriga em suas estruturas as construções que marcam a história do estado e do Brasil, como a própria Praça São Francisco. É nela, também, que as memórias de povos indígenas estão presentes, mesmo que não contadas, estudadas e valorizadas como merecem, como explica o antropólogo André Henrique Bastos. “A história de Sergipe foi marcada pelo apagamento e extermínio e indígena. A negação de indígenas no território surge através de uma visão normativa (senso comum) muito ligada ao processo de educação e a falta de abordagem da pluralidade étnica”, explicou.
A antiga capital de Sergipe atrai os olhos de toda a nação. No entorno da sua principal praça, existem, como já contado, edifícios institucionais, civis e religiosos. Esses prédios sacros e oficiais verbalizam a história de imigrantes e seus descendentes, aqueles que criaram as obras arquitetônicas majestosas, mas utilizaram mãos alheias, para construí-las. Foi o esforço de pretos e indígenas que produziu as igrejas, inclusive aquelas em que só os brancos podiam se ajoelhar, foi pelo suor e pelas lágrimas que se forjaram monumentos e patrimônio, como a Praça São Francisco. Para esses, esquecidos pela história, nossa homenagem, são eles o maior patrimônio.
Para conhecer mais sobre as vidas que se estendem nas ruas de São Cristóvão, assistam o Webdoc: Cidade de Altos e Baixos.
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