Por Beatriz Passos, Gabrielle Oliveira, Maria Fernanda Monteiro e Náthaly Reis
Foto: Beatriz Passos
O caminhoneiro Júnior de Jesus, 40, estava prestes a embarcar em mais um trabalho pelas estradas quando a reportagem chegou à sua casa, na região central de Itabaiana (distante pouco mais de 56 km de Aracaju). Sua esposa, Sandra dos Santos, organizava a mala com itens essenciais para uma estadia de 15 dias em sua segunda casa: o caminhão. Com a bagagem pronta, despediu-se da mulher e do filho Arthur, de sete anos.
Durante os dias na estrada, é inevitável que o caminhão passe a servir como um lar para os profissionais do volante. Júnior faz viagens de grandes trajetos — São Paulo e Teresina estão entre os destinos mais comuns — e é no próprio automóvel que ele descansa, em uma cama instalada na cabine. Para comer, faz paradas em restaurantes de beira de estrada, mas nem sempre é fácil encontrar os estabelecimentos. O motorista, então, se reinventa como dá, por vezes, passando horas sem comer. É assim que Júnior e outros caminhoneiros itabaianenses levam a vida nas suas viagens a trabalho.
O caminhoneiro e verdureiro Jonas Miguel dos Santos, 32, conhecido pelos colegas de profissão como Caranguejo, costuma viajar para a região da Chapada Diamantina, na Bahia, e conta qual é o sentimento de ser caminhoneiro. “Hoje virou um vício, eu não consigo ficar em casa por muito tempo”, comenta o motorista. “Ser caminhoneiro não é só entrar e dirigir, você tem que ter responsabilidade porque está colocando sua vida e a vida dos outros em risco. É estar sempre preparado para receber as dificuldades no meio do mundo”, completa.
“Ser caminhoneiro não é só entrar e dirigir, você tem que ter responsabilidade porque está colocando sua vida e a vida dos outros em risco. É estar sempre preparado para receber as dificuldades no meio do mundo” Jonas Miguel dos Santos, caminhoneiro
Antes de marcar as vidas de Júnior e Jonas, a história dos caminhões em Itabaiana se iniciou em 1924, quando o líder político Esperidião Noronha levou o primeiro desses automóveis para a cidade. No entanto, foi só no ano de 1954, com a construção da BR-235 — rodovia que liga Sergipe ao Pará —, que o número de caminhões da cidade explodiu. Em novembro de 2014, a então presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou a lei que tornou Itabaiana a “Capital Nacional do Caminhão”, um título estampado com orgulho na entrada da cidade.
A popularidade do automóvel no município serrano deve-se, também, ao “espírito aventureiro” que o itabaianense carrega consigo. “Caminhão significa liberdade, ele não é só um meio de ganhar dinheiro, ele também é um meio de diversão”, explica o historiador e escritor local José de Almeida Bispo. “O espírito de aventura do caminhão existe por causa da necessidade de expansão, de conquista e de conhecer o horizonte”, completa.
Os caminhoneiros costumam demonstrar sua fé e sua personalidade através de frases
plotadas no caminhão. Foto: Maria Fernanda Monteiro
Hoje, Itabaiana é a cidade com o maior número de caminhões per capita do Brasil. São aproximadamente 10.000 caminhões registrados para cerca de 100.000 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda assim, os caminhoneiros itabaianenses sofrem com os desafios da estrada e com a desvalorização da profissão.
O CAMINHÃO É TRADIÇÃO
O caminhão, para os itabaianenses, é um símbolo de cultura. Todos os anos acontece, no município, a Festa dos Caminhoneiros e a Feira do Caminhão. A celebração vai de três a 13 de junho e conta com shows musicais com atrações nacionais e regionais, concurso de beleza, alvorada, carreata mirim, além da exposição e venda de produtos relacionados à atividade caminhoneira. Em 2023, durante a festa, Itabaiana recebeu cerca de 250 mil visitas, segundo dados divulgados pela Secretaria Municipal de Comércio.
A comemoração também se relaciona com a fé dos profissionais do volante. A princípio, os caminhoneiros de Itabaiana celebravam São Cristóvão, o padroeiro dos motoristas. Em 1976, a profissão passou a ser celebrada no dia 12 de junho, entre os dias da trezena de Santo Antônio. “Juntaram três coisas distintas: os caminhoneiros, que trocaram São Cristóvão por Santo Antônio, a feira para a venda de caminhões e a festa para alegrar a população.” explicou o secretário de Cultura, Antônio Samarone de Santana.
Além das manifestações culturais, em Itabaiana a tradição em torno do caminhão é também familiar. José Genesio Bispo, 82, também conhecido como Zeca de MR [merrê], herdou não só o apelido do pai, mas também o caminhão. Iniciou o trabalho aos 18 anos de idade e já dirigia por longos trajetos, com viagens que chegavam a durar um mês inteiro. Nesses longos períodos longe de casa, Seu Zeca perdeu o nascimento de alguns dos seus filhos.
Nailze Bispo, sua filha mais velha, conta que os momentos com o pai eram escassos. Assim que ele chegava de viagem, passava a maior parte do tempo descansando e se preparando para viver tudo aquilo novamente. A despedida e a saudade seguiram até o momento em que seu Zeca adoeceu e seus filhos decidiram que já era hora do pai parar de viajar. O caminhão, entretanto, não saiu da família. Dentre os seis filhos de seu Zeca, cinco seguiram trabalhando na área- Nailze, inclusive, coordena uma oficina de caminhão. Para conhecer mais sobre a história dela, acesse o webstory.
A fama da cidade não se restringe apenas ao menor estado do Brasil. O local também é destino para caminhoneiros de diferentes regiões do país, devido à facilidade em serviços para seus automóveis. “A gente vem para cá porque aqui tem tudo com maior facilidade, nós conseguimos mexer em carroceria e parte de molejo (peças para as molas do caminhão), tudo em um só lugar, não precisamos andar de uma cidade para outra”, acrescentou o caminhoneiro Fabiano Gaiva, natural do Espírito Santo.
O caminhão é um dos personagens principais do comércio de Itabaiana. A cidade dispõe de dezenas de lojas que vendem o automóvel, 14 fábricas que produzem 15 mil carrocerias por ano e 20 oficinas que realizam variados serviços e reparos.
O comércio de Itabaiana está totalmente ligado ao caminhão. Fotos: Beatriz Passos
NO VAI E VEM, SEGURANDO AS RÉDEAS DO VOLANTE
Em 2018, caminhoneiros de todo o Brasil paralisaram suas atividades em protesto contra o aumento do preço do óleo diesel. A manifestação durou 10 dias e, em pouco tempo, fez com que o país parasse junto com eles. A produção de fábricas pararam, aulas foram canceladas e as prateleiras do supermercado ficaram vazias. O Ministério da Fazenda calculou que o prejuízo financeiro para a economia do país chegou a R$15,9 bilhões.
Apesar da importância da profissão (ou pela dependência dela), os trabalhadores enfrentam uma série de dificuldades, como longas jornadas de trabalho e a pressão para a entrega das cargas a curto prazo. As consequências incluem má alimentação, cansaço, fadiga, estresse e acidentes. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, foram registradas 776 mortes de caminhoneiros em acidentes no Brasil somente em 2022. Em adição, o Sindicato dos Caminhoneiros de Itabaiana destacou que o índice de mortalidade dos trabalhadores da cidade se deve majoritariamente às más condições das estradas, excesso de velocidade, falta de descanso correto e imprudência.
A dissertação da nutricionista e mestre em Ciências da Saúde pela UFS Adriana Figueirêdo aponta que mais de 90% dos caminhoneiros entrevistados têm a circunferência abdominal elevada e muitos sofrem de obesidade por conta da má alimentação e do sedentarismo. A mesma pesquisa também evidenciou um uso indevido de anfetaminas [medicamentos estimulantes] com o objetivo de manter-se acordado pelo maior tempo possível, o que atrapalha o ciclo de sono e, consequentemente, a qualidade de vida dos condutores.
O Ministério da Saúde, em conjunto com o Serviço Social do Transporte e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SEST SENAT), garantem um cartão de saúde como benefício aos profissionais do caminhão. No entanto, o titular deste cartão geralmente é o dono do caminhão — que, na maioria das vezes, não é quem o dirige —, deixando os condutores sem assistência.
Os riscos da profissão estão também nas estradas. O caminhoneiro Júnior, que conhecemos no início da reportagem, relata que os desafios vão desde taxas para tomar banho em postos espalhados pelas rodovias — os preços podem chegar a até 10 reais — até situações de risco de vida. Há três meses, o caminhoneiro foi vítima de um assalto no município de Osasco, na região metropolitana de São Paulo. Três homens armados levaram o caminhão que ele dirigia e todos os seus pertences. “Deixaram a gente no mato, ficamos com dois rapazes armados de três horas da manhã até seis horas. Quando levaram a carreta, nos soltaram”, conta o caminhoneiro. “Foi a pior coisa que aconteceu comigo até hoje… eu só pensava em Arthur [filho do motorista]”, completa.
Jonas, que também foi mencionado, destaca outros desafios. O caminhoneiro já ficou oito dias dirigindo sem parar, deixando de dormir devido a pressão do patrão para entregar a carga rapidamente. “É um pouco sofrida a vida de caminhoneiro… pena que é uma profissão muito desvalorizada. Rojão de verdureiro é pisado porque, às vezes, o patrão liga dizendo ‘adiante aí’ e você sai ‘fazendo das tripas coração’ para não passar do horário e perder a feira”.
Os caminhoneiros destacam que, mesmo a cidade sendo considerada a Capital Nacional do Caminhão, ainda falta infraestrutura. “Hoje, você chega em Itabaiana e são contados os postos que tem um banheiro bom o suficiente, para um caminhoneiro chegar, tomar um banho e descansar tranquilo”, reclama o caminhoneiro Jonas, enquanto cobra atenção dos empresários locais.
A atividade caminhoneira carrega consigo pessoas de diferentes idades e gerações, mas com histórias semelhantes. Identificação: Júnior, Jonas e Seu Zeca.
Fotos: 1 e 3 Náthaly Reis/ Foto: 2 Beatriz Passos
Os familiares que ficam em casa, aguardando a volta dos condutores, também sofrem com os desafios da espera e da ausência. Para conhecer melhor a história de algumas dessas famílias, escute o podcast “Cidade dos que Esperam”.
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