Oportunidades
Artistas do Isolamento
Criatividade e redescoberta durante a quarentena
ANA JULIA OLIVEIRA
O novo Coronavírus, um inimigo invisível e desconhecido, não apenas passou a ameaçar nossa saúde, mas também confiscou as chaves das nossas casas, limitando a capacidade de ir e vir. Em um cenário onde as opções de lazer estão escassas, as pessoas sentiram a necessidade de inovar para preencher o vazio cotidiano e manter a saúde mental sem sucumbir às consequências negativas do isolamento social. Dentro desse contexto desafiador, algumas pessoas optaram por começar ou, ainda, aumentar o consumo e produção de arte.
Com o avanço da pandemia, a internet, além de se tornar a principal ferramenta para o diálogo e o entretenimento, contribuiu para o aumento exponencial do consumo e da produção de diversos produtos artísticos, como artesanato, materiais audiovisuais, música e até mesmo outras formas de comunicação — a exemplo dos podcasts. No âmbito do consumo, o melhor exemplo a ser dado é o dos serviços de streaming, cujo avanço global atingiu 20% em março, segundo a Conviva — empresa especializada em inteligência integrada de dados.
O aumento do tempo gasto pelos usuários nas plataformas de streaming durante a quarentena se transformou em oportunidade para a estudante de Letras, Letícia Mota, que idealizou o perfil Um Filme Todo Dia, no Instagram. Na página, a estudante indica filmes e séries nacionais e internacionais, de toda e qualquer plataforma de streaming do mercado. Buscando evitar o ócio, Letícia deus um novo sentido anum hobby que nutria antes mesmo da quarentena. “Na pandemia eu tive medo de me tornar uma pessoa ociosa, então uni o útil ao agradável, porque sempre consumi bastante conteúdo cinematográfico. Foi o momento de transformar o meu próprio lazer em trabalho e ajudar outras pessoas”, explica Letícia.
O isolamento social também abriu portas para a produção de conteúdo autoral nas mídias digitais, e um bom exemplo é o aumento do consumo e produção de podcasts. Dados da plataforma de streaming Spotify, revelam que o consumo de podcasts, no Brasil, dobrou no segundo trimestre de 2020. Já em relação À produção, uma pesquisa compacta, publicada pela Voxnest — empresa americana especializada em tecnologias para indústria de áudio — mostra que o Brasil lidera o ranking de países em que a produção de podcasts cresceu desde o início deste ano, sendo seguido pelo Reino Unido e Canadá, respectivamente.
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Em Sergipe, um exemplo dessa tendência é a estudante de enfermagem, Ana Beatriz, que idealizou o podcast Ana Beatriz e a jornada do autoconhecimento, para auxiliar pessoas durante o processo de amadurecimento e, também, se conhecer melhor. Sempre conectada ao que acontece na cultura dos podcasts e na área da comunicação, Beatriz começou seu próprio produto durante o isolamento social. O impulso da iniciativa surgiu após perceber que o cenário pandêmico a fez levantar inúmeros questionamentos sobre a sua própria vida e personalidade. O podcast foi o formato escolhido para partilhar suas angústias e ajudar a si e aos ouvintes de seu programa sonoro. “Tem me ajudado bastante [o podcast], com certeza é uma válvula de escape da realidade, e que de forma indireta acaba ajudando outras pessoas também. Precisamos disso, conexões e compartilhamento de conhecimento”, defende.

Letícia Mota. Foto: Arquivo pessoal.



Ana Beatriz e a capa do seu podcast Ana Beatriz e a jornada do autoconhecimento
Beatriz também conta que o seu podcast a ajudou a enxergar o isolamento de outra forma, trabalhando sempre a sua saúde mental (inserir link do podcast da equipe de sonoro sobre arte terapia) para evitar um “colapso consigo mesma”, justamente por ser um momento delicado para o mundo inteiro e que deixou o terreno fértil para o desenvolvimento de inúmeros transtornos.
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Ainda no âmbito das produções sonoras, há também artistas que decidiram se profissionalizar durante a quarentena. É o caso de Luan, cujo nome artístico é Tadokato, que já trabalhava com a produção das próprias músicas, do gênero RnB, Indie e Lo-fi, mas acabou dando o passo de se dedicar de forma profissional durante o isolamento social. A nova jornada profissional teve início com o lançamento do lo-fi “Atlaz", no dia 11 de junho, que está disponível nas plataformas de streaming. Luan revela que o período pandêmico, além de ter sido o pontapé inicial da sua nova profissão o inspirou na composição de suas canções. “Particularmente, a ideia de lançar sentimentos em forma de música, num momento de reflexão coletiva, me pareceu uma excelente forma de me sentir confortável e comover as pessoas”.
O período de isolamento foi o pontapé inicial para que mais outras músicas fossem lançadas em seguida, sendo a última, um remix de “Você Partiu”, do Tim Maia, com “Redbone”, do Childish Gambino. Segundo Tadokato, criar o remix foi um processo espontâneo. “Simplesmente, quando o instrumental começou, foram as primeiras músicas que fluíram na minha cabeça, e, na real, o cover foi bem improvisado. Tirando a segunda voz e os cacos, a primeira voz foi totalmente no improviso". Tadokato explica que o estilo dos artistas de outras épocas sempre o encantou, e por isso decidiu fazer uma homenagem, mas adicionando uma verve autoral. “Eu sou um amante do modo como artistas antigos faziam as músicas fluírem, então eu quis fazer um cover que fluísse do meu jeito, no meu estilo mais indie, e que conseguisse passar sentimentos da mesma forma”.
O projeto foi lançado recentemente, mas Tadokato já atua na produção de outros trabalhos, e nós tivemos acesso ao esboço da produção. A música ainda não tem nome, nem data de lançamento, mas o artista já deixou claro que pretende continuar as produções e que está “trabalhando em cima dos meios certos para entregar o melhor”.

Tadokato, músico sergipano. Foto: arquivo pessoal.
As produções artísticas durante o isolamento social não param apenas na seara sonora. A direção de arte visual também foi bastante explorada como forma de expressão durante este período. Ed Santos, freelancer de design gráfico, tem desenvolvido trabalho voltado para a produção de peças em 3D, publicadas no seu perfil do Instagram.
Últimas postagens da página do Instagram de Ed Santos.
Apesar do seu contato com a arte 3D ter inciado há exatos dois anos, Ed explica que era impossível trabalhar com essa modalidade artística devido às suas condições financeiras. “Eu sempre vi o curso de Design Gráfico com algo elitista, e o vasto mundo do 3D não era diferente. Então foram dois anos de muita paixão por tudo que envolvia arte, para não desistir do sonho de poder trabalhar com 3D no futuro”, contou o designer gráfico.
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Ao falar sobre a relação entre a pandemia e a produção, Ed revela que, desde que começou, os processos criativos têm o ajudado a se manter bem. “Comecei a trabalhar com 3D após quatro meses de isolamento dentro de casa, com a exaustiva sensação de estar vivendo o mesmo dia sempre em looping, então as energias foram renovadas de forma instantânea”. Ed Santos vinha se preparando para exercer o trabalho de designer gráfico por dois dois, mas só a partir do tempo livre proporcionado na pandemia começou a sua produção em 3D. “Eu já estava preparado para a chegada desse dia [início das produções], foi uma enxurrada de coisas novas para aprender, dando uma nova vida para os dias posteriores ao início de um sonho”.
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Trabalho mais recente de Ed Santos, produzido durante a pandemia.
A pandemia causada pelo novo Coronavírus causou crises que repercutiram na economia, educação, política e principalmente saúde. A manutenção da sanidade mental e física se tornou um desafio contante durante os quase nove meses de isolamento. Nesse cenário, todavia, muitas pessoas tiveram a oportunidade de se reinventar em meio ao caos. A arte, durante o isolamento social, está servindo de alicerce para nos manter vigorosos saudáveis, entretidos e aprendendo constantemente. A criatividade teve força suficiente para ultrapassar o apanhado de paredes de concreto que tem nos mantido isolados.

O QUE DIZEM OS CRIATIVOS
“TODO DIA É DIA DE APRENDER UMA COISA NOVA, E É ISSO QUE ME MOVE NA QUARENTENA”
ED SANTOS
“EU ESPERO QUE AS PESSOAS FAÇA JUS A PALAVRA ‘EMPATIA’, PORQUE ELA NÃO É SÓ UMA PALAVRA BONITA”
ANA BEATRIZ
“NA MINHA VIDA, EM QUALQUER OCASIÃO, NÃO SÓ NO ISOLAMENTO, MÚSICA É O MELHOR REMÉDIO”
TADOKATO