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Dos Bricelets à Moqueca na Palha, diferenças gastronômicas presentes em São Cristóvão

Atualizado: 25 de nov. de 2022

Por Karla Mota, Raíssa Sousa e Tauã Ferreira

 
Imagem de um peixe enrolado na palha de bananeira ao lado de um pacote de biscoito quadrado sob um prato de vidro transparente.
Da delicadeza do Bricelet à rústica Moqueca na Palha, diferenças culinárias da cozinha são-cristovense. Imagem: Tauã Ferreira.

Rica em História e Memória, a Cidade Mãe de Sergipe, São Cristóvão, encanta não só por suas belezas, mas também pelo cheiro da culinária sergipana que conquista quem passa pela cidade. Foi ainda no terminal de ônibus que nos encantamos pela cozinha são-cristovense quando lemos em um Guia Turístico sobre os famosos biscoitos das freiras beneditinas, os Bricelets, produzidos na Cidade Alta do município. Nossos olhos brilharam ainda mais quando, na página seguinte, o guia nos apresentou a famosa Moqueca na palha, produzida principalmente pelas mulheres que moram na região da Cidade Baixa.


Na descrição do local onde o peixe é vendido, a visita era desestimulada. “É dispensável!”, informava o guia. Um tanto intrigante um Guia Turístico desestimular a visita a uma área da histórica cidade tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas isso abre um caminho para compreender o significado e as diferenças entre esses dois pontos, a Cidade Baixa, que abriga a gastronomia mais popular, como a Moqueca na palha, e a Cidade Alta, que abriga os alimentos mais refinados e com mais visibilidade turística, como os Bricelets.


#ParaCegoVer: Imagem da Cidade São Cristóvão em que aparece uma rua em ladeira que liga a parte baixa e a parte alta do município. Na rua há casas, automóveis e vegetação local. A foto foi tirada à luz do dia.
Vista da Cidade Baixa no alto da ladeira José do Prado Franco, também conhecida como Ladeira da prefeitura. Imagem: Karla Mota.

Esse paralelo gastronômico é reflexo das diferenças sociais entre as duas cidades de São Cristóvão, enraizado nos aspectos históricos e caracterizado na origem culinária dos dois alimentos. O Bricelet, um dos principais alimentos turísticos da cidade, trazidos da Suíça pelas irmãs da ordem São Bento, tem origem na cozinha europeia seguindo princípios cristãos, enquanto a Moqueca na Palha é uma das heranças da culinária indígena, que utiliza a folha da bananeira para cozinhar os alimentos de forma mais rústica.


De acordo com Luara Lázaro, pesquisadora e turismóloga, a partir do estudo da origem desses alimentos e dos seus aspectos sociais, é possível conhecer e compreender a cultura e os costumes da cidade, pois a história dos alimentos está atrelada à história do seu povo. ”Não tem como falar da comida e não falar das pessoas, a história dessas pessoas está atrelada a essas comidas e à história do município. É possível recontar a história de São Cristóvão a partir dos alimentos e da representatividade que ela tem dentro do contexto econômico, social, cultural e ambiental”, informa Luara.


Essa característica não está presente apenas na maneira como esses alimentos são apresentados, mas também na forma como são preparados e consumidos. “Comida é identidade, a gente conhece as pessoas e a história delas a partir do que elas comem e não comem, inclusive o grupo social ao qual elas fazem parte”, explica.


A diferença gastronômica entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa é resultado do processo histórico-geográfico do município. “A Cidade Alta sempre teve esse viés mais elitista, símbolo do poder político e da vida cristã, enquanto a Cidade Baixa era, e ainda é, uma região mais popular e isso é uma característica do governo português que se baseava nessa distinção para dividir as classes sociais”. No Centro Histórico de São Cristóvão, por exemplo, funcionam os principais pontos administrativos da cidade e estão localizadas as famosas igrejas reconhecidas como Patrimônio Histórico.


#ParaCegoVer: Imagem da Praça São Francisco em São Cristóvão com enquadramento focado na escultura de Cruz localizada na área da praça. Ao redor estão prédios do sítio arqueológico que compõem o patrimônio da humanidade abrigado na cidade. A foto foi tirada à luz do dia.
Praça São Francisco, localizada no Centro Histórico de São Cristóvão, reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco. Imagem: Raíssa Sousa.

Morador do município, Gladston Barroso percebe essa distinção também no valor imobiliário dos imóveis. “As casas aqui em cima são muito mais caras para comprar em comparação com o valor dos imóveis na Cidade Baixa”, conta. Gladston é professor de artes e nasceu no bairro Apicum, local de grande presença de rios e mangues. “No Apicum, parte baixa da cidade, se come muito sarapatel, peixe, peixe com cuscuz, caranguejo. Uma comida mais ligada à classe trabalhadora. Quando tinha pesca, as mulheres ficavam com os peixes menores justamente para fazer a moqueca”, relata o professor.


#ParaCegoVer: Imagem dos biscoitos Bricelets. Foto que enquadra um prato branco com detalhes em azul e contém três pacotes dos biscoitos famosos na cidade. Esse prato está em cima de uma mesa com textura amadeirada. Os Bricelets contém rótulo azul com informações de contato e logomarca da loja responsável pela sua fabricação.
Em cada pacote de Bricelet vão quatro unidades de biscoito, eles são vendidos na Casa dos Bricelets por seis reais. Imagem: Tauã Ferreira.

De origem suíça, os famosos biscoitos de massa fina e forma quadrada que derrete na boca, conhecidos como “os biscoitos das freiras”, chegaram a São Cristóvão através das irmãs da Ordem São Bento em 1982. A receita passou a fazer parte do cotidiano da cidade, produzidos e vendidos pelas freiras beneditinas para ajudar na manutenção do Convento do Carmo.


De acordo com Alexnaldo Neres, historiador, apenas em dois estados brasileiros os biscoitos são produzidos. “Só tem em Sergipe e em Pernambuco, onde hoje as monjas beneditinas têm um mosteiro”, informa. Com a saída das irmãs da cidade em 2003, a receita e as máquinas utilizadas para o preparo ficaram como herança para as irmãs do Lar Imaculada Conceição, localizado na Praça São Francisco.


No antigo Lar da Imaculada Conceição, funciona atualmente a Repartição Pública de São Cristóvão.

Imagem: Tauã Ferreira


As freiras do Lar da Imaculada Conceição, que além de orfanato também funcionava como uma espécie de hospital de caridade e hoje abriga a Repartição Pública da cidade, adaptaram a receita original substituindo o creme duplo e o vinho para os sabores cítricos do suco de laranja e raspas de limão. De acordo com Vera Maria Gomes, antiga funcionária do orfanato, as irmãs ensinaram o preparo para todos os funcionários do lugar. “Essa era a ajuda que tinha para manter o orfanato. A casa era muito grande e gastava muito, as freiras não tinham dinheiro e o fim delas era trabalhar para ajudar os outros”, relata.


Vera começou a trabalhar no Lar em 1990 quando tinha 16 anos e estava acompanhando uma criança que tinha sofrido um acidente, na época o local também funcionava como hospital. Desse dia em diante, a moça entrou como uma semi-interna, aprendeu a cuidar das pessoas, fazer os biscoitos e até a rezar missa. A missa ela não rezava, mas levou para a vida todo ensinamento que aprendeu com as freiras do lar.


Com o passar dos anos, a mão de obra das irmãs na produção dos biscoitos foi lentamente substituída pelas mãos dos funcionários do convento que têm se esforçado para manter a tradição viva. Segundo Vera, com a saída das irmãs do Lar Imaculada Conceição de São Cristóvão, em 2017, os funcionários herdaram as duas máquinas, conhecidas como fer à bricelet em francês, e utilizadas pelas freiras para o preparo dos biscoitos. “Éramos seis funcionários e elas deixaram as duas máquinas e alguns objetos que tinham na casa para continuarmos com a produção dos biscoitos”. Hoje, apenas ela e seu marido Manoel Soares, também antigo funcionário do Lar Imaculada Conceição, estão responsáveis pelo preparo e a venda dos Bricelets no estado.


#ParaCegoVer: Imagem de uma das máquinas seculares produtoras de bricelets. Instrumento em cor escura posicionada em cima de uma mesa. A parede do local em que estão guardadas é branca, bem como todo ambiente.
s biscoitos são assados nas máquinas trazidas da Suíça pelas monjas beneditinas. Imagem: Karla Mota.

Com a ajuda da prefeitura e de amigos, eles conseguiram abrir duas lojas para a venda dos biscoitos, a mais conhecida fica vizinho à Praça São Francisco, na Rua Coronel Erondino Prado e recebe diariamente visitas de turistas, a outra está localizada na Avenida Paulo Barreto de Meneses, na entrada do município.


Quem experimenta a iguaria não imagina que o processo é lento e demorado. Segundo Vera, antes de serem assados a massa deve ficar descansando durante vinte e quatro horas. “Só no dia seguinte é que dá para fazer o biscoito, a produção é lenta porque a gente só tem duas máquinas e cada máquina faz só dois biscoitos. Demora muito e é manual”, ela conta. Esse processo ainda tem um fator contribuinte para a demora da produção, as máquinas são quentes e pequenas. “O pessoal vem, compra, mas nem imagina o trabalho que dá. Passo a noite acordada fazendo os biscoitos porque de dois em dois demora a terminar”, ressalta a doceira. Para a produção dos biscoitos, Vera conta com o auxílio do esposo Manoel.


Imagem com uma família que possui 4 integrantes, uma mulher branca ao lado de uma mulher negra posicionada ao lado de um homem negro, em frente ao homem se encontra uma criança do sexo feminino branca. As pessoas estão posicionadas em frente uma porta com uma frase colada acima escrita “Casa dos Bricelet”.
Vera e Manoel ao lado da sua filha Verônica e a neta na Casa dos Bricelets. Imagem: Tauã Ferreira.

O Bricelet leva em sua massa leite, farinha, ovos, açúcar e o frescor do suco de laranja e das raspas de limão. O sabor lembra uma casquinha de sorvete com toque cítrico. Nele, são impressas figuras brasonadas que remetem a uma hóstia, símbolo do catolicismo. Pode ser servido com acompanhamentos, como sorvetes e bolos e um delicioso café ao lado. Para o Festival de Artes de São Cristóvão, Vera conta que está elaborando receitas que complementam o Bricelet. “Estamos querendo criar receitas que enriquecem o Bricelet, ele com sorvete, torta, geleia ou mousse”.


A riqueza presente no Bricelet e sua importante relação histórica com São Cristóvão foi reconhecida em 2021 quando, a partir do Projeto de Lei da deputada estadual Maria Mendonça, sob a Lei 8.931/2021, foi declarado como Patrimônio Imaterial de Sergipe. Apesar do reconhecimento e da fama dos biscoitos que atrai diversos turistas, a doceira ainda sente dificuldades na produção e nas vendas do Bricelet, devido aos preços altos dos ingredientes e a dificuldade de locomoção. “A gente tá há tanto tempo com os biscoitos, mas ainda não tivemos condições de comprar nem uma motoca. A entrega eu faço de ônibus ou topique”, relata Vera. Embora com dificuldades, ela não desiste e, para manter a receita e a produção viva, ensina o modo de preparo para a família. “Tô passando para os filhos, neto, cunhado, irmão porque quando eu não estiver aqui, tem alguém para fazer. Já ensinei a todo mundo”.


A história do Bricelet é uma história rica entrelaçada com a história do povo são-cristovense, um biscoito trazido por freiras que se baseia em uma receita suíça, mas que tem a cara de São Cristóvão. O legado do Bricelet, assim como as demais iguarias da culinária da cidade, se mantém vivo graças a força e luta de pessoas como Vera e Manoel.

“O Bricelet hoje é patrimônio graças a Deus, ao prefeito que sempre me ajudou a divulgar e graças a mim e a Manoel que nunca deixamos de fazer e ver que o Bricelet tem um grande potencial nessa cidade”, relata Vera.

MOQUECA NA PALHA


#ParaCegoVer: Imagem da Moqueca na Palha. Na imagem há três peixes fritos dentro de uma palha de bananeira. A moqueca está dentro de um prato de vidro transparente posicionado em cima de uma mesa com estampas coloridas.
Moqueca de folha assada no fogo à lenha, também conhecida como moqueca seca. Imagem: Karla Mota.

Todos os sábados, na feira da Cidade Baixa, ao lado do Mercado Municipal Lauro Rocha de Andrade, é vendida a Moqueca na palha, também conhecida como moqueca de folha. Quando se fala em moqueca de peixe, logo se imagina aquela no estilo baiano, com dendê e azeite. A moqueca famosa na Cidade Baixa é o peixe assado na folha de bananeira, chamado de moqueca seca.


Para comprar é preciso chegar cedo na feira, entre sete e nove horas da manhã, ou encomendar com as moças que, além da moqueca, também vendem camarão e sururu pescado por elas no Vaza Barris, rio que banha os estados da Bahia e Sergipe.


Quem não consegue encomendar ou chegar cedinho na feira, pode dar a sorte de encontrar uma senhora vendendo pelas ruas de São Cristóvão. Todos conhecem alguém que vende a famosa moqueca na folha, mas ninguém sabe quem é ou de onde é. “Tinha uma moça que passava por aqui pelo Mercado e vendia nas mesas dos bares, mas tem tempo que não vejo, não sei nem se faz ainda”, comenta Maria Rita de Souza, moradora da região.


#ParaCegoVer: Imagem de uma poesia e arte xilogravura sobre a moqueca na palha. Na primeira página, a arte de uma mulher carregando uma bacia com o alimento na cabeça e na página seguinte um poema que referencia o alimento e a profissão da mulher anteriormente mencionada.
Poema “Muqueca” escrito pelo sergipano Thiago Fragata no livro “São Cristóvão poética e xilogravada”, com ilustrações dos artistas Nivaldo Oliveira e Gladston Barroso. Imagem: Karla Mota..

Mas, além das vendas pela famosa desconhecida senhorinha da moqueca e das vendas na feira aos sábados, ela é produzida por encomenda nos bairros da Cidade Baixa. O mais famoso deles é o Apicum Merém, local rodeado por mangues e rios que abriga uma grande quantidade de pescadores e marisqueiros da cidade. Cinthia dos Anjos é uma dessas moradoras que pesca peixe, camarão e sururu e faz a moqueca para vender na feira. Ela aprendeu a pescar com os pais na infância e há dez anos produz a iguaria.


O fazer da moqueca está diretamente relacionado à pesca, comum entre as mulheres que a produzem e tradição passada entre as gerações. Como Cinthia, Gilzete Barreto aprendeu o ofício com os pais aos dez anos e prepara a iguaria há dois. Aprendeu sozinha para ser mais uma fonte de renda na família.


#ParaCegoVer: Imagem de duas moças negras. Uma delas está usando avental verde e a outra uma touca lilás, ambas vestimentas representando seu ofício.
Além de vizinhas na cidade, as duas pescadoras também compartilham as barracas na feira de Cidade Baixa, São Cristóvão. Imagem: Karla Mota.

A pesca é demorada, é preciso ter paciência e chegar cedo. Cinthia pesca nas segundas, terças e quartas, mas fica dependendo da maré para encontrar bons peixes. “Eu saio às cinco da manhã, dependendo da maré cheia, a gente tem que acompanhar a maré vazando e voltar”, conta Cinthia. De acordo com o Glossário de Palavras, maré vazante é a transição da maré cheia para a maré seca.


Cinthia utiliza peixes como robalo, pescadinha-branca e pescado, mas há quem faça moqueca de aratu e camarão. “Eu faço de peixe porque de aratu dá muito trabalho, tem que quebrar, deixar na carne, misturar com os temperos para poder botar na folha”.


Segundo a pescadora, preparar o peixe é fácil, só demora para assar e requer bastante atenção para virar o lado da moqueca sempre que necessário. O peixe é assado na folha de bananeira e amarrado com pindoba, planta da família das palmas.


O preparo é feito com tomate, cebola, coentro, cebolinha, massa de pimentão e pimenta. “A gente trata o peixe já coloca o sal nele para deixar a carne mais firme enquanto fazemos o tempero. Depois lava o peixe para tirar o sal e adiciona os temperos para deixar marinando. Corta a folha de bananeira em três partes para colocar em três camadas, depois colocamos o peixe na folha, colocamos o tempero por cima, amarramos com pindoba e colocamos para assar. Quando a gente vê que a palha da bananeira está douradinha já está pronta para ser consumida”, descreve Cinthia.


#ParaCegoVer: Imagem do peixe cru e temperado em cima da folha de bananeira para embalo. As mãos da produtora aparecem na imagem.
Em cada palha de bananeira, Maria assa três peixes com os temperos e a pimenta feita por ela. Imagem: Karla Mota.

A venda da moqueca é a única fonte de renda para algumas dessas mulheres. Maria da Conceição pesca desde a infância. Na maré, pesca peixe, camarão, aratu e sururu. “Pesco de redinha tem muitos anos, desde criança que eu trabalho na maré”, comenta a senhorinha enquanto tempera o peixe. Devido à idade, dona Maria tem deixado de pescar, prefere comprar os peixes e as folhas de bananeira para o preparo.


O preparo ela aprendeu com a mãe que fazia para a família. “Minha mãe fazia para a gente comer, a gente tinha muitos vizinhos e ela dava o peixe para esses vizinhos, aí eu aprendi”, lembra. Uma característica marcante da moqueca da dona Maria é a utilização do molho de pimenta feito por ela. “Eu compro a pimenta e faço o molho, tiro os talos, coloco cebola, alho, coloco no liquidificador e pronto. Depois vou fazer um suco e ninguém aguenta”, ela brinca.


#ParaCegoVer: Imagem de uma mulher negra cozinhando. A moça aparece amarrando uma trouxa de peixe enrolado na palha de bananeira em cima de um tanque de concreto. Posicionado em cima do tanque há uma bacia com diversos peixes preparados para embalo. Ao fundo, utensílios de casa aparecem nas paredes.
Dona Maria compra a folha de bananeira por quinze reais vinte unidades. Para amarrar, utiliza folha de pindoba. Imagem: Karla Mota.

Para a moqueca ela utiliza uma variedade de peixes, como tainha, vermelho, robalo e pescada-branca. Com três quilos de peixe dá para produzir e vender quinze moquecas, cada uma a sete reais.. Para as vendas, dona Maria conta com a ajuda dos dois netos que auxiliam olhando as moquecas na chapa e nas vendas pelas ruas de São Cristóvão e praias de Aracaju.


Quando a palha começa a escurecer, é sinal de que a moqueca está quase no ponto. Imagem: Karla Mota.


Além do peixe, preparado por Cinthia, Gilzete e dona Maria, a moqueca de aratu na palha também é bastante conhecida. O aratu é uma espécie de caranguejo de forma quadrada e acinzentada. Mais trabalhosa, a moqueca é feita por mulheres que também trabalham na pesca. Cristhiane Oliveira aprendeu o preparo com a mãe que vendia pelas ruas de São Cristóvão e relata as dificuldades da pesca e do preparo. “É complicado porque ficamos dentro da lama, com os mosquitos mordendo, as mutucas mordendo. É uma pescaria que você tem que ficar parado”, relata a pescadora.


A venda das moquecas não é a única fonte de renda de Cristhiane, ela também trabalha como diarista em Aracaju. Apesar das dificuldades, sente imensa felicidade em preparar as moquecas porque está relacionada a história de vida da sua família. “Através da moqueca eu tive esperança, até hoje converso com minha filha e falo que sobrevivi graças a moqueca. Dá até vontade de chorar porque é algo que começou com a minha mãe”, conta emocionada.


DO BRICELET À MOQUECA NA PALHA


A gastronomia de um lugar está intrinsecamente ligada à história e geografia do local, assim como a história das pessoas que a preparam e a consomem. Comida é cultura e, de acordo com Luara Lázaro, a culinária muda a depender da cultura ao qual ela está inserida. “Ela tem muita relação com a localidade na qual ela se insere, com os gostos daquelas pessoas, ingredientes disponíveis”, explica. Todos esses aspectos contribuem para que a gastronomia se torne múltipla e mutável de acordo com os gostos das pessoas.


Em São Cristóvão, os famosos Bricelets, doces da Cidade Baixa estão inseridos em um contexto que abriga a população com mais requinte do lugar. Um doce trazido da Europa e ligado à religião cristã que recentemente teve seu reconhecimento como patrimônio é valorizado enquanto relação histórica com o seu estado. A sofisticação dos doces é reflexo do período do açúcar no Brasil que contribuiu para que este fosse tão representativo dentro da gastronomia. “Por isso o doce é tão latente no município. Quando se fala em comida, você tem uma preponderância maior dos doces do que das comidas salgadas”, informa Luara.


Quem prova se apaixona e não consegue comer um só, o biscoito derrete na boca com gostinho de infância. Os Bricelets são marco da história são-cristovense e o legado é conduzido por duas pessoas que se comprometeram em deixar viva a receita que tem um pedaço da história de São Cristóvão.


No entanto, há uma diferença entre o Bricelet e a Moqueca na Palha, caracterizado tanto pela diferença gastronômica como pela forma de preparo, por quem é preparado e a população que consome. A moqueca é feita em uma região portuária de forma rústica, pescada por mulheres nos rios e mangues da Cidade Baixa, feitas no forno muitas vezes improvisado. “Eu conheci duas pessoas que fazem moqueca na palha. Uma utiliza a porta de uma geladeira que transformou em uma chapa e a outra tem um pedaço de ferro que ela faz em cima”, relata Luara sobre a forma de se preparar o peixe.


A moqueca não é tão valorizada porque ela não é vista, portanto, não se investe. É uma gastronomia voltada para a população, consumida nos bares da Cidade Baixa. Luara explica que o que faz a publicidade dessas pessoas é o quanto elas são ou não vistas. “Muitas vezes ela é muito famosa em um lugar, no Apicum, por exemplo, mas fora dali ninguém conhece”. Para serem reconhecidas, elas precisam ser retiradas daquele espaço. Algumas pessoas vendem nas praias de Aracaju ou levam para cidades próximas como Itaporanga, Salgado ou no Abaís. “Na Aruana você vê umas senhorinhas vendendo a moqueca, elas são de São Cristóvão. São pessoas que se mantém do turismo, mas não do turismo em São Cristóvão, se mantém do turismo de fora”.


Essa desvalorização da iguaria tem diminuído a produção da moqueca e resultando na dificuldade em encontrá-la. Vânia da Silva, faz moqueca há quinze anos, hoje não vende mais devido ao trabalhoso processo de pesca e preparo. Apesar dos ingredientes baratos, a pescadora relata que muitas vezes as pessoas da própria região acham caro o valor e não compram. Cada moqueca sai em torno de sete a dez reais e até Cristhiane que vende a de aratu a três reais, também vê dificuldade nas vendas.


Mas, tanto a Moqueca quanto o Bricelet representam a história da cidade, elas apenas estão inseridas em contextos diferentes, mas esse aspecto não retira de cada alimento sua importância histórica e social para o município de São Cristóvão tão enriquecido culturalmente e gastronomicamente.

 

E, para conhecer mais essa riqueza saborosa, acompanhe o Rota dos Sabores, um roteiro pela cidade mostrando um pouco da culinária e dos deliciosos temperos são-cristovenses, no Youtube do Portal Contexto.











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