Promessa de progresso se transforma em abandono para comunidades na Praia do Jatobá
- Josino Neto
- 24 de out.
- 10 min de leitura
Por Alice Mendonça, Iasmim Guimarães, Isla Silva e Laíla Monteiro
Arte: Isla Silva
Uma região abandonada. É o que se imagina ao adentrar na Praia do Jatobá, povoado da Barra dos Coqueiros, situado a 19 km do centro do município sergipano. Logo na entrada, pela rodovia SE-100, destacam-se os aerogeradores do parque eólico, com torres de 100 metros de altura — o equivalente a um prédio de 20 andares. Poucos quilômetros adiante, as estruturas dividem espaço com a termelétrica, reconhecível pelas suas três chaminés.
A produção de energia (renovável ou não) é uma atividade importante, e a chegada de novos empreendimentos, em tese, deveriam trazer desenvolvimento para a região, conforme prometem as empresas e o governo. Nossa equipe apurou, durante um mês, os impactos que as usinas causaram na comunidade da Praia do Jatobá, que contrariam essa expectativa.
Atualmente, o local exibe um contraste entre a tecnologia das usinas e a baixa infraestrutura para a comunidade, além de prejuízos na fauna e flora da região. Mesmo rendendo altos valores em royalties, a produção de energia no povoado não é convertida em melhorias na vida dos moradores de Jatobá.
IMPACTOS PREVISTOS E VIVENCIADOS
A construção de empreendimentos como as usinas de geração de energia podem causar impactos na região instalada, indicados desde os estudos iniciais para a implementação. No Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), publicado em 2015, foram previstos efeitos socioeconômicos nas etapas de planejamento, implantação e operação da usina termelétrica (UTE), como a geração de expectativa relacionada ao empreendimento, o aumento da oferta de empregos e a arrecadação de tributos, além dos impactos ambientais, a exemplo da alteração nos níveis de ruído e qualidade do ar, a redução da cobertura vegetal e a perturbação da fauna local.
Embora as arrecadações e a geração de empregos sejam previstas como consequências positivas, sobretudo nas etapas de implantação e operação, nossa equipe constatou junto aos moradores que a presença dos empreendimentos de geração de energia pode acarretar consequências negativas para a Praia do Jatobá e seus habitantes.
O aposentado Pedro de Oliveira, morador há mais de vinte anos na praia, lamenta que a rua em frente à sua casa ainda seja de terra batida, mesmo após anos de operação das usinas. Em dias de chuva, a rua se transforma em lama, dificultando a circulação. Ele também conta que a usina termelétrica fechou a antiga entrada da praia, o que prejudicou o fluxo de turistas na região. “Antes, vinha gente todo domingo para a praia, com ônibus lotados de Santo Amaro, Maruim, Rosário e Carmópolis. Agora, acabou o movimento”, relata. Outro problema relatado pelo morador é o barulho dos aerogeradores da usina eólica, que se torna mais perceptível durante a noite.
Com a chegada da Usina, algumas estradas foram bloqueadas, barrando o direito de ir e vir da comunidade. Arte: Isla Silva
A presença das usinas também gerou consequências negativas na atividade pesqueira. É o que relata o pescador Marcos Santos, que migrou das águas de Alagoas para as de Sergipe há pelo menos 14 anos. Ele explica que a atividade pesqueira na região foi impactada com a presença da Unidade Flutuante de Armazenamento e Regaseificação de Gás Natural (FSRU), um navio pertencente à termelétrica que fica a 6,5 quilômetros da costa.
Os pescadores vão até o alto mar e ficam durante dias em busca dos peixes, que hoje estão escassos. O navio está, justamente, no local onde eles frequentavam. “O pesqueiro não é mais o mesmo. De 100%, a pescaria arruinou 50 a 60%”, relata Marcos, como uma estimativa dos pescadores locais para a produção.
O pescador José Rodrigues, com quase 28 anos de experiência, lembra do tempo em que a comunidade pesqueira do Jatobá vivia um ritmo tradicional. “Quando cheguei, só havia barracos espalhados entre o mato, à beira da praia”, diz o morador. O senhor José completa: “Pegava bastante peixe com rede, sem motor, era tudo pano, muito bom”. Hoje, José mantém cinco barcos com motores para pescar em outras áreas, mas diz que a produtividade não é mais a mesma.
Nossa equipe de reportagem constatou que a região da praia do Jatobá não tem transporte coletivo, apenas ônibus escolares, destinados aos estudantes que se deslocam do litoral para o povoado. A população que não possui veículo próprio é sujeitada a caminhar por quase 2 quilômetros em uma estrada de terra para chegar à SE-100, percurso que pode durar cerca de 25 minutos. Passamos por esse trajeto de terra e confirmamos que não há iluminação durante a noite, e quando chove, surgem buracos e lama, que reafirmam a falta de infraestrutura do ambiente.
Os três moradores citados relataram não ter recebido nenhum comunicado da empresa responsável pela usina eólica no ano de construção ou indenização por mudanças geradas. Em relação à termelétrica, os moradores disseram que as Centrais Elétricas de Sergipe (CELSE), primeira dona da usina (de 2015 a 2017), ofereceu redes de pesca como forma de indenização. O senhor Rodrigues, habitante da região, disse que, com a chegada da termelétrica, vendeu sua casa por R$ 300 mil para a CELSE. No entanto, sua casa, que era grande, foi trocada por outra menor e mais distante do seu local de trabalho, dificultando sua rotina.
Estes depoimentos são reflexos da espera de um desenvolvimento que nunca veio, mas que foi projetado, há anos, por empresas bilionárias e por um governo municipal que cedeu áreas de comunidades no local.
A ORIGEM E FUNCIONAMENTO DAS USINAS
O Jatobá é o local de instalação do Parque Eólico de Sergipe e da Usina Termelétrica Porto de Sergipe I. A primeira a chegar no território foi a usina eólica, instalada em 2013. Posteriormente, em 2020, foi a vez da termelétrica funcionar. Todas elas são provenientes de leilões da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), sendo a da usina eólica em 2009, e a da UTE em 2015.
O parque eólico é constituído por 23 aerogeradores de 100 metros, que produzem juntos 34,5 MW (MegaWatts) de capacidade instalada e 92 GW (GigaWatts) de produção anual, o equivalente ao fornecimento para uma cidade de 100 mil habitantes. De acordo com o CEO do Centro de Estratégias em Recursos Naturais e Energia (CERNE), Darlan Santos, o parque não possui uma grande capacidade. “É um projeto relativamente pequeno, do início de expansão eólica no país. Veio do primeiro leilão de energia de reserva, em 2009”, explica. A usina tem como empreendedora a Energen Energias Renováveis, controlada pela norueguesa Statkraft, maior empresa de produção renovável da Europa.
Já a Termelétrica Porto de Sergipe I é a segunda maior da América Latina. Ela é movida por gás natural, transportado de navio para a base terrestre. Sua capacidade instalada é de 1,6 GW, o que torna possível o suprimento de 15% de energia do Nordeste. O professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Milthon Serna, explica a eficiência desta usina. “A tecnologia que ela utiliza é uma das mais avançadas. Em termos de competitividade dentro de outras usinas térmicas, a que está na Barra dos Coqueiros é um passo à frente”, afirma.
Em 2015, a usina era da Genpower Participações S.A.. Já em 2017, foi transferida para a CELSE, que, em 2022, foi comprada pela Eneva por R$ 6,7 bilhões, atual dona da termelétrica e maior operadora de gás natural do Brasil. A estrutura só funciona periodicamente, em momentos onde há seca no país.
Mapa mostra a presença de termelétricas no Brasil, com Sergipe ganhando força estratégica no Nordeste.
Arte: Isla Silva
O professor Milthon Serna, explica que apesar de estarem no mesmo território, as usinas possuem lógicas de funcionamento distintas. “A usina eólica tem o aproveitamento total de energia limpa, proveniente do vento, e a usina térmica é uma energia de origem fóssil. Ou seja, o gás natural, que não é totalmente limpo”, afirma o especialista.
Além do funcionamento, elas também possuem níveis de sustentabilidade diferentes. A usina eólica é renovável, considerada uma energia verde (mais limpa e não poluente). Já a termelétrica não é renovável, sendo uma energia azul, intermediária, poluindo mais do que a verde, mas não é tão danosa quanto outros combustíveis de origem fóssil, como diesel e petróleo. Sendo a energia renovável ou não, a existência de usinas gera impacto, nem sempre positivos, onde estão instaladas.
E, no caso da Barra dos Coqueiros, a receita arrecadada pela gestão municipal com a instalação dos empreendimentos, ofusca a sensação de abandono vivenciada pelos moradores da Praia do Jatobá que estão à mercê das promessas não cumpridas de melhoria na região.
RESPONSABILIZAÇÃO E QUESTÕES LEGAIS
O Decreto nº 5.163 expõe as diretrizes para a comercialização energética no Brasil e prevê os impactos socioeconômicos e ambientais, que podem trazer retornos financeiros, recebidos pela União e pelos governos municipal e estadual.
Essa compensação vem dos royalties, espécie de pagamento pago pelas empresas pela exploração dos recursos da região (gás natural). No caso da termelétrica de Sergipe, é a Lei nº 12.734 que rege esses royalties, destinados a áreas como saúde, segurança e educação. Em relação à usina eólica, não existe uma lei definitiva regendo esse tipo de compensação. Contudo, está em tramitação o projeto de Lei 3864/23 que prevê o pagamento de 7% dos rendimentos de usinas eólicas e solares para a União, estados e municípios.
O CEO da CERNE, Darlan Santos, explica que a instalação de usinas provoca mudanças expressivas na economia da Barra dos Coqueiros. Ele enfatiza: “Na fase de construção, é comum ver um pico nos índices de desenvolvimento dos municípios, porque há uma injeção de centenas de milhões de reais na região. Você contrata muita gente, usa muito combustível, mão de obra local, e isso impulsiona a economia”.
De fato, é possível observar um aumento expressivo na receita do município nos últimos anos. Segundo dados do Observatório de Sergipe, em 2021, a Barra dos Coqueiros ocupou a quarta posição entre os maiores Produtos Internos Brutos (PIB’s) do estado (em 2020 estava em sétimo lugar). Um dos principais motivos do seu crescimento é a geração de energia elétrica, responsável por 80,4% da economia do município em 2021. Segundo Darlan, “o índice cai depois da instalação, mas não volta ao valor inicial, ficando em um patamar acima”.
Após a instalação da Usina Porto de Sergipe I em 2020, o PIB per capita da Barra cresceu mais de 128%.
Arte: Isla Silva
O expressivo crescimento econômico da cidade, no entanto, contrasta com o cenário de abandono registrado pela comunidade que reside na região da Praia do Jatobá. De acordo com o Decreto Federal nº 5.163, que regulamenta a comercialização energética, são exigidos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA e RIMA), que servem para analisar os efeitos ambientais desses projetos, além de propor medidas de mitigação. Os documentos constituem etapa essencial para a obtenção do Licenciamento Ambiental e autorização para funcionamento. Mas, depois da implantação e início da operação dos empreendimentos, a quem compete o monitoramento dos impactos e a fiscalização das medidas de compensação junto à comunidade local?
Em Sergipe, a Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) é responsável pelo licenciamento a nível estadual. Nós entramos em contato com a técnica ambiental do órgão, Ana Consuelo Fontenele, sobre a existência do RIMA da usina eólica. Em entrevista, a técnica disse que o estudo não está disponível no site da instituição por precariedade no arquivamento do sistema, além de mudanças administrativas. “Nós estamos em transição. Temos um sistema que foi instalado em 2008, bastante precário, e ele tem falhas, tanto no recebimento de documentos, quanto de documentos online. Como a gente também fez três mudanças de prédio, muitas coisas vão se perdendo”, diz a técnica.
Em resposta, por email, a assessoria do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) disse que a fiscalização ambiental da usina eólica não é sua responsabilidade, sendo essa tarefa um compromisso do órgão estadual, Adema. A técnica Ana Fontenele, em entrevista, afirmou que o órgão também não acompanha o parque, em razão de “conflitos de interesse”, que poderiam ser gerados com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMA) da Barra dos Coqueiros. Nós não conseguimos resposta da secretaria, e nem da Statkraft (gestora da usina eólica) para saber se houve algum estudo.
Em relação à termelétrica, encontramos o RIMA, de 2015, disponível no site da Adema. Nele, consta o nome da Genpower Participações S.A. como empreendedora da usina. Nossa equipe entrou em contato com a empresa para saber se as recomendações do RIMA foram adotadas, na época de sua administração. Em resposta, a Genpower disse não ter sido a responsável pelo comprometimento do documento, já que ela só teria participado na ideia do projeto e na disputa do leilão para a construção da usina em 2015, sendo o licenciamento ambiental, feito pela CELSE. Nós não conseguimos contato com esta empresa.
Usina termelétrica e torres eólicas dominam a paisagem da Praia do Jatobá. Fotos: Laíla Monteiro e Iasmim Guimarães
Perguntamos à Eneva, atual dona, se estas medidas de mitigação do RIMA estão sendo cumpridas, ou se existem outras sendo realizadas para a compensação ambiental da área. A Eneva decidiu que não iria responder por ora. Apesar disso, nossa equipe conseguiu falar com o gerente geral de originação e comercialização de combustíveis da Eneva, Glauco Campos, durante o evento Sergipe Oil & Gas 2025, realizado em julho.
Questionado se há projetos de sustentabilidade da empresa na Praia do Jatobá, Campos respondeu que houve um trabalho “para desenvolver a capacidade mercadológica das marisqueiras” no estado. Esse projeto é intitulado “Elas Empreendedoras” e atende mulheres da Barra dos Coqueiros, Pirambu e outros estados.
Também questionamos a Adema sobre o cumprimento desses programas. A técnica Ana Fontenele afirmou que o órgão não supervisiona a termelétrica em razão da Lei Complementar 140, que estabelece o Ibama como órgão fiscalizador. “A termelétrica tem uma parte em terra e outra no mar. Antes, o licenciamento era repartido [entre a Adema e o Ibama]. Como é um impacto que pode ser gerado em mais de um estado, nós não participamos”, explica.
O Ibama, em resposta por email, disse que efetua “o acompanhamento dos 17 programas básicos ambientais vinculados à licença de operação da Usina Termoelétrica, a qual foi emitida em 2019, já tendo sido renovada”. O Ibama ainda complementou que “monitora a execução dos programas de monitoramento de praias (PMP) e de educação ambiental para as comunidades costeiras (PEAC)”.
As ações voltadas aos impactos ambientais, segundo o órgão, giram em torno de cuidados com “ruído, tratamento de efluentes, destinação de resíduos sólidos, interação com as desovas de tartarugas e gerenciamento de riscos e emergências ambientais”. O Ibama também diz que acompanha “de perto” o empreendimento, “garantindo a gestão e a mitigação dos impactos” referentes à UTE.
Sobre a influência do navio nas atividades pesqueiras, a assessoria de comunicação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) disse que faz análises e vistorias periódicas à termoelétrica e ao navio Nanook, com uma última vistoria ocorrida em março de 2025, e o último parecer em junho de 2025.
Entramos em contato com a Prefeitura Municipal da Barra dos Coqueiros para nos responder sobre as queixas da comunidade sobre as precariedades existentes na praia do Jatobá, mas não obtivemos resposta. Também, não conseguimos o contato com a CELSE para nos responder sobre a sua relação com os moradores, na época de sua gestão.
Em meio às expectativas de retorno financeiro, as pessoas da Praia do Jatobá vivem sob precariedades, contrastadas com as altas tecnologias empregadas nas usinas, as quais devastaram regiões de vegetação costeira e prejudicaram o cotidiano de pescadores e moradores. O que era para ser uma região desenvolvida, se tornou esquecida e abandonada pelo governo municipal, que deixou de lado as vivências de pessoas que já existiam antes destas indústrias, e que deveriam receber algum retorno com a exploração energética.
Ouça a reportagem sonora "Ruídos entre ventos, sustentável para quem?"
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