Sergipe registrou 56 homicídios contra “suspeitos” de crimes no primeiro semestre de 2019. Todos esses homicídios ocorreram em “confronto” com a polícia
Final da noite de segunda-feira, 22 de maio de 2019. Alguns policiais militares de Sergipe realizavam uma operação no bairro Coroa do Meio, em Aracaju. Ao tentarem fugir, suspeitos de crimes teriam atirado nos militares. Saldo informado pela polícia: dois irmãos mortos, duas armas apreendidas, um foragido.
Quinta-feira, 30 de maio de 2019, policiais civis, com apoio de militares, foram até a cidade de Poço Verde, no agreste sergipano. O objetivo era o combate ao tráfico de drogas. Eles entraram em uma casa e, “em confronto” com os policiais, três suspeitos foram mortos.
Esses casos foram noticiados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), e não são os únicos. Somente nos primeiros seis meses de 2019, Sergipe registrou 56 mortes de pessoas “suspeitas” de algum tipo de crime. Todas foram mortas em “confronto com a polícia”, segundo a própria polícia. Esse dado oficial revela que a cada mês dez vidas, em média, são perdidas em razão da ação direta das forças de segurança do Estado. Em 2018, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelaram que Sergipe registrou 144 homicídios de pessoas em “confronto com a polícia”.
No ano passado, a média da taxa de morte de pessoas por policiais civis e militares no Brasil ficou em 3,0 para cada 100 mil habitantes. Em Sergipe, essa taxa foi de 6,3, isto é, mais que o dobro. E não é apenas isso. Essas mortes têm recortes de gênero, raça e idade. O Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), denuncia que a grande maioria dos homicídios é de homens, negros e jovens (entre 15 e 29 anos).
Três dados importantes. Apesar de todas essas mortes ocorrerem em “confronto” com as forças de segurança, não há registro oficial de óbito de policiais nessas operações. Não deveria ter de ninguém. Outro fato é que os números de letalidade policial podem ser maiores. Há homicídios que não se tem a informação ainda confirmada da participação das forças oficiais. Terceiro ponto: pouco se tem conhecimento sobre as investigações das mortes de “suspeitos” de crime registradas em abordagens policiais. Na região metropolitana de Aracaju, a responsabilidade pela apuração é do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil. No interior, as investigações cabem às próprias unidades policiais.
Beto, Alex, Clautênis...
Negro, 27 anos, pedreiro, casado, pai de três filhas e morador da Coroa do Meio. Roberto Rodrigues foi morto com cinco tiros em “confronto” com a polícia. Depois de 12 anos, a família dele não esquece. José Rodrigues disse que o tio não tinha passagem pela polícia e ninguém sabia de algum crime atribuído a ele.
Após assaltar um supermercado, Roberto rendeu os seguranças do local e foi alvejado com cinco tiros por policiais. “Ele era uma pessoa muito querida, uma pessoa especial. Apesar desse erro dele, nós víamos que não era necessário isso”, disse Rodrigues. Alexsandro Panta de Jesus Santos também 27 anos, negro, pai de um menino de 6 anos, morador do bairro São Conrado, em Aracaju. Ele foi dependente químico por muitos anos e, no começo deste ano, foi morto. Quando Alex esteve preso, a sua mãe, Maria Lurdes, esteve com ele. “Eu levei o menino para ele ver. Naquele momento ele disse ‘mãe, enquanto eu tiver vida, não coloco mais crack na boca’”, conta Maria.
Após a saída da prisão, Alex procurou uma vida diferente, buscou emprego, esforçou-se para ser um pai presente. Permaneceu longe das drogas por quase um ano. Em março deste ano, em uma lanchonete, Alex foi acusado de crimes, que segundo sua mãe, não cometeu e foi morto com mais de 10 tiros. Maria conta em lágrimas que viu o filho no chão e que o neto de 6 anos estava junto. O menino chora até hoje. “Ele não era violento, ele respeitava todo mundo aqui, ele só tinha o vício de ser o que ele era”, diz a mãe.
O designer de Interiores, Clautênis José dos Santos, 37, anos, negro, que foi morto em uma operação da Polícia Civil em 8 de abril deste ano. O crime ocorreu dentro de um carro de aplicativo na ponte que liga o bairro Santos Dumont ao conjunto Bugio, em Aracaju. Não houve confronto nem troca de tiros. Clautênis também não tinha nenhum envolvimento criminal nem passagem pela polícia. A própria Secretaria de Segurança Pública apurou o caso e concluiu que Clautênis foi morto por um policial civil que se desequilibrou, caiu e atirou contra a vítima que estava dentro do carro. Apenas um policial foi indiciado e por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A família do designer não aceita essa versão e deve recorrer para que o caso seja enquadrado como homicídio doloso, quando há intenção de matar.
Atlas 2019 mostra que Sergipe é um dos primeiros no ranking de Violência
Sergipe está entre os cinco primeiros no ranking da Violência
O Atlas da Violência 2019 mostra que Sergipe é o 5º estado que mais mata homens jovens (entre 15 e 29 anos) por 100 mil habitantes no Brasil. Somente em 2017 foram 728 mortes de jovens. Em dez anos (2007 - 2017), o aumento de homicídios de homens jovem em Sergipe foi de 158,2%.
Sergipe está em 4º lugar no aumento de homicídios e de violência contra negros no país. O ranking mostra que, em todos os anos pesquisados (2007 a 2017), o menor estado da federação tem taxa de mortes violentas acima da taxa nacional. Nos últimos anos desse levantamento, o índice de Sergipe tem sido o dobro da média brasileira.
A disparidade entre a morte de negros e de não negros também é alta em Sergipe. No estado, um negro tem 4,3% mais chance de morrer do que um não negro. Os dados de 2017 mostram que dos 1.236 homens mortos no estado 1.168 eram negros e apenas 68 eram não negros.
Segundo o professor da Universidade Federal de Sergipe e representante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Robson Anselmo, o diálogo entre juventude e violência é muito extenso e já é visto por diversas organizações e entidades dentro e fora do Brasil. “No ano de 2017, foram assassinadas quase 63 mil pessoas no país e esses são os dados que quase sempre não comovem as pessoas, não chamam atenção, não indignam, mas por que esses dados não indignam? A gente vai ver que 71% das pessoas que são mortas no Brasil são pessoas negras”, afirma Anselmo.
Secretaria de Segurança Pública e Ministério Público demonstram descaso
O diretor da Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal da SSP, escrivão da Polícia Civil, Sidney Santos Teles, informa que os inquéritos que apuram as mortes em confronto servem para avaliar se realmente houve o confronto. “Nós temos um setor que trabalha com a prevenção, eles pegam as áreas em que existe maior número de homicídios, vão até as escolas e trabalham a prevenção nos jovens para diminuir os índices de criminalidade nessa faixa etária”, afirma Teles.
O coordenador explica ainda que a norma policial prevê que o confronto deve ser feito apenas em caso de defesa, mas não existe nenhuma formação voltada ao policial para caso de confronto. “A primeira ação do policial sempre vai ser a prevenção, o combate e a prisão, caso haja uma reação adversa, haverá um confronto”, esclarece o policial.
O Ministério Público do Estado de Sergipe tem uma Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial. O promotor de Justiça, Deijaniro Jonas Filho, informa que o MP fiscaliza se os inquéritos policiais estão corretos e/ou vai atuar em casos de denúncia. “Uma vez recebido esse inquérito policial, caso se entenda que existem elementos para denunciar, faz-se a denúncia. Caso entender que existem elementos para o arquivamento é arquivado. Se entender que o inquérito está incompleto, requisita novas providências”, narra o promotor.
Questionado sobre a isenção policial nos casos, ele explica que o MP não tem estrutura para fazer essas investigações. “Morre uma pessoa por um agente policial, quem tem que fazer a perícia é o Instituto Médico Legal, ligado à Secretaria de Segurança Pública. Se por acaso nós desconfiamos disso, nós temos como fazer? Ou vamos enviar para outro estado para fazer essa perícia? A gente tem que partir do princípio que o estado funciona como um todo”, justifica o promotor.
Lista de vidas perdidas
Produção da disciplina Laboratório de Jornalismo Integrado I - 2019.1
Repórter - Rafaelle Silva
Orientação - Professores: Josenildo Guerra, Cristian Góis e Eduardo Leite
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