Moradores do Jatobá reclamam de poluição e doenças causados por Pó de Coque
- Josino Neto
- há 5 dias
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Atualizado: há 2 dias
Por Eduardo Brito, Rossella Cecília e Sarah Lima
Vídeo: Sarah Lima
A cerca de 27 quilômetros da capital sergipana, existe um povoado chamado Jatobá. Para chegar até ele, um ônibus percorre a Rodovia Estadual SE - 100, que liga o município Barra dos Coqueiros a Pirambu, uma das vias mais importantes do litoral norte de Sergipe. Jatobá fica localizado em um cruzamento. De um lado, há o povoado, nada formal, mas cheio de estabelecimentos comerciais à beira da estrada de asfalto. Do outro, a menos de 200 passos, existe o Terminal Marítimo Inácio Barbosa, mais conhecido como “Porto”, que chegou há 31 anos, mas ainda não tem uma relação próxima à comunidade. Embora haja essa distância, os moradores apontam para o Terminal quando questionados sobre um pó preto que tem um cheiro forte e é prejudicial à saúde.
Além de ser conhecido por praias e sossego, Jatobá é também um polo energético do Estado. Polo, porque reúne empreendimentos que trabalham com extrativismo energético, como o Terminal Marítimo Inácio Barbosa (TMIB), inaugurado em 1994, o Parque Eólico Barra dos Coqueiros, em 2013, e a Usina Termoelétrica Porto de Sergipe I, em 2020, considerada a maior termelétrica a gás natural da América Latina. Todas essas empresas estão reunidas em um povoado pequeno, dentro da Barra dos Coqueiros, um município com cerca de 92,268 km² que é ligado pela Ponte Construtor João Alves a Aracaju.
Um dos estabelecimentos que beiram as ruas de Jatobá é o de José Marcelo, um senhor de 49 anos e morador do povoado há 6 anos, falamos com ele para entender sobre a presença desse pó na região. Nossa conversa é permeada pelo barulho de alguns caminhões que saem do Porto em direção às indústrias de cimento em Laranjeiras e Nossa Senhora do Socorro. José já nem conta mais quantos caminhões cortam aquela estrada diariamente. Nas incontáveis idas e vindas ao porto, os caminhões espalham esse pó. “Toda mercadoria que saí do porto, ele já sai deixando na pista”, relata.
A indústria de Laranjeiras pertence à Votorantim Cimentos, uma empresa de materiais de construção e soluções sustentáveis. Ela chegou em Sergipe em 1885, mas não encontramos nenhum registro de quando passou a ter galpões dentro do porto, que são denominados pátio 1 e pátio 2. Neles, o coque é recebido, armazenado e transportado às cidades para produção de cimento. De acordo com entrevistas com os moradores e com o ex-Presidente da Associação de Moradores, Daniel Pereira, o incômodo começou em 2004 e através de abaixo-assinados a população formulou uma denúncia à Administração do Meio Ambiente (Adema) e em 2010 ao Ministério Público Federal.
NOVO VISITANTE
O pó preto armazenado e transportado pelo TMIB é fino, leve e tem um nome oficial: Coque Verde de Petróleo. O produto é o resultado final do refinamento do petróleo e pode ser usado como combustível ou como matéria-prima na indústria siderúrgica, na produção do aço. O “verde” no nome vem da comparação aos outros tipos de coque: como o da hulha e do carvão mineral, a diferença é que o “coque verde” conteria menos substâncias tóxicas em termos de concentração.
De acordo com o químico industrial e professor doutor em biotecnologia do Curso Técnico em Petróleo e Gás do Instituto Federal de Sergipe, Silvanito Alves Barbosa, o coque retardado refere-se a um processo industrial de refinaria onde resíduos pesados de petróleo são convertidos em produtos mais leves, como diesel, e um subproduto sólido chamado coque. O processo envolve aquecer esses resíduos em um forno, quebrando as moléculas longas em compostos menores. O coqueamento retardado corresponde a última etapa deste refinamento que tem como resultado o coque.
Segundo Silvanito, para se alcançar esse estado, o produto passa necessariamente por um processo de refino e, posteriormente, o coqueamento é retardado, daí o nome ‘coque’. O refinamento nada mais é do que a transformação de resíduos pesados [petróleo] em resíduos mais leves [nafta, diesel, gasolina, querosene e gás GLP] e o coqueamento retardado, que corresponde a última parte deste refinamento, resulta no coque.
Em sua composição estão presentes o Carbono, Enxofre, Nitrogênio Vanádio, Níquel e Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPAs). Segundo informações publicadas no portal do Instituto Nacional do Câncer (Inca), o benzeno(a)pireno é o HPA mais bem estudado, e já é comprovadamente cancerígeno.
Sobre essa questão, o químico também explica que todos os derivados do petróleo apresentam carcinogenicidade, que é a probabilidade de um produto vir a causar câncer. De acordo com Barbosa, os HPas, elemento presente no petróleo, e portanto, no coque, são liberados na atmosfera durante o processo de refinamento e podem vir a causar vários problemas respiratórios.
Os riscos ambientais também são sinalizados. Por se tratar de um material particulado, no processo de refinamento, as substâncias obtidas são carregadas pelo vento. “Podem precipitar em forma de chuva e contaminar solos e rios”, explica. No caso do povoado, não há a produção e sim o armazenamento e transporte do coque, mas ainda assim, essas atividades também colocam em risco a saúde da população e da natureza. “Eu imagino que essa contaminação possa estar associada ao armazenamento na região próxima do porto. Por ser um material leve e sólido, pode ser que haja o carreamento das correntes de ar, atingindo as regiões próximas”, contextualiza Barbosa.
A 3ª Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) criada em 1990 tem como objetivo o controle da poluição do ar e estabelecimento dos limites máximos de emissão de poluentes atmosféricos. Em seu primeiro artigo, são padronizadas “a qualidade do ar e as concentrações de poluentes atmosféricos, que quando ultrapassadas, poderão alterar a saúde, a segurança e o bem-estar da população, bem como ocasionar danos à fauna e à flora”.
No primeiro artigo, parágrafo único, é apresentado o conceito de poluente atmosférico: “qualquer forma de matéria ou energia com intensidade e com quantidade, concentração, tempo ou características em desacordo com os níveis estabelecidos, e que tornem ou possam tornar o ar impróprio, nocivo ou ofensivo à saúde, inconveniente ao bem-estar público, danoso aos materiais; fauna e flora, prejudicial à segurança. ao gozo da propriedade e às atividades normais da comunidade”.
Nas nossas visitas, os relatos dos moradores reforçam que a comunidade não é mais a mesma desde a chegada do coque. Em um cenário em que haja a livre dispersão de partículas deste produto durante o transporte, o professor Barbosa defende que os riscos descritos no artigo se tornam uma realidade. No povoado, as vivências se aproximam deste cenário hipotético.

Na conversa com moradores, o pó de coque é presente nas casas, a ponto de a limpeza se fazer necessária várias vezes ao dia e de se perceber a presença nas mãos, quando passada em móveis. “A fauna é exposta aos mesmos riscos que o ser humano: contaminação pelas vias respiratórias. E a flora, a contaminação de alimentos que por ventura estejam sendo cultivados na região, e a própria paisagem, pois a depender da quantidade, pode transformá-la”, explica.
Apesar deste documento regulatório ter sido revogado e atualizado pela Resolução N.491’, de 2018, todas as empresas que estabelecidas na Barra dos Coqueiros, inclusive o TMIB, estão desde a vigência da resolução anterior [1990]. Ou seja, antes desta atualização, todos os empreendimentos nacionais deveriam seguir o padrão de controle da poluição e do ar estabelecidos pela ‘Resolução Nº 003’ do Conama de 1990.
A respeito do relato dos moradores, Silvanito acredita que o transtorno realmente more na qualidade do armazenamento e transporte e que, para isso, a solução seria um cuidado maior. “Quanto mais fechado melhor, por se tratar de um material leve, o máximo que puder ser feito para impedir que o vento leve seja melhor”, conclui.
A geógrafa e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Sergipe, Thayná Albuquerque, em sua dissertação intitulada "Riscos Ambientais por Coque de Petróleo em Jatobá, Barra dos Coqueiros- SE" (2023) defende que, além dos riscos ambientais, com a chegada dos empreendimentos são evidentes a disputa territorial e seus possíveis impactos. Em sua pesquisa, ela também destaca o papel do Estado brasileiro: “As injustiças socioambientais continuam a acontecer, pois quando o lucro e a vida são postos em uma mesma balança, apenas quem detém o capital possui o poder de decidir o que vale mais. Portanto, as comunidades seguem r-existindo em busca de voz e vez nos processos decisórios, no que concerne a luta pela vida e pelo direito de existir ao seu modo de vida tradicional”.
Na entrevista, a geógrafa afirma que o coque é tratado como um subproduto, mas na verdade é um resíduo tóxico que ganhou valor comercial. “O subproduto não passa a ser um resto do processo, tem poder de comércio. O resíduo sólido comum é o lixo e tem todo um problema de descarte incorreto”. De acordo com ela, o destino principal do coque são as caldeiras de cimento, substituindo o carvão mineral.
Durante um ano de pesquisa e algumas visitas ao povoado, Thayná observou que, apesar do discurso social por parte das empresas, o empreendimento trouxe transtornos consideráveis para aquela sociedade que já era tão vulnerabilizada. Ela também relata algumas tentativas falhas de contato com a gerência do TMIB. “A negativa é assim, se você encosta o carro, já está sendo visado”, lamenta.
O gerente de vigilância ambiental da Secretaria de Estado da Saúde (SES), Alexandre Xavier contextualiza que a Secretaria tem conhecimento do coque, seus eventuais malefícios à saúde e sobre a possível relação com os casos de câncer, investigados pela Secretaria em 2010. “Fomos demandados pelo Ministério Público Estadual à época para fazer um acompanhamento de uma situação relacionada ao coque na região”. Segundo Xavier, ao fim, ficou decidido que o município da Barra dos Coqueiros ficaria responsável pelo monitoramento da situação. Depois de 15 anos, não houve “mais nenhuma notícia de qualquer efeito advindo do pó de coque”, esclarece.
Fotos: Eduardo Brito, Rossella Cecília e Sarah Lima
A MATERIALIZAÇÃO DO INCÔMODO
Em 2004, alguns moradores se mobilizaram e buscaram soluções para cessar a dispersão do pó de coque. Esse movimento veio da antiga Associação de Moradores, à época sob a direção de Cícera Lúcia e Daniel Pereira, que sempre passavam nas ruas do povoado recolhendo assinaturas em um abaixo-assinado para formalizar as primeiras denúncias.
Essa associação não era institucionalizada, com CNPJ e todos os requerimentos judiciais exigidos para a formalização. Na verdade, a ideia era juntar os habitantes de Jatobá que partilhavam um objetivo: cuidar uns dos outros. “Eu era um representante dos moradores de Jatobá. Independentemente de associação, eu achei que a coisa estava errada”, explica Daniel.
Nossa equipe de reportagem está há dois quilômetros de Jatobá, em Angelim, povoado de Santo Amaro das Brotas, vizinho à Barra dos Coqueiros. Fomos ao encontro de Daniel para entender o seu lado nessa história.. Dessa vez, não há tantas carretas pra lá e pra cá. O silêncio entra com a gente, mas não se demora muito.. Ele nos espera em uma loja de material de construção, meio tímido e com uma pasta azul cheia de documentos. Apresentamo-nos e explicamos o propósito da matéria.
Daniel retira a primeira folha da pasta: é uma linha do tempo, um registro histórico do povoado e da sua luta. A materialização das suas lembranças, que fez com medo de que a passagem dos anos o fizesse esquecer dessa trajetória. A sua cronologia reúne datas da primeira denúncia à Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), nomes dos profissionais, órgão e datas das vistorias, ata de uma reunião, datas com os recebimentos dos ofícios e o registro das denúncias feitas aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.
As outras folhas são ainda mais precisas. Estão reunidos os abaixo-assinados com nomes e RGs dos moradores, o estudo do Instituto Tecnológico de Pesquisa do Estado de Sergipe (ITPS) com o título “Avaliação da Deposição de Coque e Áreas Residenciais do Povoado”, e os termos de audiências públicas no ano de 2010. Além disso, contém o relatório de fiscalização, a informação técnica da visita ao povoado, registrado pela Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), a ata com o seu depoimento ao MPE e ao MPF, e por fim, a notificação do arquivamento da denúncia no nível estadual.
Nossa equipe de reportagem produziu uma linha do tempo, utilizando as anotações e registros de Daniel para ilustrar a longa jornada de mobilização da comunidade. O registro inicia em 2004 e finaliza em 2018, quando termina o envolvimento de Daniel nesta denúncia. As outras informações foram retiradas do autos do processo entre o Ministério Público Federal, as empresas do porto e a Administração Estadual do Meio Ambiente. Também acrescentamos relatos dos moradores do povoado e algumas explicações de termos jurídicos esclarecidas pelo professor de Direito Constitucional da Universidade Tiradentes, Teodoro Nelson.
Trilogia processual entre as empresas do Terminal Marítimo Inácio Barbosa, a sociedade de Jatobá e os Ministérios Públicos Estadual e Federal
NA PRÁTICA
A decisão do processo foi um acordo entre o Ministério Público Federal, as empresas VLI Operações Portuárias e a Votorantim Cimento e a Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema). Cada uma das partes têm obrigações a cumprir para manter uma relação saudável com a sociedade do povoado e com o meio ambiente.
Enquanto algumas lágrimas percorrem o seu rosto, Daniel afirma desconhecer o acordo. “Por que não me informaram isso daí?”. Além disso, reitera que o seu último contato com a justiça foi em 2018, quando recebeu a notificação do arquivamento da denúncia no Ministério Público Estadual, por ter alcançado nível federal. De acordo com ele, a população não participou deste acordo de forma nenhuma. “Esse acordo foi feito entre eles”, lamenta.
A respeito da reclamação de Daniel sobre não ser notificado, Teodomiro Nelson, professor de Direito Constitucional da Universidade Tiradentes, explica que o responsável pela atribuição da tutela do meio ambiente é o Ministério Público Federal, que é um órgão que representa interesses da sociedade, e não um direito que pertence a uma pessoa. Logo, Daniel não poderia ser parte e saber do andamento do processo. “Não tem como um particular ser considerado parte do processo porque não entrou com uma ação. O juíz não tem obrigação nenhuma de intimar ele”, esclarece.
Depois da última denúncia ao MPF, ele cansou de lutar, não procurou mais a Adema, o MPE ou o MPF. Sentiu que estava “nadando contra a maré, dando murro em ponta de faca” e fazendo jus a outros tantos ditados que trazem a sabedoria de que lutar contra o poder é uma tarefa muitas vezes inglória.“O tempo vai passando, e a gente vai ficando mais frágil, e não tem como lutar a vida inteira por um negócio que não tem resultado, só vai complicar”. Daniel só reviveu essas memórias dolorosas em respeito ao trabalho desta reportagem.
Entramos em contato com a Assessoria de Comunicação do MPF para contatar os procuradores responsáveis pelo processo. E nos foi informado que a equipe estaria tentando descobrir quem seria o procurador do caso, porém até o momento de publicação desta reportagem, não obtivemos nenhuma resposta.
De acordo com o técnico da Adema, Antonelle de Moraes, responsável pela licença de permanência das empresas no Terminal Marítimo Inácio Barbosa (TMIB), foi explicado que a Adema foi ré porque era responsável pela licença ambiental. “Quando o órgão fica ausente de análise, precisa dessa correção”. Por ser recém-chegado à Adema, Antonelle explica que tem pouca familiaridade com o processo, as especificidades da licença - as condicionantes - e o que dizem as últimas análises dos relatórios de impacto ambiental feitos pela empresa.
De acordo com a advogada ambiental, Robéria Souza, a produção dos Relatórios de Impacto Ambiental (RIMAS) é responsabilidade da empresa, e que o órgão licenciador, neste caso a Adema, fica responsável pela análise. Portanto, a aprovação ou reprovação das análises leva em consideração leis nacionais e estaduais do meio ambiente e, no caso do TMIB, as condicionantes para a permanência.
Souza, contudo, atenta para a responsabilidade do órgão, já que é um relatório produzido unilateralmente. “O fato dela [a empresa] produzir [o relatório] não quer dizer que ela está agindo da forma correta. Ela está cumprindo uma condicionante, que é a de apresentar o relatório, mas esses relatórios precisam ser avaliados. E a operação da empresa precisa também ser fiscalizada. O fato da pessoa ser portadora da licença ambiental, não quer dizer que ela está isenta de qualquer responsabilidade”, explica.
Antonelle alega que as condicionantes “servem para nortear aquela atividade, diante dos possíveis impactos que ela vai ocasionar no meio ambiente”. O técnico da Adema explicou a aplicação de somente três das condicionantes previstas nos autos: o lava-rodas, que em sua última visita funcionava corretamente, a umidificação recorrente das estradas internas do porto e as visitas por parte do órgão, feitas por uma equipe multidisciplinar. De acordo com ele, as duas primeiras são para evitar a dispersão do pó pelos caminhões que entram e saem do porto e a terceira para verificar se as outras condicionantes estão sendo cumpridas.
Já a licença de permanência serve, segundo o técnico Antonelle, para todo o Terminal Marítimo, onde operam várias empresas, a exemplo da Votorantim Cimentos e da Petrobras, que utilizam o espaço para fazer as atividades que são necessárias para o transporte portuário. Moraes ainda esclarece que não é responsabilidade da Adema promover uma relação com a população do povoado para a realização de uma possível investigação do cumprimento das condicionantes.
Além disso, o técnico da Adema informa que “a frequência das vistorias é determinada de acordo com o que é pedido na condicionante”. Ele reitera que a fiscalização da Adema se direciona ao cumprimento das condicionantes e à análise dos relatórios de impacto ambiental, produzidos pelas próprias empresas. Contudo, não soube precisar o resultado das últimas visitas e análises. “Vou ter ciência quando pegar o processo por completo para analisar”.
O técnico também confirma que ao desembarcar dos navios, o coque espera pelos caminhões nos pátios do terminal. “Ele é exportado e fica temporariamente em alguns pátios lá, e aí alguns caminhões que fazem o transporte, fatalmente vão transitar nos locais onde tem esse pó de coque”, diz.
Como não há refinaria de petróleo [que faça o coque] na região, tentamos uma entrevista com a gerência da VLI, responsável pelas atividades do TMIB, para esclarecer se o coque é importado ou exportado, mas não obtivemos resposta. Em seu site, na aba “Ativos” encontramos informações sobre os materiais transportados no Terminal, na qual o coque é citado, mas não é especificado se é exportado ou importado, somente transportado.
Contudo, em trabalho publicado nos anais do XII Congresso Brasileiro de Engenharia de Produção (Conbrepro) de 2022, foi analisada a origem do coque no ano de 2020 das cimenteiras brasileiras, e foi constatado que: “grande parte do coque de petróleo usado no cimento brasileiro é importado do Golfo do México e da Venezuela’. Porém, ainda não sabemos se o coque desta pesquisa é o calcinado ou o verde, sendo este último o transportado no TMIB.
Existem dois tipos de coque - do petróleo e do carvão. No entanto, no processo de apuração desta reportagem, observamos certa contradição a respeito da natureza do tipo de coque presente na região do Jatobá. Conferimos nos autos do processo que, na verdade, o produto armazenado e transportado pelo TMIB é o coque verde, resultado do refinamento do petróleo. No entanto, de acordo com o técnico Antonelle, o particulado [o coque] trata-se de um subproduto do carvão betuminoso.
A divergência de informações a respeito da especificação do tipo do coque, revela também uma constatação da capacidade de dissipação do particulado na região do Jatobá. Para Antonelle, o coque de carvão não é um particulado que os ventos levam, mas reconhece que "eles geram um determinado dano”. Por outro lado, a comunidade reclama a alta capacidade do espaçamento do produto pelo vento, constatação que também foi ratificada pelo professor Silvanito Alves, citado no início da reportagem.
Apesar de não poder confirmar o cumprimento ou não das condicionantes, o técnico Antonelle explica que caso não sejam cumpridas, o procedimento é notificar a empresa para que ela tome as devidas medidas, e somente em casos excepcionais, haverá a suspensão das atividades. “Quando há mitigação da atividade, notificamos a empresa, e ela complementa ou altera para tomar alguma medida, mas dificilmente ocorrerá a suspensão da atividade, só em caso excepcional”, explica.
Durante o processo de apuração desta matéria, a licença de permanência do Terminal Marítimo Inácio Barbosa (TMIB) foi aprovada, com a sua finalização prevista para o ano de 2028. Tentamos um novo contato com o técnico Antonelle através da assessoria de comunicação da Adema, para entender melhor algumas questões sobre o cumprimento das condicionantes, origem e destino do pó de coque, e as questões da aprovação da licença. Até o momento, não obtivemos resposta.
O PÓ PRETO
De volta ao povoado Jatobá, o atual Presidente da Associação de Moradores, Robson Valido de Santana, esclarece que há realmente uma conexão entre as empresas e a população, mas que é feita em datas específicas, como no Natal e no Dia das Crianças. Nesses momentos, as empresas doam alguns presentes e fazem uma espécie de evento beneficente para as crianças. Além disso, promovem visitas pontuais ao Porto, para entender o seu funcionamento e as especificidades das suas atividades, atendendo a obrigação do programa “VLI Braços Abertos”.
O programa tem por objetivo promover visitas às unidades da empresa e está direcionado às comunidades que vivem próximas às suas operações, neste caso, o povoado de Jatobá. De acordo com a descrição nos autos do processo: “com o projeto, espera-se que a comunidade possa conhecer o negócio da VLI e compreender a sua relação com o município da Barra dos Coqueiros”.
De acordo com Santana, a última reunião para tratar efetivamente das reclamações sobre o coque aconteceu no início do ano, mas até hoje não recebeu uma resposta sobre o que fora discutido. Apesar de falar no plural sobre esse acontecimento, não especificou quantas pessoas participaram, o assunto debatido nesta reunião e as possíveis resoluções.
Robson também relata a frase mais ouvida durante as conversas com outros moradores: “Esse problema é antigo”. Ele afirma que o coque é armazenado em um pátio a céu aberto e que o verão é a pior época. Com os ventos e o tempo seco, o pó se dispersa ainda mais e invade a casa dos moradores. “A gente só sente quando pousa nos móveis da gente”, relata.
Por causa da antiguidade do problema do coque e pelo seu papel na comunidade, Robson é familiarizado com a luta de Lúcia e Daniel para denunciar o transtorno. Mas, o líder comunitário só tem informações do processo até seu andamento em 2010, quando foi arquivado pelo MPE, pois havia alcançado nível federal. Ele relata que “o processo paralisou”. Assim como Daniel, desconhece as especificidades do acordo entre o MPF, Adema e as empresas, e suas respectivas obrigações.
De acordo com moradores, de lá pra cá, pouca coisa mudou. Os relatos continuam os mesmos: potenciais riscos à saúde e a casa sempre suja. Nas conversas com os moradores e com o líder comunitário, percebemos que os moradores sabem que o pó de coque tem potencial cancerígeno.
Há dois anos, Robson confrontou a empresa sobre esse assunto. “Várias pessoas morreram com câncer aqui, mas ele [representante da gerência da VLI que não teve o nome e o cargo identificados] disse que é um câncer geral, que dá em qualquer pessoa”, lamenta.
A enfermeira, Yasmin Ribeiro, da Unidade Básica de Saúde Gileno de Jesus, no Jatobá, explica que desde que começou a trabalhar no povoado, em janeiro deste ano, não houve casos de câncer e que a doença mais recorrente é a esquistossomose. No primeiro momento da entrevista, a enfermeira não reconheceu o coque pelo seu nome “formal”, e sim por como é chamado no povoado - ‘um pó preto’. “Sim, muitos pacientes chegam reclamando, e eu nem sabia que o nome seria esse. Pó preto, é assim que eles chamam”.
Perguntamos à enfermeira se há relatos de incômodo por parte dos moradores e possíveis diagnósticos. “Tem muito paciente que chega se queixando de alergia, rinite, essas coisas. Eu percebo que são principalmente moradores que ficam próximos ao porto”, afirma. Sobre o possível diagnóstico, não há atribuições diretas ao pó de coque, mas ela confirma não ter tido uma investigação a fundo sobre as queixas do coque.
Quando se trata das frequências dessas queixas, há uma recorrência maior no verão, justamente a época que a comunidade relata ser a pior. O tratamento não segue um padrão, “cada caso é um caso”, mas o rotineiro é uma medicação mais rápida e se o incômodo persistir, encaminham para um alergista.
A enfermeira ainda explica que, por serem enfermidades de tratamento rápido, não são contabilizadas em uma planilha obrigatória para todas as UBS de povoados que pertencem à Barra dos Coqueiros, para integralizar ao sistema. Segundo ela, já que não há separação por povoado, o sistema é um só. Contudo, não descarta a possibilidade de que os respectivos porquês dos sintomas fossem melhores respondidos caso estivesse há mais tempo na unidade e houvesse algum tipo de investigação.
De acordo com Ribeiro, a UBS dá conta dessas enfermidades e que até o momento, os pacientes não retornam com as mesmas reclamações, mas acha interessante a ideia da investigação. “Acho que seria interessante mesmo essa investigação, porque antes eles me questionavam muito desse pó, e eu recomendava que crianças e gestantes evitassem ficar na rua no horário que percebem que tem mais esse pó”, confessa.
Quanto às visitas às casas para a verificação do problema, a enfermeira explica que só consegue visitar pacientes acamados, para a realização de troca de sonda ou em pós-cirúrgico e quem realiza as visitas nas casas são os agentes da UBS, e que eles não chegaram a relatar alguma coisa parecida com o pó preto, somente os pacientes.
Apesar de não haver casos comprovados, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) classifica os Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA), um dos elementos presentes no coque, como comprovadamente cancerígeno. A exposição ocupacional ao elemento, está associada a diversos tipos de câncer, e apontam o câncer de pulmão como diretamente ligado à produção do coque.
Ainda de acordo com o relato de Robson, a posição da Prefeitura da Barra dos Coqueiros, responsável pelo povoado, é de não ter um envolvimento profundo com a situação. “Eles não querem se meter nessa briga”, lamenta. Ainda pontua que essa realidade foi pauta em uma Audiência Pública do Município há cerca de um ano, e que algum secretário, que não soube especificar a pasta ou o seu nome, informou que seriam instaladas máquinas para medir se realmente há esta poluição, mas que até hoje não recebeu nenhum retorno.
Tentamos contato com o secretário da Secretaria Especial de Jatobá, Cleanderson Santos, que responde em nome da Prefeitura da Barra dos Coqueiros no povoado, para entender sua posição sobre o problema, mas ele optou por não dar entrevista e afirmou não dominar o assunto. Também procuramos representantes da Secretaria de Meio Ambiente da Barra dos Coqueiros. Contudo, não souberam discorrer sobre o assunto, alegando que a responsabilidade do licenciamento era da Adema.
Neste cenário, há também divergências entre os moradores e a representação da liderança comunitária. Apesar de Robson Santana, enquanto Presidente da Associação de Moradores, manter contato com as empresas, a comunidade não se sente ouvida nem participante das decisões. A previsão, segundo Robson, é que haja uma nova reunião entre gerência e ele para tratar desses assuntos de forma profunda. No entanto, não soube prever a data ou o mês com exatidão para esta ação ocorrer. “Só estou esperando eles me chamarem para conversar”, afirma.
O líder confirma ainda não ter tido uma reunião ou um plebiscito com a comunidade para decidir as novas lideranças e os rumos da associação, alegando sua recente mobilização, mas afirma que todos os trâmites judiciais estão sendo providenciados. “Ainda estamos construindo o Plano Diretor para mandar para a comunidade”. Robson só nos informou o nome do seu vice, José Paulo, mas não especificou a quantidade de membros.
Mesmo alegando não conseguir apoio massivo por parte da comunidade, Robson afirma bater “sempre na mesma tecla” com a gerência da VLI. Em uma conversa recente, pediu que a empresa oferecesse projetos sociais para a comunidade, já que “o pó é um problema que nunca vai sair daqui de Jatobá". Ele ainda aguarda resposta para esse pedido.
Em entrevistas com outros moradores, que preferem não ter seus nomes revelados, é alegado que a empresa não se comunica com a população para tratar do coque. Para além dessas datas comemorativas e visitas pontuais ao porto, não são realizadas reuniões para discutir novas resoluções para o problema. A maioria dos entrevistados afirma conhecer a antiga movimentação feita por Lúcia e Daniel, porém desconhece novas reivindicações por parte desta nova gestão da associação. “Abriram uma tal de associação, nunca vi na minha vida. Para você colocar um líder de frente, você tem que ter a votação da comunidade. Quando a gente ficou sabendo, já era a pessoa certa”, relata uma das moradoras que não quis ser identificada.
A respeito deste argumento, Robson reitera que a Associação de Moradores da Comunidade de Jatobá, ainda está em processo de construção e para alcançar a formalização, com o CNPJ e outras obrigações jurídicas, foi preciso uma votação entre poucas pessoas, a fim de se organizar. “Fizemos ela direto, sem precisar de eleição”, alega. No entanto, não nos especificou a quantidade de membros.
Em um novo contato, Robson reformulou o seu relato e agora afirma que é o único membro oficial, mas está em busca de novos participantes para somar na construção da associação. “Ainda estou buscando quem realmente queira participar”, esclarece. Em meio a relatos conflituosos, prevalece o factual que é a não formalização judicial da associação e a sua não familiarização com o acordo.
Enquanto isso, o processo prosseguiu, resultando na formalização de um acordo com obrigações a serem cumpridas por todas as partes, mas até o que essa reportagem apurou, os líderes — o antigo e o novo, até o momento não oficiais — e a comunidade desconhecem essas decisões. E quanto à organização judicial da associação, a comunidade aguarda os próximos passos.
Para entender como funcionam na prática os programas sociais previstos nos autos, procuramos a Secretaria Municipal da Educação da Barra dos Coqueiros e a coordenadora geral da Escola Deoclides José Pereira, Noêmia Ferreira, que confirma a realização de uma ação, realizada 28/08 deste ano, para o programa “Atitude Ambiental” da VLI, com o objetivo de formar multiplicadores ambientais. O curso de formação foi realizado pela Visão Ambiental Consultoria LTDA (VICHI) do Espírito Santo. “Eles contratam alguma empresa para fazer esse trabalho”, explica.
O ofício foi enviado a ela solicitando o espaço da escola para a realização do curso, direcionado à comunidade. No entanto, afirma desconhecer que são programas oriundos de um acordo a nível federal, e, portanto, obrigatórios. Noêmia destaca que as ações feitas, são palestras sobre preservação do meio ambiente e confirma a doação de brinquedos, mas que “ultimamente não tem sido feito muita coisa não”.
A coordenadora relata ainda que a gerência do porto doa brinquedos, realiza o Natal solidário e realiza palestras sobre o cuidado ao meio ambiente, mas que até o momento não houve propostas efetivas para a poluição do pó de coque. “Eles não chegam aqui com soluções para esse coque, chegam com a proposta da gente cuidar do meio ambiente, mas que na verdade, nada vai resolver a questão do coque, vai continuar na mesma”, lamenta.
Apesar de reconhecer a importância das ações da empresa, a coordenadora entende que as iniciativas não resolvem o problema central criado pelas empresas. “Isso é uma forma de contribuir com as carências financeiras mais urgentes da comunidade, mas isso aí não resolve em nada a questão da poluição pra gente”, afirma. Por ser nascida e criada no povoado e trabalhar há mais de 20 anos nessa escola, Noêmia, conhece de “cor e salteado” o relacionamento complicado com o pó de coque. “A gente limpa a escola duas vezes, cadeira por cadeira, e lavamos toda a escola uma vez por semana”, explica.
Sobre os possíveis impactos à saúde, a coordenadora confessa não saber de onde vem tanta gripe por parte das crianças, já que no povoado, além do TMIB, há também uma termoelétrica, que gera eletricidade através do calor obtido através da queima de combustíveis. Depois da chegada deste empreendimento, ficou difícil apontar os danos específicos. “A gente não tem como definir essa quantidade de gripe, se é do coque ou se tem mais alguma coisa, precisa ser feita uma investigação”.
O Secretário da Educação da Barra dos Coqueiros, Orlando Apóstolo, esclarece que desde o começo do seu mandato, em janeiro deste ano, a VLI não propôs a realização de novas ações ou informou possíveis atividades em andamento em escolas do município da Barra dos Coqueiros neste ano. “Nenhuma coordenadora de nenhuma escola me disse que tem parceria com a VLI”, afirma. Mas pontua que não sabe informar se esses programas são realizados em escolas de forma independente.
Os programas previstos para o povoado de Jatobá são o “VLI Braços Abertos” e para o município da Barra dos Coqueiros são a “Atitude Ambiental”, “VLI Solidária” e o “Conexão Comunidade” e estavam previstos para serem realizados 180 dias após a homologação do processo, que ocorreu em 2018.
De acordo com relatos, em Jatobá, há visitas ao porto, cumprindo o “VLI Braços Abertos” e a formação de multiplicadores ambientais, atrelada ao programa “Atitude Ambiental”. Contudo, não há conhecimento por parte do Secretário de Educação da Barra dos Coqueiros da realização desses dois programas e do ‘Conexão Comunidade’ neste ano.
Nos autos do processo, o “Conexão Comunidade” é descrito como: “a promoção de um conjunto integrado de atividades nas escolas e equipamentos públicos do município da Barra dos Coqueiros, com o objetivo de promover o desenvolvimento e inclusão social por meio de atividades de educação e cultura”. A sua realização foi estimada de março a dezembro de 2018 e com o valor estimado de R$8.000,00. Contudo, não são especificadas escolas ou outros espaços para o cumprimento deste programa.
Sobre as obrigações de compensação ambiental previstas para a Votorantim Cimentos, estão a doação de material para a Fazenda Cordeiro de Jesus, situada no município de Pirambu, cadastrado pelo IBAMA como Área de Soltura de Animais Silvestres (ASAS) e apoio ao Centro da Terra, através da doação no valor estimado de R$ 53.224,00 em equipamentos de impressão e editoração de livro e realização de exposições. Entramos em contato com as direções do Centro da Terra e da Fazenda Cordeiro que confirmam a doação por parte da empresa.
O QUE DIZEM OU NÃO AS EMPRESAS
Durante dois meses de apuração, tentamos inúmeros contatos com a VLI Operações Portuárias, responsável pela administração do Terminal Marítimo Inácio Barbosa (TMIB). Contudo, até o momento de publicação desta reportagem ainda não obtivemos nenhum tipo de resposta.
Também entramos em contato com a Votorantim Cimentos, que possui uma fábrica na cidade de Laranjeiras, que fica a cerca de 19 km da capital sergipana, Aracaju. Como resposta, nos foi informado que a empresa não poderia abordar esse assunto. Portanto, não temos conhecimento total do cumprimento ou não das condicionantes técnicas, ou seja, do armazenamento e transporte do coque.
Nos autos do processo é sinalizado que as condicionantes de compensação ambiental não são de responsabilidade da Vale S/A, pois não é gestora do Terminal e não realiza qualquer atividade no TMIB. Portanto, não apuramos a fiscalização da sua única condicionante: “aquisição e doação à Agência Nacional de Mineração (ANM/SE)”.
Esta reportagem segue padrões de ética e apuração rigorosos, portanto, permanecemos, pelo tempo que se fizer necessário, disponíveis a ouvir as posições das empresas citadas nesta reportagem.
Ouça a reportagem sonora "O destino do pó de coque fora das indústrias"
Veja o webstories "Mar de pó"















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