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O guardião da cultura e das tradições

Por Emily Prata, Isabel Chaves e Larissa Nascimento

 
#PraCegoVer: em primeiro plano é possível visualizar um idoso de pele parda com parte do rosto visível e uma fita azul amarrada no queixo. Vestindo camiseta cinza com estampas por baixo de uma camisa aberta colorida.
Reconhecido como Mestre da Cultura Popular Brasileira, Mestre Jorge é detentor de conhecimentos ancestrais. Foto: Maria Isabel Chaves.

"Bom dia, Seu Jorge." Em uma manhã nublada, na sala da casa do senhor sorridente que nos recebeu, é o que mais se ouve, e ele responde a todos com alegria e familiaridade. Pessoas que se sentem acolhidas pela figura carismática e receptiva de Jorge, que fala incessantemente sobre respeito e gentileza. De expressão leve e sorriso no rosto, Jorge dos Santos, de 87 anos, nasceu no dia 27 de fevereiro de 1935 em São Cristóvão e é uma das figuras que contribuem na perpetuação das manifestações folclóricas do município, com seus estandartes feitos a mão e suas danças que estão sempre presentes em datas comemorativas. Suas avós e tias eram carnavalescas, brincantes do Reisado e donas de caceteira e taieiras. Influências que contribuíram para impulsionar seu fervor cultural, perpetuando seu trabalho com o Grupo União (grupo dançante da terceira idade) e sendo reconhecido por todo Brasil como Mestre da Cultura Popular Sergipana.

 

Zona Contexto - Como o senhor se envolveu no planejamento dos eventos culturais da cidade?


Mestre Jorge - Quando cheguei aqui, do Rio (de Janeiro), estava na época dos grandes festivais de arte. Lauro Rocha era prefeito, foi meu colega de escola, foi moleque de rua e disse: “Jorge, eu estou te esperando, as portas estão abertas para você tomar conta do Festival de Arte”. E eu trabalhei com cinco prefeitos. Hoje eu sou aposentado pela prefeitura daqui, pela Secretaria de Cultura.


#PraCegoVer: Em primeiro plano é possível visualizar um idoso de pele parda sorrindo com as mãos na frente do corpo. Vestindo camiseta cinza com estampas por baixo de uma camisa aberta colorida. Ele também veste um chapéu brilhante cinza, com decorações na parte inferior e uma fita azul pendurada.
Atencioso e carismático, Mestre Jorge nos recebeu para contar sobre a cultura da cidade de São Cristóvão. Foto: Larissa Nascimento.

Zona Contexto - Por que o senhor foi morar no Rio de Janeiro?


Mestre Jorge - Eu fui morar lá com 25 anos. Fui ganhar dinheiro, sabia trabalhar na fábrica de tecido e perguntei: “O que é que dá mais dinheiro aqui?”. É a tecelagem, então eu fui pra tecelagem, trabalhava com quatro maquinetas. Ganhava bem em Petrópolis. O dono da fábrica daqui, tinha uma fábrica lá, aí levava a gente e quando chegávamos lá tinha casa, tinha tudo esperando a gente. Fui eu, minha irmã e minha tia para trabalhar. Foi um, depois foi outro, fomos levando a família. Depois eu estudei, e passei para o inglês, que foi o que me abriu as portas. Retornei em 1990 e fiquei trabalhando só na cultura. Eu já vim aposentado e a prefeitura me recebeu, porque já me conheciam. Já sabiam que eu fazia os carnavais, os puxa-sacos (Bloco de Carnaval).

 
 #PraCegoVer: no centro da foto é possível observar Mestre Jorge de pé, com um braço esticado e o outro braço segurando um objeto decorativo. Usa uma blusa branca, com um lenço vermelho com detalhes em amarelo e branco. Uma calça branca com laranja e uma sandália preta.
Mestre Jorge herdou o grupo das Taieiras de sua tia-avó. Até hoje organiza o grupo de mulheres que fazem homenagem ao São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário. Foto: Imagem de arquivo.

Zona Contexto - Do que mais sente falta nos movimentos culturais?


Mestre Jorge - A gente tem tanta coisa boa para fazer e se lembrar, e deixamos acabar. Você vê que a Ilha Grande era um foco de animação, e está ainda, eu tenho certeza. Vieram aqui buscar umas coisinhas, para fazer uma brincadeira, um festejo. Então essa união sempre aconteceu. Fico me perguntando cadê os blocos de carnaval? Cadê os micaremes? Quando rompia a “Aleluia” no domingo, eram os clarins tocando e os blocos pegavam aquelas fantasias e guardavam para o dia do micareme, o dia da ressurreição. Os clarins na rua, aquela orquestra boa, aquela animação, hoje em dia não tem. Cadê a noite de Natal? Cadê os Reisados?


Zona Contexto - O senhor falou anteriormente que sentia falta do empenho popular em relação aos movimentos culturais, o que o senhor sente que pode melhorar?


Mestre Jorge - Os guias trazem os turistas aqui e eu acho bonito esse movimento todo. São Cristóvão só precisava ter mais um pouco de respeito pela cultura. Porque aqui já foi rico, o prefeito parava aqui na porta e perguntava: “Jorge, tá precisando de quê?" e eu falava “uma peça de pano azul”, e aí quando eu via, já vinham os panos. São Cristóvão já foi uma maravilha. Quem viu São Cristóvão na minha infância que vê hoje em dia… [balança a cabeça negativamente]. Os prefeitos daquela época ganhavam pouco, não tinham essas famas de tanta repartição, tanta coisa, não. Cada um fazia sua parte.


Zona Contexto - O filho do senhor, Roberto, seguiu esse lado cultural também ou preferiu não se envolver?


#PraCegoVer: Um senhor sorridente, veste camiseta cinza e preta com algumas estampas centrais e por cima, uma blusa aberta colorida. Ele usa um chapéu também estampado com flores rosas e azuis, o chapéu possui fitas azuis para amarrar na cabeça.
Durante a conversa, Mestre Jorge riu e nos fez rir contando suas histórias de carnavais e danças. Foto: Larissa Nascimento.

Mestre Jorge - Não sabe, nunca quis. Ele é motorista. Depois de seis anos de casado veio um filho. Quando o menino fez um ano ele chegou aqui um dia e eu tava trabalhando, ele disse: “Meu velho, tira aí um samba de coco”. Aí ele pegou uma cadeira e colocou o menino encostado ali, observando a rua. Aí eu tirei o samba de coco [começa a cantar e bater palma] Ele botou a mãozinha pra cima e o pé balançando, aí eu morri de ri. E meu filho disse: “Continue” e eu continuei [volta a cantar, a bater palma e dançar o samba de coco]. Ele (o neto) me olhou e quando eu cantei na segunda vez ele já não bateu palma, ele abaixou a mão e o pé, como eu fiz. Quer dizer que é assim que a criança começa a se desenvolver. O Roberto só fazia namorar, pra dançar era um “Deus que me livre”. Ele foi uma vez com a esposa dançar no Baile dos Carmelitas, que eu faço parte também. Ia um pra lá e o outro ia pra cá, aí eu disse: “Rapaz sente, vá tomar um refrigerante, porque você é a vergonha dos casais que estão aqui”. Não puxou ao pai não.

 

Zona Contexto - O seu grupo trabalha apenas com a terceira idade. O que o levou a ter essa preferência?


Mestre Jorge - Hoje a juventude não sabe brincar. Eu comecei trazendo crianças, mas desisti, porque trabalhar com os velhos, com as pessoas que querem brincar é outra coisa. Não vou dizer que não tenha gente da idade de vocês que gostem. Mas tem aquela influência das outras: “Fulana você vai brincar? É brincadeira de velha. Você vai vestir aquela roupa?” Se for uma quadrilha, é com aqueles panos de veludo, de ‘não sei o que’, sapato ‘luskin’ (sapato envernizado pra dançar quadrilha). Não é assim. Já brinquei muita quadrilha, fica mais bonita no som da sanfona, no fólio [imita o som do fólio]. E a gente tudo se danando, com chapéu de palha, camisa de manga comprida. Então é a rigor que a gente tem que ficar, bonito. Hoje eu nas escolas pelejei para ver se conseguia: [muda a voz para imitar criança] “Ah, não; aquele menino ali rindo da gente. Olha aquele menino ali é namorado daquela dali, ele veio aqui pra mangar dela”. Então eles ficavam tudo com vergonha de participar. Foi quando comecei a trabalhar com a terceira idade. A gente ia para Laranjeiras, ia para Pedreira, para a festa de Santa Cruz, lá tinha aquele samba bom, aquela folia toda.


Durante todo o tempo em que estivemos juntos, Mestre Jorge dançou, riu, se emocionou e mostrou as coisas que guarda das apresentações e dos carnavais. Fotos: Larissa Nascimento.


Zona Contexto - O senhor recebeu certificados de reconhecimento nacional e regional como Mestre da Cultura. Como sente recebendo esses títulos e homenagens de reconhecimento ao seu trabalho?


Mestre Jorge - Olha, isso eu já relaxei. Porque desde criança, eu menino de 12 anos, já tenho esses agrados. Quando estavam armando o presépio já falavam “chame Jorge”, não tinham Papai Noel, não tinham os bichinhos de barro e eu fazia os bichinhos para colocar no presépio, os anjos e tudo. ‘Jorge, vamos fazer um carnaval’, ‘fazer um estandarte’, ‘invente uma coisa’. Então eu sempre estava presente. Este [aponta para o estandarte feito em sua homenagem] foi um dos maiores presentes que já recebi, fui com o coração aberto e fiquei feliz com o documentário e com a apresentação. Eu não esperava ter uma recepção tão calorosa como a que recebi, acredito que a gente colhe o que planta. É o trabalho e o modo como lidamos com as pessoas que nos eleva.


#PraCegoVer: A imagem é uma colagem bem colorida. No centro oval vemos Mestre Jorge sorrindo, caracterizado com roupas  coloridas e um chapéu de crochê colorido. Ao redor desse senhor existe um painel florido, com faixas que identificam ele e a cidade.
Estandarte que participou de uma exposição feita em homenagem ao Mestre Jorge. Foto: Larissa Nascimento.

Zona Contexto - O senhor disse que sua família era dona do grupo das Taieiras. Pode explicar o que é e como chegou na mão do senhor?


Mestre Jorge - As taieiras vieram da minha tia (Angelina Lucia dos Santos), tia da minha mãe. Ela morava no Carro Quebrado em Aracaju, vinha no trem suburbano e ficava na casa da minha avó. Eram 28 mulheres, que botavam os seus vestidos, se arrumavam lá e vinham para se apresentar aqui na ilha do Rosário.

As taieiras representam as mulheres que trabalhavam nas casas de família, como governantas do pessoal de primeira classe. E faziam uma homenagem no final de ano para o menino Jesus. Se vestiam da maneira que trabalhavam, aquelas saionas bonitas, batas, chale, aqueles panos amarrados na cabeça. Elas faziam orações na porta da igreja do Rosário. Tinham muitos grupos na cidade para fazer homenagem, era o dia todo festa. Vinha um, fazia a homenagem, depois vinha outro. Mas o mais bonito era o delas, das taieiras, com aquelas cestas de flores, aqueles chales muito bonitos trabalhados à mão, aqueles chinelinhos e elas ficavam à disposição dos comentaristas.


Zona Contexto - As manifestações culturais também estão muito ligadas ao cunho religioso. A presença da irmã Dulce é muito forte na cidade. O senhor chegou a conhecer a Irmã Dulce? Tem alguma história com ela?


Mestre Jorge - Eu vi a Irmã Dulce em pessoa, ela estudou aqui e todo ano ela vinha num carro, numa comissão, porque aqui formavam as freiras, e ela vinha coroá-las. Eu era garoto, era coroinha, quando Dona Marinete chegou e disse: “Aquela freira que tá passando ali é Irmã Dulce, ela estudou aqui e formou-se aqui”. No fundo do sítio tinha umas manguinhas, eu tava apanhando umas e lavando na gruta. Ela pediu uma, deu aquelas dentadinhas e eu fiquei olhando e pensando: “Essa mulher é santa mesmo?”. Quando eu já estava no Espírito Santo, eu fui montar a baía, e eu pensei: agora eu vou atrás da Irmã Dulce, ver se ela se lembra dessa história. Aí eu fui e a moça disse: “E o senhor é quem?” e eu respondi que era de São Cristóvão, ela respondeu “Ah, ela vem atender. Falou em São Cristóvão, em Sergipe, ela vem”. Aí ela veio de cabeça baixa, eu contei a história para ela e ela disse: “São tantas lembranças boas daquela cidade, daquele povo”.


Zona Contexto - Existe alguma expectativa de o trabalho do senhor ser perpetuado?


Mestre Jorge - Eu não tenho herdeiros, então não posso dizer o que vai ser do grupo União quando eu parar. Mas quem vier espero que faça o trabalho com muito amor e felicidade, assim como eu faço. Hoje em dia as pessoas fazem apenas por dinheiro, esperando recompensas, a minha alegria era fazer as coisas, os estandartes, guiar as minhas senhorinhas. É a minha paixão.


#PraCegoVer: Na imagem é possível ver a fachada de uma casa amarela/bege com grades de mesma cor e uma janela azulada. Vemos um senhor um pouco agachado fechando a grade. Há o número da casa em preto e dourado o número 99.
Ao final da entrevista, Mestre Jorge nos levou até o portão agradecendo pela visita. foto: Larissa Nascimento.
 

Para saber mais sobre o Mestre Jorge, assista o nosso WebDoc no canal oficial do Contexto UFS.


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