Após superação da doença, Sheyla voltou sua atenção para o cuidado com o próximo através do trabalho como vereadora de Aracaju e vice-presidente da Associação Mulheres de Peito
Por Ana Julia Oliveira, Juliana de Jesus Santana e Waldênnia Soares Teles
Em outra reunião por meio de plataformas digitais devido à pandemia do coronavírus, conversamos com Sheyla Galba numa sexta-feira de manhã, perto da hora do almoço. A entrevista, originalmente marcada para o dia anterior, necessitou ser adiada porque a vereadora precisava ouvir as demandas dos trabalhadores do transporte coletivo de Aracaju e área metropolitana que decretaram greve devido a salários e benefícios atrasados.
Com agenda lotada em razão das atribuições do cargo de vereadora, os compromissos se tornam ainda mais frequentes no mês de outubro, usado para fins de conscientização sobre o câncer de mama. Sheyla foi diagnosticada com a doença em 2014 e desde então sua vida se transformou.
Nascida em Maceió, no dia 30 de dezembro de 1975, a vereadora começou sua história com Sergipe aos sete anos de idade, quando se mudou para Aracaju. Formou-se em História pela Universidade Tiradentes em 2006 e se pós-graduou em Ensino de História no ano de 2010. Também construiu uma família e teve dois filhos, Kairo Arthur e Pedro Davi.
Extremamente comunicativa e extrovertida, Sheyla Galba da Costa Santos vivia a rotina de professora, mãe, esposa e dona de casa, quando sentiu pela primeira vez que havia algo diferente no seu corpo que conhecia tão bem. Sem vergonha de se explorar, de se tocar, Sheyla notou nódulos em uma das mamas, em janeiro de 2014, mas a falta de proximidade com o assunto e a doença, à época, não a motivaram a buscar informações e ajuda médica. Até que, ainda no mesmo ano, durante a exibição da série “Pedra no Caminho”, no Fantástico, ela percebeu que deveria fazer algo a respeito da própria saúde.
Negativo. Foi este o resultado da primeira mamografia que Sheyla chegou a realizar. Inconclusiva em mulheres com idade inferior a 40 anos, mas que despertou na professora uma certa esperança de que estava tudo bem. E esta mesma esperança fez com que ela não levasse de imediato o resultado do exame ao médico, chegando a descobrir mais dois nódulos. Pecando pela inocência e falta de informação, como ela mesma diz, a vida de Sheyla Galba mudou drasticamente, a transformando anos depois em um símbolo de superação e ativismo.
Dando início ao tratamento do câncer de mama, caracterizado como nível três de quatro, Sheyla realizou a mastectomia, que é a retirada da mama, além da reconstrução. Uma medida drástica e que viria a ser acompanhada de tratamentos complexos e intensos, como a quimioterapia, a radioterapia e o agente bloqueador. Tudo isso para que ela tivesse um desfecho diferente dos 14,23 óbitos a cada 100 mil mulheres no mundo, segundo dados fornecidos pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) no ano de 2021.
O drama do câncer de mama reuniu Sheyla e outras três mulheres em um grupo criado através do WhatsApp, em 2014, com o intuito de compartilhar experiências e informações sobre o tratamento referente a esta neoplasia. A parceria entre Aline Souza, Jicelma Vieira e Rozalia de Aquino, outras pacientes oncológicas, deu origem ao “Mulheres de Peito”. Sheyla define a criação desse grupo como uma ação brilhante devido ao apoio que pôde oferecer e receber.
“Falar para um marido, para uma irmã, para uma mãe, para um pai, para uma amiga, não é a mesma coisa, sabe? Eles não têm a mesma sensibilidade que a gente. [...] A gente acredita que é a última pessoa a passar por um câncer. Mesmo sabendo que tem outras mulheres, você se sente só. Então esse grupo foi um acolhimento muito grande”, ressalta.
Como paciente oncológica do Sistema Único de Saúde (SUS), Sheyla encontrou problemas durante o período do seu tratamento, principalmente quando precisou enfrentar a radioterapia, procedimento que utiliza radiações ionizantes para aniquilar ou impedir que células de um tumor cresçam. Para ser efetiva, uma vez iniciada, a radioterapia não pode ser interrompida, com riscos de diminuição nas chances de cura do paciente. Segundo o Inca, a incidência do câncer de mama tende a crescer progressivamente a partir dos 40 anos, assim como o índice de mortalidade.
Apesar dos conhecidos perigos acerca da paralisação desse tratamento, a máquina de radioterapia do Hospital de Urgência de Sergipe (Huse) apresentava falhas frequentes que impediam o uso do aparelho. Em meio a essa situação de descaso, Sheyla deu início ao seu processo radioterápico em agosto de 2015, mas se viu de mãos atadas quando uma ligação anunciou a interrupção do seu tratamento. A máquina de radioterapia do Huse parou de funcionar no dia 19 daquele mesmo mês; uma peça defeituosa colocou em risco o tratamento dela e de outros pacientes.
Ao receber a notícia, Sheyla procurou Aline e disse “eu vou morrer”, o que as motivou a procurar uma solução juntas. Uma das primeiras atitudes tomadas foi entrar em contato com a imprensa para denunciar que a máquina quebrava com frequência e que não havia previsões para o conserto. O passo seguinte foi reunir 15 das 30 integrantes do crescente “Mulheres de Peito” para um protesto em frente ao Huse, com o intuito de obter respostas e ações para assegurar a resolução do problema.
Foi através dessa movimentação que o grupo criado apenas para compartilhar experiências, se tornou uma ferramenta de luta pelo tratamento digno para o câncer de mama. Posteriormente, através do trabalho de Sheyla como vereadora, o Mulheres de Peito foi reconhecido como uma associação de utilidade pública, visto que assiste cerca de 200 mulheres em todo o estado de Sergipe.
Para Sheyla, carregar o posto de vice-presidente do Mulheres de Peito não mudou a sua essência, apenas aumentou as suas responsabilidades, ao cuidar da família de sangue e da família composta pelas mulheres que fazem parte da associação. Prezando sempre estar bem para incentivar as outras, Sheyla diz nunca ter se considerado uma vítima do câncer, reconhecendo que a neoplasia não era dela, mas sim algo que a acometeu durante determinado período.
O câncer de mama é capaz de influenciar desde a autoestima até as relações interpessoais do paciente oncológico. No caso de Sheyla, a neoplasia de grau três de quatro, invasiva e que poderia se alastrar, acometeu cada pequeno pedaço do que ela chamava de família e rotina. O diagnóstico da doença levou ao choque os pais dela que não souberam como reagir. Deste modo, o protagonismo da assistência foi assumido pela família do então esposo, que, segundo ela, a “sustentou e colocou nos braços”.
De um jeito bastante emocionado, Sheyla relembra os momentos em que foi acolhida durante o tratamento da doença, destacando os cuidados que recebeu da sua então cunhada Silvani, carinhosamente apelidada de “Cunhão”. Os laços fortes entre elas, somados ao momento sensível, fizeram com que Silvani chegasse a largar o emprego, deixar a casa e a família para cuidar da cunhada durante todo o tratamento. Sheyla conta que a rede de apoio que a envolveu durante esse momento delicado foi importante para que ela se sentisse amada e tivesse forças para continuar lutando contra o câncer de mama.
E mesmo entre muito amor recebido não só da cunhada como também da sogra, à época, Sheyla enfrentou mais alguns dilemas familiares. O próprio casamento chegou a ser abalado drasticamente, enquanto ainda enfrentava o câncer de mama. Fazendo questão de mencionar o ex-marido como um ótimo companheiro e parceiro durante o processo de diagnóstico e tratamento, Sheyla não deixa de relembrar os momentos duros que viveu ao descobrir uma traição. No entanto, forte e focada em vencer o câncer, ela não se deixou abater pelas adversidades enfrentadas. “Que ela faça bom proveito dele”, ressalta.
Ainda em tratamento, Sheyla Galba chegou a se candidatar em 2018 para Deputada Estadual devido às suas movimentações como vice-presidente do Mulheres de Peito. Apesar de não ter “sangue político”, a capacidade para atuar na área foi reconhecida de longe. Tanto que a ideia da candidatura sequer partiu dela.
Durante uma ação realizada pela associação, Sheyla foi observada por assessores de um senador que fez um convite para que ela tentasse a candidatura. No momento, a ideia era inusitada e parecia ser difícil de executar, mas após uma onda de apoio recebida durante conversas com as outras participantes do grupo e com o seu ex-marido, a possibilidade de um cargo na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) se tornou uma oportunidade para desenvolver novas formas de combate para a sua luta.
“Pela minha saúde, pela minha vida e depois pela vida de outras pessoas”, assim Sheyla definiu sua candidatura. Filiada ao Partido Trabalhista Cristão (PTC), ela garantiu apenas 1,10% dos votos válidos para deputada estadual. Apesar de não ter conseguido se eleger, garantiu a posição de primeiro suplente.
Nesse momento, a dedicação para vencer o câncer a motivou a deixar momentaneamente a política de lado e voltar ainda mais forte para assumir, em 2021, o cargo de vereadora de Aracaju após ter sido eleita com 2.929 votos como candidata do Cidadania.
Logo de cara Sheyla se deparou com uma grande decisão a ser tomada ao mesmo tempo em que era eleita vereadora. Com a vitória nas urnas de Dilson de Agripino para o cargo de prefeito de Tobias Barreto, a cadeira para a qual era suplente vagou e ela pôde optar por uma das funções. E enquanto não decidia, brincou ao se autointitular de “deputadora” ou “deputada vereadora”. No fim, preferiu começar a sua carreira política na Câmara Municipal de Aracaju (CMA).
A luta pelo tratamento digno e público para o câncer de mama, lado a lado com a equipe do Mulheres de Peito, tem sido fomentada com a união das suas duas ocupações enquanto vereadora e ativista. Uma das suas ações enquanto membro da Câmara de Vereadores, e talvez uma das mais importantes, foi a criação do Dia Municipal de Combate ao Câncer de Mama, reservado no dia 30 de janeiro. A data foi aprovada e publicada no Diário Oficial de Aracaju da Lei 5.932/2021 no dia 30 de junho, e carrega um peso muito maior e pessoal para Sheyla, por marcar a data em que a primeira Mulher de Peito faleceu devido ao câncer de mama.
A homenageada Iva Leite, tinha 22 anos quando foi acometida por um osteossarcoma, um dos cânceres mais agressivos, localizado na coxa. Mãe de uma menina, a Júlia, e motivada a lutar também pelo tratamento digno para o câncer, “Ivinha”, como é carinhosamente mencionada, foi a mais nova mulher a fazer parte da associação. Por ser tão jovem e dedicada, Sheyla conta, em meio às lágrimas, que Iva era vista pelas companheiras e assistidas do Mulheres de Peito como a esperança para o fim do tratamento e a cura do câncer.
Iva perdeu a vida para o osteossarcoma após esperar quatro meses para conseguir continuar a radioterapia, um procedimento que, para o câncer dela, era definitivo, curativo. A interrupção do tratamento fez com que o tumor maligno de Iva se desenvolvesse para uma metástase e que o seu pulmão fosse prejudicado por um derrame pleural. “Depois de Iva, tiveram centenas de mulheres [que perderam a vida para o câncer]... Eu prometi que por ela eu não pararia”.
Sheyla compartilha que a sua relação com Iva adquiriu dimensões maiores que um companheirismo contra a mesma doença. “Ela tinha a idade do meu filho mais velho e tinha uma filha de dois anos que tinha idade do meu filho mais novo. Então eu me sentia mãe e avó naquele momento”, conta a vereadora. Devido à grandeza desse laço criado entre as duas, após a aprovação do projeto de lei, a mãe de Iva foi até o gabinete da vereadora para expressar a sua vontade de dar continuidade a essa união, escolhendo-a para ser madrinha de apresentação da pequena Júlia.
Apesar de exercer um cargo público e de notoriedade no momento, Sheyla revela que a profissão que a faz se sentir como “a bala que matou Kennedy” é, na verdade, a de professora. Uma amada docente de História para alunos do Fundamental até o 1º ano do Ensino Médio, ela conta que se emociona demais ao observar “o brilho no olhar” das crianças e adolescentes, uma satisfação que a faz se sentir “dentro da história” que leciona.
No que concerne a sua atividade como professora, ela expressa que a sua grande insatisfação se deve à desvalorização da profissão. Sheyla conta que chegou a ganhar salários de R$ 120 a R$ 300 para dar aulas por um mês inteiro. No entanto, o amor que sente pela carreira é expresso no desejo de voltar para os seus “Amadinhos de Shay” 一 apelido carinhoso dado aos seus alunos 一, vontade que não pode ser realizada devido a uma trombose na veia subclávia, condição que desenvolveu por conta do câncer e que a impede de falar por um período muito longo.
Hoje em dia, mesmo em meio à grande lista de atribuições do cargo de vereadora e de vice-presidente do Mulheres de Peito, Sheyla encontra tempo para o esporte através do remo, praticado com a primeira equipe da modalidade formada por mulheres sobreviventes do câncer de mama do estado de Sergipe, o Remo Mama, criada em 2019 por meio da iniciativa de alunas de cursos da área da saúde da Universidade Tiradentes (Unit). Orgulhosa de si e do próprio time, ela chega a compartilhar a tela de um celular para podermos ver as fotos dos treinos, que acontecem todas às quartas-feiras e sábados.
Apesar do medo devido ao fato de que não sabe nadar e nem boiar da forma correta, Sheyla Galba conta que a experiência encontrada nas águas logo na primeira tentativa a encantou por completo. Católica, ela descreve que o remo a aproxima do divino. “É como se apagasse tudo da minha mente e só fossemos eu e Deus ali. Eu não sentia e nem ouvia. [...] A sensação que eu tive ali é de uma paz, de uma força, de uma presença de Deus tão grande. Você fica no meio do rio, de um lado é mangue, do outro é mangue [também] e aquele céu lindo azul sobre você. Eu senti uma coisa tão linda”, relata.
Em menos de um ano de mandato, Sheyla admite que o cargo de vereadora não a permite fazer tantas movimentações quanto supunha que seria capaz inicialmente, mas observa avanços positivos e importantes. Como exemplo, cita dois projetos em desenvolvimento: um que busca acessibilidade nos brinquedos de parques para crianças com deficiência e outro que pretende incentivar a doação de sangue, medula óssea e plaquetas.
Mesmo com as limitações, pela importância do trabalho que realiza 一 seja aqueles relacionados ao combate ao câncer ou de ordem geral 一, Sheyla não se deixa abalar: “A gente continua persistindo e fazendo com que os gestores do município nos vejam, sabe? A gente não vai parar, a gente precisa continuar. [...] É como eu falei: eu não tenho força, eu tenho voz, eu não calo. Estou todos os dias nas sessões da Câmara lutando”.
Sessões essas que estão sendo realizadas de maneira remota devido a pandemia. Por esse motivo, Sheyla admite que ainda não pôde viver de fato o “calor” da câmara de vereadores, sensação que só poderá sentir no dia 26 de outubro, quando os encontros presenciais voltarão a acontecer. Ela ainda ressalta a importância do debate presencial: “Eu preciso ainda sentir essa energia, o olho no olho com os outros vereadores. [...] A gente precisa dessa troca de olhares para ver quem realmente está falando a verdade, quem falou com o coração ou quem está por estar”.
O trabalho da parlamentar, assim como a história que construiu em Aracaju lhe renderam, inclusive, o Título de Cidadã Aracajuana através de um projeto de lei proposto pelo vereador Ricardo Marques (Cidadania), honraria cedida em setembro deste ano. Visto que a sua atuação desconhece as barreiras da capital e chega a todos os cantos do estado, a vereadora também recebeu a Cidadania Sergipana, dessa vez por meio de resolução de autoria do deputado estadual Dr. Samuel Carvalho (Cidadania).
No geral, o que se pode observar é que a cabeça de Sheyla Galba parece pensar muito nas pessoas que estão passando por situações semelhantes a que ela viveu enquanto paciente oncológica. A luta que a colocou na Câmara Municipal não para e ela aparenta não querer parar também. Seja por aqueles que ainda têm a chance de vencer ou por aqueles que já partiram, ela segue sendo “a bala que matou Kennedy” e, de quebra, o câncer de mama que a acometeu também.
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