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A cidade mãe de Sergipe não acolhe os filhos com deficiência

Por Paloma Freitas e Tatiane Macena

 
A foto foi tirada de dentro para fora da Igreja do Rosário, em São Cristóvão. As portas da igreja são grandes, retangulares, azuis e estão abertas. Apesar disso, do lado de fora está Cristina, uma mulher preta de cabelos ondulados e magra. Ela está sentada na sua cadeira de rodas, com uma blusa laranja, óculos de grau, cabelo preso em rabo de cavalo, e mão no queixo com expressão triste.
A falta de uma rampa impede o acesso de pessoas cadeirantes à Igreja do Rosário. Foto: Paloma Freitas.

Geralmente, visitar uma cidade que não conhecemos é motivo de empolgação, em contrapartida, para uma pessoa com deficiência (PCD) o turismo é um momento de ansiedade e angústia antes mesmo de chegar ao destino. A equipe de reportagem já conhecia a cidade e sabia de algumas dificuldades que encontraria. Sabe a sensação de perigo à vista? Foi esse sentimento que nos acompanhou no percurso de 30 minutos de Aracaju, atual capital de Sergipe, até São Cristóvão.


São Cristóvão foi a primeira capital do estado e, por isso, é conhecida como “Cidade Mãe de Sergipe”. Ela também é a quarta cidade mais antiga do Brasil, e recebe turistas que podem visitar a praça São Francisco (patrimônio da humanidade reconhecido pela Unesco), o Museu Histórico de Sergipe e o Museu de Arte Sacra. Para conhecer as tradições artísticas, visite a Sala dos Saberes e Fazeres e a Casa das Culturas Populares. Entretanto, a possibilidade de conhecer a cidade não se estende a todos igualmente. A “cidade mãe” falha em acolher seus filhos quando eles têm algum tipo de deficiência.


Já que a equipe de reportagem é formada por duas pessoas sem deficiência, fizemos um tour pelo centro histórico da cidade guiados por uma especialista no assunto: pessoa com deficiência (PCD), consultora em acessibilidade e, vale ressaltar, guia de turismo formada. Cristina Santos, filha de Dona Marilene e do José Antônio, foi diagnosticada com poliomielite (paralisia infantil) aos seis meses, quando suas pernas atrofiaram e ela não conseguiu mais sustentar o próprio corpo. Por isso, é usuária de cadeira de rodas.


Apesar dessa limitação, se engana quem pensa que ela é uma mulher triste e desanimada. Desde o momento em que a encontramos, ela fez piadas e conversou como se fôssemos amigas de infância. “Sendo PCD, mulher preta e pobre, eu não posso abaixar a cabeça porque já fui muito humilhada”, Cristina nos conta.


Ela sente o preconceito das pessoas pelo olhar, ou melhor, pela falta dele. Foi o que ocorreu na Casa das Culturas Populares, o primeiro lugar em que entramos. A funcionária manteve os braços cruzados enquanto tentávamos entrar e mesmo depois de Cristina se apresentar e explicar qual era a nossa intenção no local. Perguntamos à funcionária se as peças poderiam ser tocadas por pessoas cegas ou com baixa visão. A moça respondeu um ríspido “não”, e, sem disfarçar, revirou os olhos.


Em seguida, entramos no Ponto de Informações Turísticas e perguntamos se os profissionais passam por alguma capacitação para receber pessoas com deficiência. A funcionária nos disse outro “não”. Logo de início, somos impactadas pela falta de sensibilidade e capacitação das pessoas que trabalham nos locais turísticos.


Em entrevista, a secretária de Turismo e Cultura de São Cristóvão, Paola Santana explica que os funcionários dos pontos turísticos são estudantes do ensino médio, que a prefeitura procura incluir no mercado de trabalho. “Inclusive, fizemos capacitação de introdução à linguagem brasileira de sinais e inglês para facilitar no traquejo com as pessoas que usam a língua para se comunicar”, relatou Paola Santana. Ainda que a iniciativa de inserção no mercado de trabalho e as capacitações quanto a linguagens sejam essenciais, a prefeitura ainda precisa orientar os jovens quanto a questões atitudinais.


Sobre a mobilidade, a secretária não nega as dificuldades que a cidade possui para locomoção e destaca a urgência de iniciativas para acessibilidade. “Reconheço que a mobilidade em São Cristóvão é um desafio enorme não só para as pessoas com deficiência, como também idosos e famílias com carrinho de bebê. Há um tempo, recebi um grupo de idosos, e pelo menos, três caíram na escada da Casa dos Saberes.”


Na tentativa de solucionar o problema, Paola tem estudado as cidades históricas que estão mais avançadas no assunto, como é o caso de São Luís. A capital maranhense fez uma plataforma metálica para ligar calçadas sem danificar a estrutura da rua. A partir desse modelo, a prefeitura de São Cristóvão projetou uma rampa metálica para a Casa dos Saberes, local que recebe muitos visitantes e costumava ser motivo de acidente.


Entretanto, mesmo não interferindo na estrutura do prédio, a rampa foi mal aceita. De acordo com a secretária, a instalação do equipamento gerou um atrito com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ela conta que esperou 45 dias pela autorização do Instituto, que é o prazo determinado para receber uma resposta, mas quando os idosos caíram ela não conseguiu esperar mais. Após a colocação da rampa, recebeu a multa no valor de 1.200 reais, por ter feito uma instalação sem a autorização do órgão.

a imagem mostra uma casa de esquina com arquitetura colonial e dois degraus de cimento altos e tortos. A parede da casa é amarela, as portas e janelas com formato de arco são verde escuro. Na frente da casa, tem quatro janelas e duas portas, já na lateral são cinco janelas, a foto mostra os dois lados da casa. Na primeira porta da casa, está apoiada uma rampa de ferro com corrimão.
A Casa dos Saberes e Fazeres, inicialmente era apenas uma sala no prédio da prefeitura. Imagem: Tatiane Macena.

“A rampa ainda não é a ideal, mas já simboliza um avanço”, avalia a consultora em acessibilidade, Cristina Santos. Para ela, o equipamento oferece apenas uma condição de acessibilidade ao local, mas deixa a desejar em três requisitos essenciais: segurança, conforto e autonomia. Isso porque o corrimão está folgado, então quando alguém se apoia, ele balança, e expõe um risco. O equipamento evita o constrangimento de ser carregada nos braços, mas ainda assim é preciso que um acompanhante segure a cadeira ao subir, para evitar que a PCD desça sozinha.


 Na rampa de ferro cinza, Cristina é empurrada pelo seu acompanhante, Bruno, que veste uma blusa vermelha com detalhes brancos e traz uma mochila nas costas. Com uma mão Cristina segura o corrimão e com a outra, afasta o cabelo do rosto.
Para se sentir segura, Cristina se apoia no corrimão da rampa de ferro, ao mesmo tempo que seu acompanhante empurra a cadeira de rodas. Imagem: Tatiane Macena.

EXEMPLOS A SEREM SEGUIDOS


A alegria de Cristina ao encontrar pessoas que se importam com ela é contagiante. Bastou se aproximar da entrada da biblioteca Lourival Baptista e dos seus dois batentes, que Rafaela Pereira, diretora e bibliotecária, pediu para esperar porque ela iria buscar a rampa. Por um momento, a decepção fica em segundo plano, devido ao carinho que Rafaela direciona para Cristina. "Precisamos oferecer possibilidades para que todos consigam acessar os espaços de cultura. Essa rampa é o primeiro item de outros que virão. Nós queremos acolher as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, então precisamos oferecer recursos para que se interessem em vir a São Cristóvão”.


No piso de pedras, uma rampa de madeira clara está posicionada em frente ao batente que dá acesso à Biblioteca Lourival Baptista. Ao lado do objeto, Rafaela alinha a rampa ao batente com os pés.
Um objeto simples que faz toda a diferença. Imagem: Paloma Freitas.

A disposição que Rafaela Pereira demonstra ao recebê-la, contrasta com as situações anteriores. “É preciso ter uma política que abrace a todos, independente da mobilidade ou carência móvel que a pessoa tenha. Nós queremos abraçar esse público que raramente chega, mas quando vem, precisa ser bem recebido”, comenta a bibliotecária.


Ao posicionar as duas rampas, uma para cada batente, a bibliotecária reduziu o “mexe-mexe” na passagem da usuária de cadeira de rodas e trouxe um pouco de conforto. O atendimento atencioso continuou quando a funcionária ainda perguntou se o jeito que organizou estava bom para Cristina. Na situação, percebemos dois avanços evidentes: primeiramente, a existência da ferramenta que dá condição de acessibilidade, e depois, a preocupação em estar da melhor forma para a usuária.


Parece básico perguntar como a usuária prefere que seja organizado, já que é ela quem vai utilizar o mecanismo, no entanto, poucas pessoas agiram dessa forma. Durante o nosso tour, apenas duas pessoas pararam para ouvir Cristina, antes de tentar pegar na cadeira.


Apesar da boa intenção, é preciso destacar que o ato é invasivo, assim como tocar no corpo de alguém antes de lhe dirigir a palavra. Para as pessoas com deficiência, a cadeira de rodas, muleta ou bengala funcionam como uma extensão do próprio corpo, devido ao tempo que essas ferramentas são usadas. Então, prefira dizer “como eu posso te ajudar?” em vez de, “acho que de tal forma é melhor para você”.


A imagem mostra Cristina sozinha de costas, guiando sua cadeira de rodas para subir a rampa de madeira que dá acesso à biblioteca.
A simples rampa de madeira garante condições de acesso à Cristina. Imagem: Tatiane Macena.

A rampa de madeira foi uma iniciativa da prefeitura e está disponível para uso em três casas que ficam lado a lado: a Casa das Culturas Populares, o Ponto de Informações Turísticas e a Biblioteca Lourival Baptista. Porém, apenas neste último espaço o recurso foi oferecido para facilitar o acesso de Cristina. Nos dois primeiros, o acompanhante precisou fazer uma manobra com a cadeira de rodas. Por situações como essa, Rafaela acredita que o maior problema não é a falta do recurso físico. “Infelizmente, as pessoas pensam que os PCDs vão ficar sempre em casa. Acredito que a adaptação do centro histórico, tem toda uma questão de interesse. É preciso de alguém para brigar por isso”.


BARREIRAS QUE MACHUCAM E DESGASTAM O SER


Em 2015, entrou em vigor a Lei 13.146 destinada a “assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. Conhecida também como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, no artigo 3°, inciso IV são classificadas seis barreiras que impedem ou limitam a participação social da pessoa nos espaços públicos e privados. É importante conhecê-las para entender que não é só através de uma rampa ou elevador que a falta de acessibilidade será resolvida. Normalmente, um conjunto desses obstáculos acaba com o dia de uma pessoa com deficiência.


N0o centro da imagem está a palavra barreiras escrita na cor preta, entre aspas e dentro de um círculo azul marinho. A partir deste círculo, saem seis setas, sendo três de cada lado, indicando para círculos e símbolos ovais que variam entre as cores: salmão, amarelo, rosa e verde claro. No canto superior esquerdo da imagem tem a silhueta de um prédio e uma casa para ilustrar a barreira arquitetônica. No canto superior direito, um círculo com duas árvores e uma estrada no meio simbolizam a barreira urbanística. No canto inferior direito tem a silhueta de um homem encolhido e cabisbaixo, de sua cabeça sai um balão de fala com linhas embaralhadas. Já no canto inferior esquerdo, tem a silhueta de uma mulher de cabelos longos com as mãos cobrindo os ouvidos, em cima dela tem um círculo amarelo.
Infográfico explicativo com os tipos e exemplos das barreiras existentes no cotidiano de uma pessoa com deficiência. Arte: Paloma Freitas via Canva.

Visitar uma cidade histórica é viajar pela história, cultura e tradição da comunidade local. Em São Cristóvão, não é diferente, as igrejas, as praças, e algumas casas fazem parte do patrimônio tombado pelo Iphan. Nesse sentido, o Instituto surge para reconhecer a importância e preservar a memória do que foi vivido no país. O valor patrimonial da cidade é mais um obstáculo para tornar São Cristóvão acessível.


O fato é que os centros históricos não foram construídos para receber pessoas com mobilidade reduzida. Por isso, em 2014, com a intenção de contribuir para o acesso universal à cidade, o Iphan publicou o caderno técnico “Mobilidade e Acessibilidade em Centros Históricos”, em que destaca o compromisso da instituição para a democratização do espaço urbano.


O documento foi criado para mobilizar os gestores do Iphan, secretários de estado e prefeituras e é dividido em três partes: a parte um apresenta os principais conceitos do tema e como equilibrar a mobilidade e acessibilidade urbanas com a preservação dos espaços culturais. A segunda mostra experiências nacionais e internacionais para servir de inspiração e solucionar os problemas das nossas cidades. Na terceira parte, são citadas a legislação e normas vigentes, além de uma discussão dos autores sobre acessibilidade nos imóveis tombados e parques históricos. Porém, mesmo com todo o suporte teórico, oito anos se passaram e a cidade histórica de São Cristóvão ainda não colocou as alterações em prática.


A CORAGEM NECESSÁRIA PARA VIVER


Para acessar o Museu de Arte Sacra, localizado na Praça São Francisco, é preciso subir três degraus altos e tortos. O que para a equipe de reportagem foi motivo de desânimo, mas Cris continuou impressionando com sua coragem. Ela pede para gravarmos as três formas que uma pessoa com deficiência consegue entrar no Museu, apertamos o “play” e sem nos preparar, ela desce da cadeira e rasteja pelos degraus. Cada movimento nos tira o ar, sentimos um misto de apreensão e culpa.


Ainda que não sejamos responsáveis pela acessibilidade de São Cristóvão, talvez nossa culpa venha pelo convite que fizemos de expor Cristina a tantas dificuldades. Ou talvez venha da falta de empatia, comum às pessoas sem restrições de mobilidade. Enquanto o nosso coração parece sair da boca, sentimos o choque da realidade e concluímos o óbvio: se houvesse maior movimentação coletiva, a respeito da acessibilidade, ninguém precisaria passar por isso.


O esforço de rastejar para entrar no Museu de Arte Sacra. Imagens: Tatiane Macena


Ao longo do trajeto por São Cristóvão, tentamos visitar mais de quinze lugares, mas apenas quatro tinham condições de acessibilidade. As negativas e a indiferença fizeram Cristina sentir que os pontos turísticos da cidade histórica de São Cristóvão não foram feitos para ela. Apesar de ser guia de turismo e consultora em acessibilidade, ela precisou colocar para fora o que sentia. “Até quando as pessoas com deficiência vão precisar implorar por acessibilidade?”, questiona em meio às lágrimas.


A HUMANIZAÇÃO É A CHAVE


Apesar das barreiras arquitetônicas, algumas pessoas estão engajadas em transformar, de verdade, os espaços de cultura e memória em um lugar bom para todos. Um exemplo disso, é Erica Pereira, estagiária de museologia no Museu de Arte Sacra. Ela tem provocado pequenas mudanças no local, com o objetivo de abrir as portas para a população com deficiência, seja ela qual for. Sua primeira iniciativa foi organizar uma exposição acessível, chamada “Exposição de Museu ao Tato”, na qual placas de identificação em braile foram colocadas nas peças, além de incluir maquetes que permitiam o toque.


Na ocasião, ela convidou uma associação de cegos de Aracaju para visitar o evento e preparou seus colegas para recepcionar os visitantes da forma correta. “Meu maior desejo é tornar o museu um espaço democrático, e para isso, ele precisa ter a mente e as portas abertas para todas as pessoas”, destaca a estudante de museologia. Pessoas conscientes de sua responsabilidade, merecem foto e, por isso, Cristina faz questão de registrar o acolhimento que recebe. Inclusive, ser carregada no colo por alguém como Érica é menos constrangedor.


A alegria de encontrar alguém que entende suas dores. Imagens: Paloma Freitas


O QUE AS AUTORIDADES ESTÃO FAZENDO


Passear no centro histórico de São Cristóvão não é uma tarefa fácil. As ruas são de pedra, mais estreitas que as dos centros urbanos, com vários degraus e ladeiras. Para as PCDs, usuárias de cadeira de rodas, o desafio pode ser multiplicado por dez. Cristina Santos, explica que em um percurso como este, a instabilidade da cadeira é enorme, então é fundamental ter um acompanhante para empurrar e reduzir o desconforto. Inclusive, para quem tem sensibilidade nos membros inferiores, assim como Cristina, sente formigamento e câimbra por conta do trepidar da cadeira. Ou seja, o que deveria ser um passeio pela cidade se torna cansativo e dolorido, tanto para os PCDs, como seus acompanhantes, que por estarem empurrando a cadeira nas ladeiras, sentem dores nas costas e braços.


Rampas e pisos mal estruturados acabam com o passeio das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Imagem: Paloma Freitas.


De acordo com Maíra Campos, arquiteta da Secretaria de Infraestrutura de São Cristóvão, as modificações necessárias nas rampas só podem ser feitas em caso de reforma, não em uma manutenção. Por isso, a manutenção da Praça da Matriz que está em andamento, que provavelmente não incluirá a adaptação de rampas em más condições. Com relação aos buracos nas ruas e ao desnível entre uma pedra e outra, também não há previsão de reforma.


Ainda que a lei de 2014 seja uma ferramenta para garantir a igualdade de acesso aos espaços públicos e privados, a arquiteta justifica que oito anos é pouco tempo para fazer as devidas mudanças e considera que, em comparação com outras cidades históricas, São Cristóvão recebe pouco investimento para infraestrutura. “Não temos um grande projeto como o do Pelourinho, mas todos os novos estão sendo construídos em acordo com as normas de acessibilidade”.


Em nota, o Iphan respondeu que a acessibilidade é uma questão priorizada. “Todos os projetos que passam pela análise e aprovação do Iphan são avaliados tanto sobre os aspectos do impacto ao patrimônio quanto do atendimento às normas de acessibilidade”. Ainda de acordo com o instituto, o mesmo ocorre com os projetos do Programa de Preservação de Cidades Históricas (PPCH) ou de iniciativa privada que buscam atender às normas de acessibilidade aos bens culturais imóveis acautelados em nível federal.”


A maior parte do centro histórico é composta por paralelepípedos, o que dificulta o trânsito de usuários de cadeira de rodas. Imagem 1 e 2: Tatiane Macena Imagem 3: Paloma Freitas.


Nas igrejas, a garantia de condições de acessibilidade, seja na entrada ou dentro delas, é de responsabilidade da Arquidiocese Católica. Aparentemente, nenhuma Igreja foi reformada com intuito de ser um espaço acessível. Guiados pela nota do Iphan, esperamos que a Igreja de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, atualmente em reforma, seja pioneira na cidade em garantir essas condições.


O degrau e o tapete limitam a mobilidade de usuários de cadeiras de rodas e de pessoas com muletas. Imagem1: Tatiane Macena. Imagem 2: Paloma Freitas.


UM SONHO ADIADO PELA FALTA DE ACESSIBILIDADE


Alguns funcionários dos museus justificam a falta de acessibilidade em função da baixa demanda de pessoas necessitando desses recursos. A arquiteta da Secretaria de Infraestrutura de São Cristóvão, Maíra Campos discorda. “Independente do número de pessoas que necessitem das ferramentas de inclusão, a lei 13.146/2015 precisa ser aplicada.” Por isso, apesar de não ter acesso a nenhum levantamento das deficiências mais comuns em São Cristóvão, ela busca incluir todas as categorias nos projetos da prefeitura pelos quais é responsável.


Além disso, a falta de procura não é um indicador confiável, isso porque muitas pessoas que gostariam de conhecer a cidade desistem por ter conhecimento prévio das dificuldades. . É o caso de Jane Miranda, a estudante de jornalismo na Universidade Federal de Sergipe é baiana e usuária de cadeira de rodas. Ela mora no bairro Rosa Elze desde 2019, e afirma que um de seus sonhos é conhecer o centro histórico de São Cristóvão.


Com a chegada do Festival de Artes de São Cristóvão (FASC) 2022, ela planeja realizar esse sonho, mas teme não ter autonomia. “Quero ir ao festival, mas não sei se será possível por causa da falta de acessibilidade. Tenho medo de me deslocar e precisar voltar para casa por não conseguir transitar.” Jane tem esperança de não se decepcionar com a cidade e nem acabar com a diversão dos amigos.


A imagem mostra Jane, em sua cadeira de rodas, posicionada do lado direito.  Jane é uma mulher de pele parda e cabelos longos lisos, ela sorri e apoia uma mão na outra. Na imagem também é possível ver uma parte de pisos táteis nas cores azul e vermelho.
A estudante de jornalismo Jane Miranda ainda não conhece o centro histórico de São Cristóvão por temer a falta de acessibilidade. Imagem: Arquivo Pessoal.

Contamos à secretária de turismo e cultura de São Cristóvão sobre a expectativa de Jane com o FASC, e perguntamos quais os preparativos do evento quanto à acessibilidade. Paola Santana afirma que a edição contará com um camarote da acessibilidade, com vista privilegiada do palco principal, além de um banheiro adequado na Praça São Francisco. “Na maioria das vezes, as pessoas com deficiência estão à margem da população e é isso que queremos mudar. Sabemos que é um projeto a longo prazo, mas em relação à edição de 2019, já melhoramos as condições para receber PCDs no FASC.”


O DESAFIO DE SER PCD EM UMA CIDADE HISTÓRICA


Não é só o turismo e o FASC que precisam se adaptar, mas a cidade como um todo, já que também existem pessoas com deficiência que moram no município. A jornalista e paratleta de badminton, Lucivânia dos Santos, conta que apesar de residir na cidade, não costuma ir ao centro histórico, devido à dificuldade de transitar nas ruas com paralelepípedo e a falta de sensibilidade das pessoas.


Na infância, ela adorava ir à praça São Francisco e à biblioteca. Depois que adquiriu a deficiência por conta de um erro médico, precisou usar cadeira de rodas, e só então, descobriu o diagnóstico de raquitismo hipofosfatêmico, uma doença rara e progressiva causada por uma falha renal que deixa os ossos frágeis e doloridos. Lucivânia sente saudade de passear nesses lugares, mas infelizmente, só consegue fazer isso quando tem um acompanhante.


Na imagem há uma mulher negra, usuária de cadeira de rodas, posicionada no centro, ela sorri e apoia os braços na cintura usando um vestido preto com flores rosas. No fundo da paisagem, há uma placa escrito Point do Açaí.
Lucivania dos Santos, moradora da cidade histórica de São Cristóvão. Imagem: Tatiane Macena.

“Não tenho autonomia nenhuma na minha cidade. Só consigo me locomover sozinha nas praças porque são planas, mas até chegar lá preciso de ajuda”. Lucivânia sente vergonha por precisar de um acompanhante para passear na própria cidade. Já não é fácil subir uma ladeira, ainda mais se equilibrar para empurrar a cadeira de rodas. Geralmente, o irmão dela acompanha nos compromissos. Quando ele está ocupado, ela é obrigada a desmarcar. Apesar de fazer atividade física, o rapaz sente dores no corpo constantemente, devido a má postura para empurrar a cadeira e o percurso de ladeiras e degraus, sustentando o peso da irmã.


Na imagem, retirada em uma praça, há a indicação de movimento. Em uma adeira bastante íngreme, Cleyton um rapaz negro e forte,  faz força para empurrar a cadeira de rodas e a irmã em direção ao centro histórico de São Cristóvão. Apesar de não ser um local plano, é  possível notar pisos táteis na extensão da praça. Também há algumas árvores.
Em um dia de chuva, Cleiton e Lucivânia caíram ao tentar subir essa ladeira. O susto foi grande, mas hoje eles se divertem ao lembrar. Foto: Tatiane Macena.

Lucivânia também comenta sobre o sentimento que carrega ao ter que entrar em alguns lugares pela porta dos fundos. “Quando não consigo acessar um local, me sinto triste, revoltada e excluída. Só porque um é andante e eu sou usuária de cadeira de rodas, não posso entrar pela porta principal? Todos temos o direito de ir e vir, eu não deveria entrar por um lugar escondido e sim pelo mesmo lugar que os outros”, questiona a paratleta.


UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL


Ser um turista usuário de cadeira de rodas em São Cristóvão é carregar consigo a incerteza de poder chegar onde deseja, pois nem todos os espaços vão atender às suas necessidades. Para uma moradora da cidade, os degraus e ladeiras são um lembrete diário da falta de acolhimento. Mas, mesmo depois de perceber que a cidade se fecha a sua presença, ouvimos Cristina Santos chamar São Cristóvão de “lugar maravilhoso”.


A turismóloga respeita a história da cidade, ainda que a sua própria história seja desrespeitada. E reafirma o que acredita que é sua missão na Terra. “Estou aqui e trabalho, todos os dias, para evitar que outras pessoas com deficiência passem o que passei”. Apesar do dia desgastante, ela se disponibiliza para contribuir com o trabalho de consultoria, caso as autoridades responsáveis estejam interessadas.


Enquanto as mudanças que exigem maior burocracia estão sendo organizadas, a prefeitura e o Iphan podem estabelecer uma parceria em prol de melhorar as condições de acessibilidade de modo paliativo. As medidas devem começar com um mapeamento dos moradores com deficiência, a fim de entender as necessidades reais de quem está na cidade diariamente; e seguir com capacitações dos profissionais, para questões de acessibilidade; distribuição de rampas móveis, como a da biblioteca Lourival Baptista; e melhor aproveitamento dos espaços térreos; além de eventuais exposições a céu aberto.


Assim como o poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade, diz em um dos seus poemas: “no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho”. Nas cidades históricas, as pedras estão no meio do caminho entre a mobilidade urbana e a acessibilidade. Mas com um trabalho em conjunto, a prefeitura e o Iphan, podem transformar São Cristóvão numa cidade mãe de TODOS, sem exceção.

 

Para mergulhar na experiência de turismo acessível através do audiovisual, acesse o webdoc "Turismo acessível em São Cristóvão" no Youtube do Portal Contexto.

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