Quem não visita Aracaju há uns bons anos e por acaso trafega pelas avenidas Tancredo Neves ou Marechal Rondon pode vir a se surpreender com a proximidade dos grandes condomínios que despontam no horizonte. Se há vários anos a região por trás da faculdade Pio X e da Universidade Federal de Sergipe parecia inóspita, agora é um dos principais vetores de crescimento de Aracaju.
Esta ocupação no bairro Jabotiana (que já ultrapassa seus limites e até mesmo funde-se com o território do município vizinho de São Cristóvão) segue-se ao crescimento verificado na Zona de Expansão de Aracaju, muito especialmente no loteamento Aruana. As iniciativas do capital privado verificadas nas últimas décadas, aliadas à falta de obras estruturantes por parte do poder público, resultaram num crescimento expansivo nessas regiões, mas também em novos e velhos problemas que atingem sobretudo as populações que nelas vivem. Como estas enfrentam tais problemas e de que forma governantes e órgãos públicos precisam agir para resolvê-los em prol de um desenvolvimento sustentável nessas áreas?
“Edifícios egoístas”
De acordo com o professor Antônio Carlos Campos, do departamento de Geografia da UFS, o Jabotiana se tornou um alvo da especulação imobiliária com o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) nos anos 2000, sendo alocados inicialmente entre 10 e 12 condomínios voltados para a população com renda entre três e seis salários mínimos. Contudo, a crise financeira de 2008 afetou grandes construtoras do estado como a Norcon e a Celi, de modo que estas repassaram às pequenas e médias construtoras parcelas de terra localizadas na região Oeste de Aracaju. A presença do programa Minha Casa Minha Vida a partir do ano seguinte possibilitou a chegada de mais de 50 empreendimentos ao bairro, mas praticamente todos voltados para a classe média e não à de baixa renda. Atualmente há uma estimativa de 66 condomínios e cerca de 60 mil moradores, espalhados entre o Jabotiana e partes de São Cristóvão (informalmente consideradas como pertencentes ao bairro).
“Aí acontece um problema sério: isso estava previsto no Plano Diretor de Aracaju de 2000? Não. Estava previsto no Plano Diretor de São Cristóvãode 2009? Também não. Era uma área que ia demorar a ter um adensamento por conta do problema ambiental que é o Rio Poxim e as lagoas em volta do rio”, afirma Antônio Carlos. Segundo ele, somado a esta questão ambiental está a ausência das ações estruturantes por parte do poder público, como novas vias que possibilitem a interligação do bairro com o restante de Aracaju, o que acarreta em sérios problemas de mobilidade urbana.
Esse problema é verificado pelos moradores da região. Ana Carolina Arcieri reside no conjunto Sol Nascente (que junto com os conjuntos JK e Santa Lúcia compõem o Jabotiana) e relata as dificuldades de sair do bairro em horário de pico devido às poucas vias de acesso. “Para chegar ao trabalho 8h tenho de sair de casa 6:30, 6:40 pra chegar no horário, porque na saída do conjunto é impossível você se locomover em horários de pico. Então o principal problema é esse crescimento desenfreado de condomínios e o bairro não tem ruas o suficiente que garantam a mobilidade dos carros”. Já Murilo Guilherme de Melo afirma que o bairro é servido de forma desigual quanto às linhas de ônibus. “Alguns trechos são bem distribuídos em relação às linhas, como na avenida principal do Sol Nascente, porém em regiões como aqueles condomínios ali por trás do Mercantil é muito complicado depender de ônibus. Você tem que se deslocar para o Sol Nascente para pegar o ônibus ou vai se atrasar pros seus compromissos”.
Segundo Priscilla Martins, o Jabotiana tem uma vida própria, “como se fosse uma cidade dentro de outra cidade” em suas palavras.Porém um grande problema atual deste crescimento é justamente o fato do bairro ter ultrapassado os limites de Aracaju. O condomínio em que ela vive na verdade está localizado em São Cristóvão, mas conta com CEPs de ambas as cidades. E critica o fato de condomínios como o seu acabarem sendo negligenciados tanto por uma quanto pela outra: “sempre que a gente coloca o CEP de São Cristóvão, tudo fica direcionado como se a gente morasse dentro da sede de São Cristóvão, que é bem distante daqui. Eu acho também que a parte governamental não é muito atenta a essa região, porque interpreta muito como se fosse Aracaju. Então a gente vive num impasse, porque nem Aracaju toma conta dessa parte e nem São Cristóvão”.
Mas sem dúvidas, as dificuldade mais costumeiras narradas pelos moradores dizem respeito à drenagem, esgotamento e a falta de opções de lazer em determinadas partes do bairro. Dilson Ramos considera haver uma ótima coleta de lixo e recicláveis, mas crê que a prefeitura se limita apenas a esses dois pontos na questão dos serviços prestados, além de enxergar a falta de proteção aos manguezais da região. Já Ana Carolina acredita que a irresponsabilidade ambiental numa área marcada pela presença do rio Poxim (que divide os conjuntos do Sol Nascente e Santa Lúcia) agrava várias questões, principalmente as chuvas. “Ocorrem enchentes por não ter pra onde a água desaguar. O rio não comporta, e a mata ciliar já tá comprometida por conta do crescimento dos condomínios, tem condomínio bem no lugar onde era a mata ciliar do rio. Teve ano em que tinha morador que precisou do poder público, do bombeiro buscar com um bote as pessoas que estavam dentro de casa”, relata.
Ricardo Mascarello, professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tiradentes (UNIT), concorda. Ele afirma que o rio já não dá conta de receber a água que cai sobre as ruas agora impermeabilizadas por conta da pavimentação, o que leva ao aumento das enchentes. Sobre a ocupação dos terrenos, ele problematiza a forma como os condomínios foram sendo construídos. “Eles não conversam entre si e não conversam com um planejamento maior, eu não tenho eixos e áreas principais ou polos comerciais. (...)O ponto de vista acaba sendo o mesmo de sempre, eu vendo apartamento para ter lucro e me esqueço da cidade. A gente chama de ‘edifício egoísta’. Se volta para dentro, pensa nele só, mas ele tem que se relacionar com a cidade do ponto de vista da segurança, da atratividade, etc., e acaba que a gente passa a ter uma vida mais reclusa”.
Antônio Carlos também enxerga com preocupação a forma como esses condomínios estão se constituindo. “A gente tem uma cidade com parques apenas na zona leste, que está crescendo pra zona oeste e onde você não vê áreas, praças, lugares aprazíveis nem postos de trabalho ou espaços atrativos para a população ali. Então o mercado está tentando criar uma zona oeste à revelia e que na verdade vai deteriorar a vida social”.
Aruana
Jabotiana
“Cidade intramuros”
Problemas semelhantes têm vivenciado o loteamento Aruana, cujo histórico de expansão e crescimento foi anterior ao do Jabotiana. Ricardo verifica a presença de dois modelos de habitação principais no loteamento. O primeiro deles são os condomínios horizontais, com os quais ele não expressa simpatia. “São áreas que criam grandes extensões de muro, criam vazios naquela rua e aí a gente não tem vida na cidade. Então a gente tem uma cidade intramuros, uma cidade restrita, particular. As pessoas querem morar em um condomínio fechado pela segurança, mas em contrapartida elas geram um espaço inseguro fora do condomínio, o que acaba tirando o uso público da rua. E aí são regiões que concentram o uso limitado da residência, então a gente não tem um comércio. A gente cria lugares inóspitos em relação ao espaço público da cidade”, diz.
O segundo modelo, de acordo com ele, são condomínios horizontais abertos com várias casas e terrenos, cujo crescimento desordenado não foi acompanhado do desenvolvimento de um comércio adequado à região. “Tem uma via que é paralela à Melício[av. Melício Machado, avenida principal que passa pelo loteamento] e virou um corredor comercial, com loja de construção, pet shop, padaria e assim por diante. Logo no início do conjunto não tinha isso, mas acaba sendo um processo natural”. E isso leva novamente à problemática da falta de mobilidade urbana que já havia sido apontada no Jabotiana. “Um diretor da SMTT disse uma vez que tinha regiões ali que ele não conseguia botar um ônibus lá dentro por causa do tamanho das ruas, então faltou um projeto conjunto para pensar numa hierarquia viária, ou seja, vias maiores e vias menores. Os conjuntos foram sendo construídos aqui e ali e não foi previamente gravado um sistema viário.”
Essa opinião é compartilhada por Isabella Fontes, moradora da região. Segundo ela, a divisão do Aruana em dois lados distintos é perceptível a partir da própria Av. Melício Machado, onde um dos lados é ocupado apenas por casas fortemente protegidas e cujos moradores rejeitam quaisquer pontos comerciais como os existentes no outro lado. Isabella também critica a falta de linhas de ônibus para atender a população do loteamento, as poucas existentes passando apenas nas vias principais e não adentrando o interior do bairro, além de ações paliativas do poder público quanto a problemas como drenagem e esgotamento: “até poucos anos não tinha esgoto no bairro, então isso é algo que vem melhorando aos poucos, muito devagar. Mas isso é muito complicado, porque antes lá não tinha asfalto, aí depois fizeram o asfalto, quebraram o asfalto, colocaram o esgoto, depois tiveram de asfaltar de novo”.
Da mesma forma, Bia Dratovsky, outra residente da Aruana, lamenta a falta de esforços do poder público em resolver os problemas apontados pela população. “Tem muita rua que não é pavimentada e quando você vai fazer uma queixa no sistema está constando que é pavimentada, aí dizem que não podem fazer nada. (...)Tem uma rua mesmo que tem um buraco enorme e ele tá lá o ano inteiro. Mesmo que as pessoas juntem um pouquinho de terra pra tentar cobrir o buraco, vem o período e chuva e acaba com tudo. E é o pessoal mesmo que resolve, mas [o poder público] é muito negligente com a parte de dentro do bairro”.
Para Antônio Carlos, a proposta de criação do bairro Aruana apenas constituirá em um bairro de classe alta formado por condomínios fechados de alto padrão. “E você não pode dizer que é uma ‘periferização’, porque é a ‘expansão urbana’, a classe mais alta não enxerga que está crescendo na periferia da malha urbana e sim que está expandindo a apropriação dos territórios da elite. Aracaju é uma cidade ‘compacta’ do ponto de vista territorial, mas cujo crescimento populacional está acontecendo de forma difusa e desequilibrada”.
“Não precisa ir a outro lugar, aqui tudo é limpo e a gente vive muito bem”
A falta de ações do poder público, aliada a uma série de preocupações advindas dos crescimentos do Jabotiana e Aruana, levaram os moradores de ambas as regiões a formarem suas respectivas associações e entidades que se dispusessem a lutar pelos seus direitos e necessidades. Claudionete Candia de Araújo, mãe de Ana Carolina, e Joseilton Rocha são dois dos membros do movimento Jabotiana Viva, criado em 2009. Joseilton aponta que o crescimento desenfreado do bairro resultou em uma agressão ao meio ambiente e à redução da fauna e da flora no Jabotiana. Com isso os moradores se juntaram e criaram o movimento, que na visão dele se constitui como um fórum de discussão das questões relativas ao bairro, enfocando-se os aspectos ambientais. O Jabotiana Viva conta com um estatuto, um conselho diretor, grupo de associados, conselho fiscal e atua periodicamente através de reuniões.
Tanto ele quanto Claudionete destacam um fato recente que estampou as manchetes da imprensa envolvendo o movimento. Devido ao impacto das chuvas no bairro eles organizaram um dossiê e o levaram ao Ministério Público Federal, que acatou o documento e ajuizou uma decisão, da qual se originaram ações que seriam promovidas por diversos órgãos públicos, dentre eles a Companhia de Saneamento de Sergipe (DESO), a Empresa de Obras e Urbanização (EMURB)e a Administração Estadual do Meio Ambiente (ADEMA). À DESO coube a construção de uma estação de tratamento de esgoto, e representantes da companhia levaram as plantas da estação para os moradores conferirem, garantindo que o impacto ambiental seria de apenas 10%. Mas não foi isso que ocorreu.
Para surpresa do movimento e da população do Jabotiana, a estação foi construída em cima de uma lagoa do bairro que não apenas era parte importante do ecossistema da região, como também fonte de lazer para muitas pessoas. Claudionete coloca: “A comunidade toma aquilo como parte do dia a dia. Eu visitei com alguns alunos e professores, e um menino falou: ‘isso aqui serve para nosso lazer. Não precisa ir à praia, a outro lugar, aqui tudo é limpo e a gente vive muito bem’. E qual nossa surpresa quando as carretas começaram a chegar. Eu chegava na escola e o aluno dizia ‘tão mexendo lá na lagoa’ e a gente não estava sabendo disso. Foi então que a informação chegou ao movimento e buscamos explicação junto à DESO sobre o que estava acontecendo. Atualmente são cerca de 120 carretas por dia. Não tem como dizer que o impacto só são 10%. Precisamos marcar com moradores pra explicar que a posição do movimento é a favor da estação de tratamento, mas contra o aterro. Nós não tínhamos a dimensão do impacto que chegaria ali”.
Ela critica o fato de que várias construtoras se utilizam do título do Jabotiana como “o bairro mais verde” de Aracaju para suas propagandas, sendo que as obras realizadas por elas têm afetado o ecossistema da área e diminuído consideravelmente esse verde. E destaca o valor das relações de proximidade entre os moradores do bairro mesmo com o intenso crescimento deste. “Por incrível que pareça era muito comum a presença de ‘bodegas’, que depois foram transformadas em mercadinhos ou até supermercados. Mas até hoje ainda é muito comum, principalmente pela população mais antiga, da relação de confiança: ainda existe o fiado com a caderneta. Por ser o morador antigo, ele ainda tem essa relação de proximidade, coisa que o morador novo não possui. Ainda tem traços de uma comunidade tradicional, pacata”.
Ações semelhantes às do Jabotiana Viva são observadas na Aruana, através do COMBAZE - Conselho das Associações de Moradores dos Bairros Aeroporto e Zona de Expansão, criado em 2007. Sua diretora-presidente, Karina Drummond, afirma que o Conselho visou atuar tanto na esfera municipal quanto na estadual e até mesmo federal. Um dos motivos foi justamente o choque entre situações observadas por eles quando realizavam os debates em prol do bairro nas secretarias e nos órgãos públicos. “Às vezes você procurava a EMURB pra falar sobre a macrodrenagem e ela colocava uma parte da responsabilidade da DESO porque a área não possuía esgotamento sanitário, ou quando você procurava a DESO ela dizia que a responsabilidade era da EMURB porque não tem a macrodrenagem. Então como isso muito se entrelaçava a gente entendeu que precisava de um apoio maior, que não iria adiantar a gente ficar restrito somente às questões de gabinetes”.
Uma importante vitória do COMBAZE foi justamente conseguir ajuizar junto aos Ministérios Públicos Estadual e Federal uma ação pública relativa à macrodrenagem que proibiu novas construções na Zona de Expansão, em razão do descaso da liberação na época de empreendimentos que não davam devida atenção às questões de drenagem e esgotamento.
Tanto Ricardo quanto Antônio enxergam a urgência de medidas do poder público que garantam a solução dos problemas que tem afligido as duas regiões. As opiniões de ambos inclusive convergem para a necessidade de revisão do Plano Diretor, além da criação e aplicação de políticas públicas de controle da expansão urbana, como as que foram implementadas na Aruana e agora recentemente também são exercidas na Jabotiana. Para Karina, as vitórias obtidas por ela e os demais moradores contrastam com um descaso de políticas públicas que não se limita a Aracaju. “A gente vê como um avanço da sociedade civil organizada, agora foi um total retrocesso quando o governo ali liberou empreendimentos sem ter essa sensibilidade. Isso demonstra o quanto o Brasil ainda precisa avançar nas políticas públicas que pautam a sustentabilidade, o crescimento ordenado e o ambiental”.
Produção da disciplina Laboratório de Jornalismo Integrado II - 2019.1
Repórter: Vinicius Oliveira
Orientação: Prof. Josenildo Guerra
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