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Parir e nascer: violência obstétrica entre brasileiras

Por Fernanda Dantas, Italo Ramon, Lucas Silva e Pâmela Stéfani

*Os nomes das fontes são fictícios a fim de proteger a identidade de cada uma delas.


Vera deu à luz aos 17 anos em um hospital público na região metropolitana de Salvador. Um momento que para algumas mulheres é lembrado com muita felicidade, para ela, foi uma experiência de sofrimento físico e mental. “No dia só tinha eu para ter neném. A sala estava vazia e eu fiquei sozinha. Nenhuma enfermeira ia me olhar ou me visitar”. Hoje, sete anos depois do evento, Vera reconhece que sofreu violência obstétrica durante o trabalho de parto.


As práticas que se enquadram neste tipo de violência podem ser físicas ou psicológicas e ocorrer na gestação, parto, nascimento ou pós-parto, acarretando prejuízos para a mãe e/ou o bebê. As agressões podem ser cometidas por qualquer profissional da saúde que tenha contato com a vítima em algum desses momentos, mas também estão ligadas a falhas estruturais de instituições e do sistema de saúde. Elas acontecem principalmente no setor público.

Segundo informações divulgadas em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, que trabalhou em parceria com o Sesc para produzir a pesquisa Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado, uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto no país. Apesar do dado alarmante, o termo violência obstétrica não consta nos códigos penal e civil, o que implica na ausência de medidas legais mais assertivas para punir o crime.

Para agravar ainda mais o cenário, na primeira semana de maio deste ano, o Ministério da Saúde lançou a Caderneta da Gestante, uma cartilha que encoraja ações como a episiotomia – um corte feito na vagina durante o parto –, além de indicar a amamentação como um método de contracepção. O Ministério encomendou três milhões de cópias do material para serem distribuídas nas unidades do SUS.


Se a circulação da cartilha for em frente, a realidade da violência obstétrica, que já é subnotificada no país, tende a piorar substancialmente. Diversas brasileiras podem cair em uma rede de desinformação e consumir um conteúdo totalmente destoante do que é certificado pela ciência e por grandes entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), prejudicando ainda mais a saúde de mulheres e bebês.


Tipos de violência

Embora não seja de conhecimento comum, várias práticas recorrentes em hospitais e maternidades públicas e privadas são consideradas violência obstétrica. “É um crime, uma atrocidade com a mulher, corporal e mentalmente. Ela é prejudicada em diversos setores e isso é algo que não dá pra apagar ou voltar atrás”, afirma a estudante de medicina, Rafaela Matos, que integrou a Liga Acadêmica de Ginecologia e Obstetrícia (LAGO) da UniFTC. Rafaela cita ainda algumas ações que se configuram como agressão: "a não permissão do alívio da dor e do aleitamento materno na primeira hora, a manobra de Kristeller, a cesárea sem indicação clínica e contra a vontade da paciente”.


Muitas mulheres, mesmo aquelas que já passaram pela experiência do parto, desconhecem seus direitos e os deveres que a equipe médica e a instituição de saúde precisam cumprir durante o processo. Dessa forma, muitas delas sentem-se desamparadas ou deixam de exigir o tratamento adequado, mesmo quando este está ligado a coisas básicas como alimentação. “Eu passei a tarde toda em trabalho de parto, com a equipe tentando induzir, com fome, com sede e vomitando”, conta Vera. “Depois que eles fizeram o meu parto, ainda fiquei com muita vontade de vomitar, eles me colocaram em um corredor para ficar em observação e eu estava com muita fome. Já tinha quase 24 horas sem comer. Pedi a eles alguma coisa e eles me disseram que só poderiam me alimentar no outro dia, então dormi com fome".


Bete teve uma vivência parecida. Diferente do que possa parecer, a violência obstétrica não acontece apenas no trabalho de parto. Há cerca de dois anos, Bete sofreu um aborto espontâneo e teve uma experiência difícil em diferentes instituições de saúde. Do primeiro atendimento emergencial ao procedimento de curetagem, a mulher sofreu diversos tipos de agressão. “Foi um período que me doeu muito, principalmente porque perdi meu filho, mas também por causa do tratamento que eu recebi”, afirma a moça, que precisou passar por tratamento psicológico para superar os traumas adquiridos.


Bete conta que estava grávida de dois meses quando fez um exame transvaginal e não conseguiu ouvir os batimentos cardíacos do feto. Voltou ao hospital depois de ter um pequeno sangramento e ouviu do médico que a examinou uma pergunta que a deixou perturbada, “Você quer mesmo ter esse bebê?”, e depois de um péssimo atendimento foi mandada para casa sem respostas concretas sobre o estado de saúde da criança.


Ela retornou ao hospital depois de ter uma hemorragia e, após passar por diversas instituições, foi encaminhada para a maternidade onde faria a curetagem. “Já de início foi um choque. Eles me colocaram na mesma ala das mulheres que estavam para ter bebê e em nenhum momento tiveram um cuidado psicológico”, informa Bete. “Não pude entrar com acompanhante, então fiquei sozinha em um momento frágil da minha vida, além de ficar praticamente dois dias sem me alimentar, me sentindo fraca”.


Em seu relato, Bete expõe ainda uns dos seus piores momentos na maternidade. “Minha veia é muito fina e no instante em que a enfermeira introduziu uma seringa nela para dar início à curetagem, eu tomei um susto e gritei ‘ai’, e então ela me disse ‘não está aguentando uma agulha, imagine parir’”.

A cor da violência


Assim como diversos outros tipos de violência, a violência obstétrica tem cor, faixa etária e classe social. Os dados do artigo de 2017 A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil confirma, mas não surpreende: a maioria das vítimas das agressões são negras. É absurdo imaginar que, mesmo no século XXI, tantas pessoas reproduzam o mito de que a mulher negra é mais resistente à dor do parto por características relacionadas à cor de sua pele e a outros aspectos físicos, como quadris mais largos.

Este ponto de vista é trazido por Toni Morrison, escritora e professora norte-americana, em seu livro de estreia O olho mais azul. A obra ficcional aborda temas como raça, gênero e beleza, através de uma personagem negra que deseja mudar sua aparência em busca de paz. Um determinado trecho do livro refere-se justamente à fala de um médico que garante que o parto das mulheres negras é rápido e indolor.


Mesmo sem embasamento científico, o discurso é reproduzido por profissionais da saúde que juraram zelar pela vida de todo ser humano, sem qualquer distinção.


O artigo de 2017 informa que, apesar de as mulheres negras passarem por menos procedimentos como a episiotomia do que as brancas, as chances de as negras receberem anestesia nesses casos é 50% menor. O estudo também identificou que as mulheres negras costumam realizar menos consultas, frequentemente não têm acompanhante e têm maior deslocamento entre maternidades na hora do parto. Não à toa, o Ministério da Saúde informou que 62,8% das mortes maternas são de mulheres negras, um claro reflexo da forma como elas são tratadas em maternidades e hospitais, que deveriam cuidar da saúde de todas as mães e bebês. O contexto transforma, então, a violência obstétrica não apenas em uma pauta de gênero, mas também de etnia.


Violência atemporal

Era um dia comum de setembro de 1979 quando Ana deu entrada em uma maternidade pública para dar à luz a caçula de doze filhos. Segundo seus planos, aquela seria a última. Aos 40 anos, depois de onze partos em casa, Ana decidiu fazer uma laqueadura, procedimento de esterilização voluntária definitiva. Era chegada a hora de “encerrar a carreira”, como ela dizia.


Para que o procedimento ocorresse, o parto deveria ser feito através de uma cesariana e Ana não teve escolha senão se submeter ao procedimento cirúrgico. Para a realização da cirurgia, ao invés de fazer o costumeiro corte na horizontal, o obstetra realizou o corte na vertical, deixando uma cicatriz da região abaixo do umbigo até o início da pélvis.


Quando questionado por Ana, a resposta do médico foi absurda. “Fiz o corte desse jeito porque você não vai mais usar biquíni”. E a violência não parou por aí. O local do corte ficou oito meses sem cicatrizar, prolongando o sofrimento da mulher, que, mais tarde, veio a descobrir que um ponto havia sido esquecido no local, impossibilitando o processo de cicatrização. “O médico retirou o ponto com uma pinça e me mostrou”, conta Ana.


Ainda hoje, quase 43 anos após o ocorrido, as memórias continuam sendo vívidas e incômodas, assim como o corte que está ali, como um lembrete da experiência terrível à qual Ana foi submetida. Aos 83 anos, ela não conhece o termo violência obstétrica, mas sabe que não passou por um procedimento médico comum e, há alguns dias, ouviu de uma das filhas que atualmente aquilo que aconteceu com ela é considerado crime.


Além do trauma físico, a saúde mental e autoestima da mulher também estão em jogo ao passar por um evento envolvendo a violência obstétrica. Ver Ver no espelho as mudanças para além de questões biológicas do corpo e a marca deixada pela escolha antiética de um profissional da saúde causam danos que duram uma vida inteira.


Apesar de ser um debate que ganhou notoriedade recentemente, a violência obstétrica existe há muito tempo, mesmo antes de existir um debate e leis que versam sobre o tema. Sem essas informações, muitas mulheres sequer sabem que foram vítimas de um crime. Isso demonstra o quadro de subnotificação no qual este tipo de violência está inserido.

Quando a mulher conhece seus direitos

Faz quase um ano desde o nascimento da filha de Jane, mas ainda hoje ela não se sente preparada para denunciar os maus tratos que sofreu durante o trabalho de parto, mesmo sabendo que sua experiência se configura em violência obstétrica. “Eu ainda não tive coragem de processar nem prestar B.O. Liguei para a ouvidoria, mas como foi um trauma muito grande para mim, na hora em que eu comecei a falar com a atendente, desliguei”.


Eram quatro da manhã de 13 de junho de 2021 quando Jane deu entrada em uma maternidade pública de Aracaju, com sete centímetros de dilatação. Ela havia se informado sobre todos os direitos da gestante e do bebê antes do parto, mas, já no início do seu atendimento, percebeu que as coisas não correriam de acordo com a lei. “Ainda na triagem, eles me disseram que meu marido não poderia me acompanhar por causa da covid-19, mas eu já havia me informado que, mesmo na pandemia, a gestante tem direito a um acompanhante”. Além do que já é previsto em lei, Jane tinha também um laudo psiquiátrico atestando crises de pânico, o que deveria garantir a permanência do marido ao seu lado, mas este documento também foi ignorado pela instituição de saúde.

A maternidade contava também com um cartaz que falava sobre o parto humanizado, o auxílio de banho quente e objetos como a bola de yoga, que comprovadamente facilitam o processo. Porém, as gestantes não tinham acesso a nenhuma dessas coisas. “Como eu sabia que me exercitar ajudaria na dilatação, por conta própria fiquei caminhando pelo corredor e fazendo agachamentos”, conta Jane.


Foram incontáveis as violações sofridas pela vítima. Jane teve o parto induzido através de ocitocina sem seu consentimento, a bolsa estourada com um palito por uma enfermeira, a vagina costurada sem nenhum tipo de anestesia e foi verbalmente agredida por profissionais do local. “Uma enfermeira veio brigar comigo no momento em que eu estava mais vulnerável, enquanto eu estava na mesa de parto sendo costurada”, lembra Jane. “Ela queria mesmo brigar comigo, me gritando, afirmando que eu tinha dito meu nome errado, que ela não iria consertar e que não ia cuidar de mim”. A discussão continuou até que a paciente se alterou e a médica que lhe atendia pediu à enfermeira que se retirasse da sala.


“Fiz terapia com uma psicóloga por meses para ter coragem de falar sobre isso porque eu não conseguia nem falar. Para mim, foi um trauma muito grande e eu não conseguia nem me lembrar do fato”, revela Jane. “É uma coisa que não tem como voltar atrás, mas eu sei que tenho até dois anos para fazer uma denúncia e estou me preparando psicologicamente para processar a maternidade e prestar queixa. Mas eu continuo dando o meu relato para que mais mulheres vejam o que eu passei e para que elas não precisem passar por isso”.


Caminhos de esperança


Existem medidas coletivas e individuais que auxiliam as gestantes a evitar a violência obstétrica ou denunciar o crime, como o Plano de Parto. O Plano é um texto, escrito pela mulher, juntamente com sua família, orientada pelos profissionais de saúde de sua confiança, explicitando suas preferências de forma clara sobre o que gostaria e o que não gostaria que acontecesse durante o parto, pós-parto e cuidados com o bebê.


Isto inclui escolher onde a mulher quer ter seu bebê, a posição que gostaria de adotar, quem vai estar presente, quais são os procedimentos médicos que a mulher aceita e quais prefere evitar. É importante salientar que estas escolhas são válidas quando tudo transcorre bem, e caso haja necessidade de mudança de rumo durante o parto, a mulher e sua família devem ser avisados e consultados sobre os novos direcionamentos.


O Plano de Parto propicia uma reflexão e compreensão sobre o que é importante para cada mulher, possibilitando um melhor preparo para conversar com o profissional que acompanhará o parto.


Embora não haja um local específico de denúncia destinado unicamente para o crime, há uma série de órgãos responsáveis por apurar os casos de violência obstétrica. A denúncia pode ser feita no próprio hospital, clínica ou maternidade em que a vítima foi atendida. É possível, também, ligar para a Central de Atendimento à Mulher (telefone 180), para o Disque Saúde (telefone 136) ou, para casos que envolvam planos de saúde, para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (telefone 0800-701-9656).


Ainda é possível acionar o Conselho Regional de Medicina (CRM) ou o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) e até a Defensoria Pública ou advogado particular, em caso de ação judicial de reparação por danos morais e/ou materiais.









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