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Do Samba de Coco às Taieiras, São Cristóvão é berço do folclore sergipano

Por Alanna Suellen, Lívyan Holanda e Raniele Alves

 
Cinco bonecos no fundo branco um homem com blusa florida, uma mulher com vestido florido, um homem de macacão azul e pontos coloridos, uma mulher com vestido de fitas e um boi coberto com pano florido.
Representação dos grupos folclóricos das Caceteiras e do Reisado. Foto: Lívyan Holanda

Fundada em 1 de janeiro de 1590, durante a União Ibérica - unificação das coroas portuguesa e espanhola entre 1580 a 1640 - São Cristóvão é a cidade mãe do povo sergipano. Com mais de 400 anos de existência, São Cristóvão é a cidade mais antiga de Sergipe, e a quarta mais antiga do Brasil, atrás apenas de Salvador, Rio de Janeiro e João Pessoa.


Erguida sobre um pluralismo de culturas - africana, indígena, portuguesa e espanhola - devido ao período de colonização do Brasil, São Cristóvão é uma cidade com suas raízes marcadas por uma grande diversidade cultural responsável pela criação da identidade do povo são-cristovense.


Essa diversidade conseguiu gerar no município diversas manifestações culturais que já ultrapassam séculos de existência. Falar de manifestação cultural significa tratar de expressão artística enraizada nas origens, erguidas sobre culturas tão diferentes, a princípio, desconhecidas.


A palavra folklore, criada em 1846 pelo inglês Willian John Thoms significa “o saber do povo”. O termo abrange a ideia de superstições, antiguidades populares ou curiosidades criadas pelas pessoas de uma determinada região.


Dessa forma é possível entender como folclore, as expressões de um povo nos mais diversos âmbitos dessa cultura, seja pela tradição, culinária ou religião de um povo. A partir de uma manifestação cultural pode surgir o folclore para o fortalecimento desse íntimo identitário de uma região.


MESTRE JORGE, HISTÓRIA VIVA DO FOLCLORE DE SÃO CRISTÓVÃO


Numa pequena casa ao lado da Escola Lar da Imaculada Conceição (ELIC), mora Jorge dos Santos, de 87 anos. Reconhecido como mestre da Cultura Popular do Brasil pelo concurso Prêmio de Culturas Populares no ano de 2018, ele participa desde seus 8 anos de idade das tradições folclóricas de São Cristóvão. Mestre Jorge, como é chamado pelos moradores da região, é a história viva da tradição folclórica do município.


Para o Mestre Jorge a cultura é o remédio para a comunidade, algo que possa te lembrar de quem você é.


“A gente fica com a cabeça um pouco problemática, e se esquece de alguma coisa. A cultura ajuda a gente a consertar isso, ela é um remédio”, afirma Jorge.

Filho de costureira, sua mãe participava de alguns grupos folclóricos. Por isso, desde cedo já acompanhava ela durante os festejos tradicionais da região. Mestre Jorge relembra com carinho os momentos felizes de sua juventude brincando o Carnaval e o São João de São Cristóvão.


Para ele, hoje em dia os jovens não sabem aproveitar essas pequenas coisas e perdem momentos felizes e únicos que ele curtia quando era criança. “Quando as meninas faziam 12 anos se preparavam para brincar no reisado. Hoje elas não se interessam mais por isso”, comenta o mestre.


Ainda jovem, Jorge se mudou para o Rio de Janeiro e morou lá por 30 anos. Pôde conhecer um samba no pé diferente do que estava acostumado de quando dançava o Samba de Coco, em São Cristóvão: o samba de Madureira, da zona norte do Rio de Janeiro. Retornou para São Cristóvão a pedido de sua mãe, e de lá não saiu mais.


 Homem pardo no meio da foto com calça laranja e traje das Taieiras. Atrás, parede branca com alguns retratos e um móvel com televisão. A esquerda tem uma cadeira verde com alguns objetos em cima.
Mestre Jorge com vestimenta feita por ele de mestre das Taieiras. Foto: Raniele Alves.

Atualmente ele participa ativamente de alguns grupos folclóricos, a exemplo das Taieiras e do Samba de Coco. As vestimentas e acessórios de seus trajes folclóricos são todos feitos por ele, privilégio de ter tido uma mãe costureira.


Sobre o futuro do folclore em São Cristóvão, Mestre Jorge vê uma grande distância do que já foi um dia. "Eu vejo caindo uns 50%, por causa do interesse da juventude. Eles têm vergonha de sambar o coco, têm vergonha de vestir uma fantasia adequada. Eu nasci num domingo de carnaval e vi a vida toda os festejos. Eu queria que a cidade não perdesse esse brilho", lembra Mestre Jorge.


A CASA DAS CULTURAS POPULARES ZECA DE NOBERTO


Em São Cristóvão, há um enorme universo folclórico que contribui para conhecer as mais diferentes origens de seu povo. Um dos espaços que abriga parte dessa riqueza cultural do município é a Casa das Culturas Populares, localizada na Praça São Francisco. Lá são encontrados itens que fazem parte das diversas manifestações culturais que emergiram na cidade de São Cristóvão e um pouco de sua história.


Casa branca com placa vermelha pendurada na entrada na Casa das Culturas Populares. Atrás, borda verde da porta de entrada, e em cima o telhado..
Placa de entrada da Casa das Culturas Populares em São Cristóvão. Foto: Lívyan Holanda.

Maria Glória Santos é coordenadora da Casa da Cultura do município e se interessou pelo folclore local quando assistiu pela primeira vez ao grupo Chegança - folclore que retrata o embate entre os mouros e cristãos na península ibérica. Daí em diante pensou que deveria haver um local para manter a tradição das manifestações, para reunir os moradores e turistas e manter os grupos mais presentes na cidade.


Antes de se chamar Casa da Cultura, o local era conhecido como Casa do Folclore. A Casa do Folclore, criada em setembro dos anos 2000, tinha por objetivo manter e propagar as manifestações culturais dos grupos tradicionais de São Cristóvão. A mudança de nome foi para manter a casa viva, prezando pela manutenção e perpetuação das tradições com a presença dos mestres de cada grupo folclórico.


“A casa da cultura é uma casa viva. Resolvemos mudar o nome da Casa do Folclore para Casa da Cultura para ter mais abrangência. A casa abriga elementos dos grupos existentes no município, do ciclo do Natal e do ciclo do São João, com os bonecos e as indumentárias. A ideia da casa é fazer mapeamentos dos grupos folclóricos, diagnosticar necessidades, também receber pesquisadores e ministrar oficinas. A gente não quer uma casa estática. A gente quer uma casa funcionando”, explica Maria Glória sobre o funcionamento da Casa da Cultura.


A Casa da Cultura faz o diagnóstico para a realização de projetos. Um deles é para que os Mestres, pessoas responsáveis pelos grupos folclóricos, possam receber pelo seu trabalho, e, como eles pertencem a grupos independentes, sem vínculo com a Prefeitura de São Cristóvão, a casa da cultura procura saber o que mais precisam e o que mais gostam de fazer.


“A gente não pode chegar lá e fazer como a gente acha que deve ser. A gente tem que primeiro perguntar como é que eles (os grupos) querem as apresentações”, esclarece a coordenadora.

A Casa tem ainda o projeto de percussão e violão, porque há dificuldade com a musicalidade dos grupos, já que o músico, nesse caso, o tocador, é uma coisa rara. Por isso, a Casa faz o trabalho de salvaguardar os grupos na medida do possível.


A Casa é ainda responsável pela realização de ensaios abertos dos grupos folclóricos que acontecem mensalmente. Esse ano já foram realizados dez ensaios abertos. Porém, com a chegada do Festival de Artes de São Cristóvão, que acontece entre os dias 01 a 04 de dezembro na cidade, nos meses de novembro e dezembro não haverão ensaios abertos, pois os grupos estarão se preparando para se apresentar no festival, retornando em janeiro de 2023.


Mulher negra com vestido vermelho e crachá de identificação com sua função e nome. Atrás, uma parede branca com três cartazes coloridos e com a história de alguns grupos folclóricos.
Coordenadora da Casa das Culturas Populares Zeca de Noberto, Maria Glória. Foto: Raniele Alves.

Caceteiras, Chegança, Reisado, Batalhão de São José, São Gonçalo, Samba de Coco, Bacamarteiros, Langa e Taieiras fazem parte da exposição da Casa da Cultura. A origem dessas manifestações são variadas e foram entrelaçadas durante o desenvolvimento do povo são-cristovense.


Parede interna da Casa das Culturas Populares Zeca Norberto com seis cartazes coloridos com a história de algumas manifestações populares de São Cristóvão.
Parede da Casa de Culturas Populares com seis manifestações da região. Foto: Raniele Alves.

É possível observar que essa diversidade cultural permitiu que a cidade tivesse um rico folclore. Alguns deles bastante conhecidos, como o Samba de Coco. Ao lado das Taieiras, o Samba de Coco compartilha da mesma origem: o povo africano. Nesse sentido busca-se apresentar os folclores de origem africana que nasceu na histórica cidade de São Cristóvão.


SAMBA DE COCO


O Samba de Coco é uma manifestação folclórica que tem em sua origem a influência africana e os passos indígenas que surgiu no Brasil durante o período colonial. Segundo o assessor de promoção turística de São Cristóvão Kaique Alex, naquela época os escravos desconheciam o tempo livre e para esquecer as mazelas da escravidão eles relembravam da sua cultura na África com brincadeiras e arte de seu povo.


Apesar das divergências de informações a respeito da origem do Samba de Coco, os arquivos históricos apontam que a tradição folclórica foi criada pelos escravos dentro dos quilombos e senzalas com início no estado de Pernambuco (PE).


Lá, o ritual de assentar o chão das senzalas com os pés inicialmente tinha outro nome: Mazuca. Passou a ser chamado de Samba de Coco quando associaram o local que acontecia essa tradição à grande quantidade de coco da região na cidade de Arcoverde, Pernambuco.


O Samba de Coco de Sergipe (SE) tem uma origem um pouco diferente. Ao contrário do que acontecia nas senzalas de Pernambuco, o ritual do Samba de Coco do estado recebeu esse nome pela prática da quebra do coco feita pelos negros nos quilombos, de acordo com Mestre Jorge.


Essa manifestação cultural faz referência às brincadeiras de roda com o ritmo indígena agregado às canções dessa tradição. A aproximação entre as duas culturas aconteceu porque ambos dividiam o mesmo território.


"Eles (indígenas e africanos) são da caatinga. Do mato. Quando viam uma pessoa tinham medo. É difícil apontar diferenças entre suas brincadeiras porque eles viviam em mata fechada. Nem um nem outro tinham acesso à cidade. Então eles faziam aquilo (brincadeiras) e um foi copiando do outro para que nós hoje tivéssemos esse costume", explica Mestre Jorge.


O som das músicas do Samba de Coco é caracterizado pelo uso de instrumentos de percussão como o tambor, a caceteira - som dos cacetes nos tambores -, a cuíca e o chocalho. Porém, o destaque da dança não são os instrumentos, e sim a batida dos pés no chão que dão ritmo. Mestre Jorge explica como funciona a brincadeira. "O Samba de Coco é para quem sabe responder no pé. É bonito quando ele é ensaiado e as pessoas têm aquela energia, aquela vontade de participar”, diz o Mestre.


Para ele, os brincantes precisam acompanhar o ritmo da batida dos instrumentos. O samba de coco é calado, pois em um certo momento da dança a bateria para e a dança continua nos pés. Essa parte da dança acontece para que a bateria tenha certeza que os participantes estejam no ritmo da brincadeira. Se houver alguém fora da batida dizem: tem cavalo manco, sinal que alguém estragou a brincadeira.


Camila Alves, atualmente com 20 anos, dançava coco quando ainda era criança. Ela relembra como foi sua experiência em participar do grupo folclórico.


"Era bom. Eu dancei quando tinha uns dez anos. Naquela época, enquanto participava do grupo, pude conhecer vários municípios de Sergipe e do Nordeste”, lembra Camilla.

Mulher negra com uniforme branco em frente a placa roxa com letras brancas. Ao fundo é possível ver alguns bonecos que representam os grupos folclóricos da região dentro da Casa da Cultura em São Cristóvão.
Camila Alves estagiária da Casa da Cultura e ex-participante do Samba de Coco. Foto: Raniele Alves.

Existem diferentes tipos de sambar coco. O solto, dançado sozinho no meio da roda, o pareia, dançado em conjunto, o corta jaca, dançado arrastando o pé no chão que lembra o som do xaxado junino, e o carro quebrado. "O samba solto é a parte mais difícil da dança. A pessoa vai para o meio da roda e começa a sambar. Para sair da roda ela tem que convidar outra pessoa para entrar. Tem que ser um samba arrochado, porque elas precisam estar no mesmo ritmo", ensina Jorge.


O samba de coco traz no íntimo de sua música e dança a cultura popular e o poder da oralidade para manter acesa a chama da memória de um povo.


TAIEIRAS


As Taieiras é uma manifestação folclórica que tem raiz africana. O primeiro registro do grupo no Brasil foi no estado de Sergipe, no município de Laranjeiras, no século XIX. No ano de 2001, as Taieiras foram recriadas na cidade mãe de Sergipe, São Cristóvão.


As Taieiras, Samba de Coco e Reisado foram reorganizadas pela Irmã Caridade, freira da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, e por Mestre Jorge como forma de entreter a população de São Cristóvão há 21 anos.


Homem pardo de chapéu no canto direito da imagem segurando albúm de fotografia com fotos antigas dele dançando Taieiras. Atrás fundo branco das paredes, banner pendurado na parede esquerda e cadeiras verdes embaixo.
Mestre Jorge relembrando fotos antigas em que dançava Taieiras. Foto: Raniele Alves.

A manifestação folclórica Taieiras é originalmente formada por um rei e por uma rainha, pelos acompanhantes, pelas Taieiras - mulheres que utilizam vestidos brancos enfeitados com fitas coloridas - e pelos instrumentistas de percussão, um tocador de tambor e ganzás manipulados pelas Taieiras, com variação a depender do grupo. “Antigamente as roupas das Taieiras eram feitas a mão com mais capricho. As rendas eram tecidas pelos bilros em um suporte de madeira”, conta Mestre Jorge.


As Taieiras são organizadas e mantidas por um líder e as características de cada grupo refletem a visão e as experiências pessoais dele. “O mestre quem faz a marcação. Sem o mestre, as Taieiras não brincam porque a música tem que ser no ritmo certo com os tocadores. Quando eu apito é sinal que elas podem começar a dançar e começa a música”, explica Mestre Jorge.


Mão de homem pardo segurando apito enferrujado com cordão preto. Em segundo plano aparece ao  fundo o tronco do homem que veste blusa cinza.
Apito utilizado para marcar movimentos durante a apresentação das Taieiras. Foto: Raniele Alves.

Depois disso, começa a coroação da rainha com um vestido muito rico em detalhes. As taieiras, os tocadores e o mestre, que é seu Jorge, chamam a rainha e fazem a homenagem a ela e assim encerra a manifestação.


Uma das características principais dessa manifestação é ser composta basicamente por mulheres, que dançam e cantam em homenagem a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. No entanto, o grupo de Taieiras de São Cristóvão faz referências a símbolos e santos católicos como Maria Mãe de Jesus e João Batista.


Além de homenagear diferentes santos, a manifestação das Taieiras em São Cristóvão é realizada de outra forma. O grupo é comandado por um Mestre “que puxa o samba”. Na formação do grupo existe a Pastora, as Tiradoras de Ladainha e a Porta-Bandeiras.


A pastora representa a rainha das pastoras, as tiradoras de ladainha ficam na frente da apresentação e puxam os versos e a porta-bandeira leva o estandarte das Taieiras ou “bandeira do divino”.


A bandeira do divino possui um símbolo da Igreja, que representa a fé religiosa, um chalé desenhado, que representa as pastoras, e desenhos dourados, simbolizando o ouro, já que as Taieiras, a princípio, faziam homenagem ao Imperador.


Na cultura de São Cristóvão, as Taieiras não tem rei ou rainha. As mulheres se vestem com saias compridas decoradas, blusa branca com chalés no ombro esquerdo e na mão seguram peneiras enfeitadas.


Essa nova tradição das Taieiras começou quando Seu Jorge voltou para a sua cidade natal após 30 anos participando dos festejos no Rio de Janeiro. Foi quando, em 2001, ele, junto com a Igreja e sua família, recriou o grupo das Taieiras em São Cristóvão que já era quase inexistente.


Grande parte dos grupos de Taieiras não estão atrelados às datas comemorativas do calendário católico, por esse motivo as Taieiras viajam e conhecem lugares novos para apresentar o grupo. Assim, as Taieiras passaram a se apresentar mais vezes durante o ano e não somente de forma tradicional e rotineira, segundo Mestre Jorge.


“As Taieiras é uma apresentação que não é folclórica de tempo, ela é histórica. As Taieiras eram as escravas das casas grandes, não qualquer uma. Elas faziam apresentações para agradar os patrões. Estes apostavam nelas pelas roupas bonitas de chita, com chalé, pano amarrado, lenço e colares”, explica Mestre Jorge.


As músicas não têm acompanhamento harmônico ou melódico. Assim, existe diversidade de uma execução para outra. A música das Taieiras reflete a relação do grupo com a sociedade que está inserida, como os conceitos polares da religião, sua relação com os santos, a diversão e relação com o profano.


“Oh taieira ê. Oh taieira á. Um pezinho pra frente e um pezinho pra trás. Eu fui a Natal. Eu fui a Belém. Fui louvar Jesus em Jerusalém e o coro começa a cantar junto”, canta Mestre Jorge.

 

Para saber mais sobre a cultura do folclore de São Cristóvão, é só acessar o Web Documentário "A Casa Amarela: o Folclore do outro lado da praça”, na Zona Contexto.





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