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Rituais de fé e devoção se renovam em Itabaiana

Por Caio Queiroz, Lílian Dias, Keven Santos e Sofia Amaral

 

Foto: Pascom da igreja Santo Antônio e Almas

Punição. Castigo. Sofrimento. Dor. Expiação. Tortura. Tudo isso já esteve intimamente associado à penitência. Não à toa, o termo, originado do grego, remete à pena imposta para remissão de um erro cometido. Essa ideia foi construída por volta do século XIII, na Europa Medieval, quando indivíduos frequentemente associados a movimentos religiosos passaram a se envolver em práticas severas de automortificação como forma de buscar a salvação espiritual.


Guy Veloso, fotógrafo documental especializado na religiosidade brasileira, relata em sua obra “Penitentes” que as práticas desses devotos variavam amplamente e incluíam jejum extremo, autoflagelação, uso de cilícios (roupas feitas de material áspero), peregrinações a locais sagrados e outras formas de autonegação. Em contrapartida, com a modernidade, e as novas dinâmicas sociais por ela implicadas, a penitência passou a ser manifestada de formas pouco ou nada extremas, como a prática da oração diária.


Nesse sentido, Itabaiana se apresenta como uma prova viva da renovação das tradições religiosas. Embora o mesmo ocorra em outras localidades, o município do agreste sergipano é destaque pela manutenção na intensidade da devoção, bem como dos grupos religiosos mais tradicionais, que exprimem a essência da sua fundação. Com isso, se torna um dos poucos lugares que ainda mantém o equilíbrio entre o antigo e o contemporâneo nas práticas de penitência, muito devido à religiosidade enraizada na sua história.


ENTRE A TRADIÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES


A penitência não morreu; ela se reconfigurou. Se, antigamente, indicava castigo físico, hoje sugere sossego, sobretudo aquele promovido por práticas brandas de fé, como as orações. Apesar de, ainda assim, ser menos frequente, permanece como uma face visível da fé e religiosidade dos itabaianenses. Contudo, embora isso reflita na evolução social na compreensão da espiritualidade, em muitos lugares pode colocar em cheque tradições religiosas longevas e importantes para a manutenção da cultura.

Em Itabaiana, no entanto, isso ainda está longe de ser sentido. Fato é que o Grupo Irmandade das Almas, presente desde a fundação da primeira povoação na cidade, no século XVII, e responsável por ter arrecadado doação dos fiéis para a compra do terreno que hoje é a Igreja de Santo Antônio, em 1675, ainda se mantém ativo. Atualmente, o grupo é formado por cerca de 30 pessoas, entre homens e mulheres, e objetiva rezar pelas almas do purgatório e visitar, todas as terças-feiras, uma família para rezar o terço.


Sequência de registros históricos de procissões em Itabaiana do grupo Irmandade das Almas; e, mais recente, procissão de Santo Antônio em 2023 que reuniu cerca de 40 mil fiéis.

Foto: Acervo pessoal de José Arnaldo da Cunha


De acordo com Marcos Salvador, administrador da Paróquia Santo Antônio, o grupo existe há 358 anos e sua força é tamanha a ponto de ainda contribuir financeiramente para a manutenção da paróquia. “As receitas da Irmandade das Almas são provenientes do laudêmio, uma taxa cobrada sobre a transferência de propriedade dos imóveis localizados no entorno da Igreja Matriz e do Cemitério Irmandade e Almas de Santo Antônio, do qual lucra com aluguel e venda de jazigos.”


Durante dois longos séculos, a Matriz de Santo Antônio foi o único referencial de civilidade da cidade. Posteriormente, e até então, foram fundadas mais seis paróquias, incluindo a Paróquia Nossa Senhora do Bom Parto, que, desde a sua fundação, está envolvida no Apostolado da Oração, rede mundial de oração dedicada à missão da Igreja e aos desafios da humanidade, expressos nas intenções mensais de orações do Papa.


Sueli Santos, 58, atual coordenadora do grupo, explica que o grupo aproveita a primeira sexta-feira do mês, em que acontece a missa em devoção ao Sagrado Coração de Jesus, para se reunir. “A missa acontece às 8h30. Após ela, 107 membros são convidados a uma reunião para orar pelas intenções apresentadas pelo Papa. São 178 anos de grupo.”


Para além dos grupos religiosos ancestrais, o culto à penitência em Itabaiana também é notório na tradição das procissões. Anualmente, no dia 13 de junho, a Paróquia Mãe da cidade promove a Procissão de Santo Antônio, celebração ritualística que é símbolo da devoção ao padroeiro da cidade, e atrai religiosos e visitantes de diversas localidades. Isso também ocorre na Festa dos Caminhoneiros, quando a comunidade segue pelas ruas da cidade carregando imagens e símbolos em demonstração de fé e gratidão.


Procissão é parte da programação da Festa dos Caminhoneiros desde o seu surgimento.

Foto: Pascom da igreja Santo Antônio e Almas


QUEM SÃO OS NOVOS DEVOTOS PENITENTES?


As formas de penitência se renovam e, com elas, revelam-se novos devotos penitentes. Na visão de Maria Jeane Alves, professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe, as devoções pedem do indivíduo uma penitência, ou seja, um cumprimento não mais punitivo como no período medieval, mas que, renovada, gera satisfação.


“A penitência não é só de mutilação, de flagelação, é do cumprimento de um ritual de obrigações. Trata-se de uma obrigação que causa realização no indivíduo”, explica a pesquisadora de Psicologia e Religião. Nesse sentido, o ato de manter um ritual de oração, ou se voluntariar a algum serviço na Igreja, são atos de penitência, inclusive consideradas como as formas modernas mais comuns em Itabaiana.


José Henrique Santos, mais conhecido como Zé Duca, 82, conta que começou a contribuir com a Igreja aos 9 anos, quando se tornou coroinha na Paróquia Santo Antônio. Desde então, ele nunca parou. Atualmente, após sua rotineira caminhada, exercício diário muitas vezes acompanhado pela esposa, faz uma parada obrigatória no Santíssimo para expressar gratidão a Deus pela força que o oferece. Além disso, também participa do terço dos homens e das missas dominicais.


Essa é uma realidade parecida com a de Erinalda Andrade, 45, que tira alguns minutos do seu dia a dia, antes ou após o trabalho, para se conectar com Deus. Segundo ela, essa é uma obrigação que foi despertada de forma natural e gera grande satisfação. “Para mim é mais do que uma bênção passar no Santíssimo. Ali, mesmo em silêncio, consigo respostas. É um lugar que me transmite paz, é meu refúgio, é onde encontro tudo que preciso para me sentir realizada.”


O compromisso com a oração é um dos atos de penitência mais frequentes nos novos devotos penitenciais. Fotos: Keven Santos


Laudicea Silva, servidora voluntária da Pastoral da Acolhida de uma das paróquias de Itabaiana, iniciou a ação em 2021 e, desde então, serve nas missas de sexta-feira e domingo pela manhã. Ela justifica sua participação no serviço da Igreja dizendo: “Se Deus me ama, tenho que amá-lo de alguma maneira”. E assim como ela, existem dezenas de outros religiosos com a mesma visão. Moniery Silva, 28, por exemplo, é enfermeira preceptora da Universidade Tiradentes e, mesmo assim, dedica tempo ao serviço a que se compromete.


Moniery serve na Pastoral da Comunicação da Paróquia Santo Antônio e pontua que servir a Deus é um privilégio. O amor de Deus é o que sempre nos impulsiona e isso basta para estar na presença dele.” Para ela, comunicar é evangelizar. “Jesus foi o maior comunicador da História. As pessoas são evangelizadas através das nossas transmissões, das informações acerca das atividades da Paróquia”, ressalta.


Entre a tradição e as transformações, Itabaiana encontra o equilíbrio das manifestações de devoção realizadas pelos novos devotos penitentes, como Maria, Zé Duca, Erinalda e tantos outros. Isto é, homens e mulheres, de classes e idades variadas, que encontram na busca silenciosa pela evolução espiritual e a conversão do coração o motivo da firmação de compromisso com trabalhos voluntários em alguma pastoral ou simplesmente o compromisso diário da reza. Os novos devotos penitentes não visam obras exteriores, muito menos sofrimento, mas sim a mudança interior.




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