Além de benefícios para a saúde, a prática conscientiza e resgata o legado da cultura negra
Por Dhenef Alves, Felipe Rocha, Fernando Matias, Jane Miranda e Mira Marques
Símbolo de resistência e combate, a capoeira é parte da cultura afro-brasileira. Ela tem como chave mestra um instrumento que norteia os encontros das lutas e dita sua ritualística: o berimbau. A capoeira surgiu e se estabeleceu como uma resposta à repressão sofrida pelas negros escravizados nos tempos coloniais e imperiais no Brasil. A capoeira fez com que seus praticantes adquirissem atributos de defesa durante as brutais perseguições dos Capitães do Mato.
Após a abolição da escravatura, os negros e a cultura preta eram, e continuam sendo até hoje, muito marginalizados. A partir daí, era comum que capoeiristas utilizassem apelidos, de forma a dificultar a identificação por meio das autoridades. A prática da capoeira continuou sendo vista como subversiva até 1937.
A capoeira se confunde com dança, pois, assim como muitas atividades e costumes vindos de África, os encontros eram marcados pela presença de instrumentos musicais. Os negros escravizados não poderiam ser vistos praticando lutas ou outra atividade que representasse ameaça aos senhores de engenho.
A capoeira faz o corpo se movimentar, mas também é parte de um movimento de emancipação. (Fotos: Felipe Rocha)
Agrupar para resistir
O grupo Capoeira Brasil nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, em 14 de janeiro de 1989 e tem como base os conceitos criados pelo mestre Bimba – tido como uma das últimas figuras heróicas da cultura negra baiana –, que culminaram na Capoeira Regional. Com 33 anos de existência, o grupo conseguiu levar seu projeto a várias partes do país e fora dele. Isso o torna um dos maiores representantes da capoeira na atualidade.
Em Aracaju, o grupo está sob a supervisão do mestre Paulinho Sabiá. As atividades do grupo são realizadas por Raphael Bittencourt, conhecido como Jeguinho, desde 2012. Os encontros acontecem às quintas-feiras, às 19h, no Parque dos Cajueiros. Para Bittencourt, a preservação do legado dessa manifestação da cultura afro-brasileira.
“Aqui no Brasil, muitas manifestações oriundas da África se perderam com a questão da diáspora e também da dizimação de vários povos africanos. A capoeira é derivada de muitas lutas africanas como a Bassula, vinda da Angola. Todas foram se misturando. Em Aracaju, uma cidade de predominância negra, a prática da capoeira fomenta essa saudação da ancestralidade”, comentou Jeguinho. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, apontam que 79,9% da população aracajuana se considera preta ou parda.
Aluna do grupo há pouco mais de um mês, a estudante de Publicidade e Propaganda Dafne Delfino reconhece que, mesmo atuando como um momento de lazer e divertimento, a capoeira carrega um forte significado histórico-cultural. Isso pode ser observado na união e acolhimento presentes no grupo. Além disso, Dafne encontra na prática benefícios para a saúde. “Eu não sou muito de ter coordenação motora, então tem me ajudado muito nessa questão”, completa.
“A capoeira não precisa ser escolarizada, a escola é que precisa se capoeirizar”
Os elementos que configuram a capoeira como manifestação cultural não devem ser isolados da sua função histórica e política. O contexto do nascimento das rodas, do aperfeiçoamento de suas características, emerge da resistência e da luta por igualdade, conforme explica o cientista social e presidente da União de Negras e Negros pela Igualdade em Sergipe (Unegro-SE), Bruno Santana, de 34 anos.“Para a gente do movimento negro, a capoeira é principalmente uma forma de organizar o nosso povo, tendo como referência essas raízes ancestrais. Ela tem essa função de organização da coletividade e de resgate. Nesse cenário de país racista, nós somos afastados de nós mesmos, da nossa cultura. A capoeira e outras manifestações negras possuem essa função de nos aproximar”.
Mesmo representando um ramo importante na matriz afro-brasileira, a capoeira só atingiu o reconhecimento de Patrimônio Imaterial Nacional em 2008, pelo Instituto Brasileiro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Presente em mais de 160 países, a luta recebeu, em 2014, o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
“Como tudo que é oriundo da cultura africana, a capoeira também foi muito marcada pelo preconceito. Mas com a mesma resistência que foi criada, a capoeira consegue passar de geração para geração, se adaptando às conjunturas contemporâneas. A capoeira é um símbolo de resiliência”, diz Jeguinho. Nos últimos anos, a prática começou a integrar outros espaços. Com a lei federal nº10.639, de 2003, instituindo o ensino da história afro-brasileira como obrigatória em todo o currículo escolar, as discussões sobre o ensino da capoeira são pertinentes à questão da representatividade.
Ao passo que tal manifestação amplia seu alcance, permite que crianças aprendam sobre a cultura negra para além da teoria em sala de aula. Ao mesmo tempo, quem ocupa o lugar de professor nem sempre pertence ao movimento. “A capoeira também passa por um embranquecimento. A gente vê pessoas brancas que vão ensinar no exterior ganhando rios de dinheiro. Um mestre lá do Santos Dumont [bairro da Zona Norte de Aracaju] disse que a capoeira não precisa ser escolarizada, a escola é que precisa se capoeirizar. É esse espaço que tem que mudar para abarcar a capoeira”, afirma Bruno.
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