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Nós por nós: a relação comunitária entre os são-cristovenses e as bicas

Por Cáritas Damasceno, Laura Malaquias e Maiara Ellen Souza

 

O que marca a cultura de um lugar são os símbolos e os costumes do seu povo. Em São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil, há diversos símbolos que marcam a importância histórica do lugar, mas fora do eixo turístico há outros costumes que fazem parte do cotidiano da população: como o de produzir e frequentar as bicas da cidade. Esses ambientes, que singularizam um outro lado da Cidade Mãe de Sergipe, permitem adentrar nas relações comunitárias desenvolvidas pelos são-cristovenses.


Homens, mulHomens, mulheres e crianças tomam banho em bicas de canos brancos e ficam em pé sobre a água acumulada. Galhos de madeira seguram os canos e as crianças se movimentam.
O espaço das bicas refresca e diverte os seus frequentadores. Foto: Laura Malaquias.

As bicas são feitas a partir de canos de PVC que ligam a nascente de algum rio, ao espaço de queda d’água. Os canos ficam a céu aberto, mas não são visíveis do início ao fim, porque em alguns momentos desaparecem por dentro da mata. Na Cidade Baixa de São Cristóvão, há quatro: Bica do Jardins ou Bica da Avenida, Bica dos Pintos, e outras duas que não possuem um nome definido, mas são reconhecidas pelos moradores, que não têm dificuldade para explicar onde se localizam. A população é quem financia, idealiza e oferece mão de obra para tornar o percurso dos canos possível. Depois de construir os espaços, os moradores ainda se dedicam a mantê-los, o que requer uma rede de funcionamento coletivo e voluntário.


Gilvan Silva fez parte da construção da Bica dos Jardins, há 27 anos, e conta que os canos foram doados por comerciantes locais. As funções das bicas são diversas. A água é utilizada para banho, lazer e abastecimento da população. De acordo com Laura Jane Gomes, professora titular do Departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Sergipe, as bicas são “áreas de socialização, reconhecimento e construção coletiva de envolvimento dos moradores”.


Enquanto a família de Kelly Santos comemora o aniversário de sua tia na Bica, outro grupo de amigos vai se refrescar depois do futebol. Na mata que rodeia essas “fontes naturais”, como define Joyce Gois, há também pontes e mesas improvisadas para quem vai passar o dia ali. Seu Gilvan admira a mata ao redor da Bica da Avenida, e brinca “se aquela menina do Giro Sergipe (Anne Samara) viesse aqui, não ia querer mais sair”.


Duas meninas em cima de uma ponte de madeira, brincam com a água do lago que fica embaixo. O espaço ao redor é cheio de árvores.
As crianças brincam em todos os lugares ao redor da Biquinha. Foto: Laura Malaquias.

CULTURA E LAZER


Os são-cristovenses que trabalharam na construção de alguma bica trazem satisfação na voz ao contar as memórias desse processo. Satisfação por criar espaços para o lazer e, como sempre destacam, por fazer isso em um movimento coletivo e espontâneo, na companhia de familiares e vizinhos. O mesmo contentamento acompanha suas falas quando explicam que os arredores das bicas são limpos por voluntários da vizinhança, ou que os próprios moradores estabelecem as regras de convivência desses espaços.

Perto das árvores, na Bica dos Jardins, é deixada uma vassoura fixa destinada à limpeza do local, que, de acordo com o morador Bruno do Nascimento, é feita por qualquer frequentador que percebe a necessidade. O desenvolvimento dessa cultura acontece no cotidiano e feito de forma conjunta pelos moradores da cidade.

O caminhoneiro Alex dos Santos, de 29 anos, morou sua vida toda nas redondezas da Biquinha, e acompanhou o trabalho dos seus parentes na organização do local. Ele responde com firmeza como funciona a manutenção do espaço da bica. “Aqui não tem isso de ‘ah, vou pagar para fulano limpar’, não. Aqui a gente vem e põe a mão na massa”. Na ocasião, Alex estava na Bica da Avenida com alguns familiares, todos comemorando um aniversário em família e desfrutando do espaço que ajudaram a transformar em uma alternativa para a convivência familiar e comunitária.


Uma vassoura de palha encostada no tronco de uma árvore. Atrás, o espaço de mata.
A limpeza é feita colaborativamente. Foto: Laura Malaquias

Quase todas as bicas da Cidade Baixa possuem a mesma lógica de organização interna, surgida de maneira orgânica entre a população local, com exceção da Bica dos Pintos, que está interditada para obras de manutenção promovidas pela prefeitura de São Cristóvão. Os espaços são criados com a mesma naturalidade com que as fontes de água surgem na Pratinha, isso porque a conduta dos moradores reflete uma cultura de pertencimento mútuo entre as pessoas do território.


Para o antropólogo Ugo Maia Andrade, o que acontece em ambientes como os das bicas de São Cristóvão é uma apropriação do espaço coletivo, uma ação importante para a manutenção de um tecido social. “Isso é o que vai permitir a sociabilidade entre as pessoas de uma comunidade. É o que vai permitir a manutenção de redes de relações que são fundamentais para a conservação de um coletivo. E essas redes podem estar elencadas em diversos rótulos, inclusive o de ‘lazer’”, disserta o professor.


Essas redes de relações, explica Ugo Maia, são formadas por diferentes atores sociais: mulheres, homens, crianças e idosos, que possuem soberania sobre determinado espaço, com um valor simbólico por significar algo para essas pessoas.


“Quando falamos em territórios tradicionais, se pensa em territórios indígenas, que é um primeiro modelo, mas espaços onde as bicas acontecem são territórios também. Porque ali há um substrato físico, mas existe também uma importância social”, discorre.

Um homem de blusa laranja se agacha para encher o galão de água, em uma bica de canos finos. Ele olha para a câmera. Atrás, três meninas se movimentam..
A água das bicas serve para o consumo e abastecimento interno. Foto: Laura Malaquias.

Apesar de as bicas também amenizarem as consequências da falta de água potável recorrente na cidade, o lazer continua sendo o principal agregador da rede de relações que toma conta das clareiras abertas nas matas da Pratinha. Seja na Avenida, onde sons eletrônicos trazidos por grupos variados formam uma mistura de ritmos, ou na bica próxima ao povoado Pintos, onde a risada das crianças ecoa somente entre os sons da mata, as bicas da Cidade Baixa são preenchidas pelo barulho de redes de relações estabelecidas pela satisfação coletiva.


PRESERVAÇÃO DO ESPAÇO


As memórias das pessoas que fizeram da Biquinha do Jardim um espaço de lazer são repletas de orgulho, por saberem que foram suas mãos que deram uma nova forma a esse lugar, que antes era somente um laranjal. Mas em suas falas também ecoa a revolta em torno das dificuldades e da falta de assistência para preservar o espaço.


Ruy Santos, de 53 anos, fez parte do movimento de construção da Bica há mais de 20 anos e da sua reconstrução em 2019. Ele relata com tristeza que se afastou da organização que cuida do ambiente por conta de conflitos existentes a partir da banalização do espaço. "Aqui era diferente, tinham várias mesas, balanços para as crianças brincarem, mas os vândalos tomaram conta". Outros moradores alegam que houve diversos furtos no local. Segundo eles, foram roubadas encanações e até as lâmpadas que faziam a iluminação durante a noite.


Uma esteira de palha amarelada, estendida no chão de terra. Em cima da esteira, há um travesseiro branco com desenhos de cereja, uma blusa laranja e, ao lado, um chinelo rosa.
As famílias tornam o ambiente confortável para as crianças. Foto: Laura Malaquias.

Nos finais de semana, pessoas de toda cidade frequentam a Biquinha, cada família improvisa o ambiente como pode, com esteira, rede e mesas que trazem de casa. Atualmente, o espaço conta somente com uma mesa de madeira, um pequeno e degradado jardim contornado com sacos de areia e um campo de futebol cercado por pneus e, como tudo ali, feito pelos próprios moradores. O jovem, Bruno Santos, diz que para transformar o espaço e deixá-lo mais abrangente, seria essencial a ajuda de “um órgão maior, como a prefeitura”, para dar suporte na organização do lugar.


A professora Laura Jane fala sobre a importância de haver uma parceria entre a prefeitura e a comunidade, para garantir que as bicas continuem sendo áreas de ocupação e espaço social. “É preciso possibilitar um diálogo por meio de ações de educação ambiental que visem, por exemplo, a recuperação e manutenção da vegetação no entorno, evitar degradação dessas áreas e manter a água limpa”, destaca.


A necessidade apontada pela professora, também é descrita por moradores, que sentem falta de orientações sobre a preservação da mata e das nascentes. "Precisávamos de um educador capacitado para nos orientar a preservar ainda mais", afirma o morador Bruno Santos. Apesar de possuir placas de conscientização ambiental, foi possível notar lixo espalhado no entorno do Rio e até mesmo um cachorro morto dentro d'água.


Os voluntários que cuidam da Biquinha relataram que não existe uma comunicação com a prefeitura a respeito de propostas de melhorias. Tentamos contato com a secretaria de infraestrutura de São Cristóvão, mas não obtivemos resposta direta do secretário, Júlio Nascimento. A assessora informou que “não há planos a curto prazo para que o espaço seja viabilizado e estruturado para o lazer da comunidade”. Contudo, ela afirma que a secretaria de Serviços Urbanos realizou limpezas no local.


 

Para saber mais sobre as bicas de São Cristóvão, é só acessar o Web Documentário "Pegadas da Cidade Baixa ", na Zona Contexto.

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