top of page
Foto do escritorPortal Contexto

Quando nasce a fênix: fragmentos da história de Manu Caiane, rapper aracajuana

Por: Jhennifer Laruska



(Foto: Juliana Teixeira/@jlntxr no Instagram)


É numa casa do bairro América, na capital sergipana, que uma mãe-sol (e não, solo) acompanha de camarote a trajetória artística de sua filha caçula, a rapper Manu Caiane. Quando Gigi Poetisa levava seus filhos ainda pequenos para os espaços de seu convívio, inundados da arte, não imaginava que seria esta a responsável por intermediar as relações entre si e os seus. Tampouco que uma deles seria hoje uma referência do rap na cena local.


Meu contato com Manu foi virtual, algo que parece ter sido normalizado em tempos de pandemia, embora tivéssemos tentado um encontro presencial. Ela havia indicado a Praça da Bandeira, localizada em Aracaju, para me falar um pouco sobre si e a trajetória que a levou a ser uma representante da cena no Estado. Perguntei o porquê da escolha e ela me contou que esse é um lugar onde se sente segura e onde também acontece o Poesia Marginal, coletivo que participa e que ajudou a idealizar. A escolha é cheia de significados e reflete parte daquilo que considera ser a sua “vivência de rua” como uma pessoa “muito aracajuana” que gosta de explorar a cidade onde vive.


Esse encontro, no entanto, não aconteceu. Em meio aos seus ‘corres’ diários, levou alguns dias para conseguirmos ter um novo espaço em sua agenda. Não a vi pessoalmente, mas nos falamos por ligação um tempo depois. Ela contou que estava um pouco cansada e pediu desculpas pelos últimos desencontros, os dias estavam sendo corridos. De qualquer forma, pude conhecer um pouquinho da artista através de seus olhos e dos olhos daquelas que a amam.


Emanuele Caiane Dantas Vieira nasceu no dia 28 de agosto de 1999, na cidade de Aracaju. É rapper, produtora cultural, grafiteira, arte educadora, estudante de artes visuais na Universidade Federal de Sergipe, mestre de cerimônia nas batalhas de rima do Poesia Marginal e também do Coletivo Bueiro, que acontece na Praça do Rosa Elze, em São Cristóvão. É mil, ou, como diria sua mãe, “é adrenalina total”. Também é virginiana com ascendente em capricórnio e lua em peixes, o que pode dizer muito para quem entende de astrologia. Pé no chão, sistemática, líder, comunicativa e observadora, ela se reconhece enquanto uma mulher preta, gorda e bissexual, “sempre em movimento”.


Toda a vivência artística e pessoal de Manu está entrelaçada pela poesia herdada de Gigi, esta que sempre acreditou na arte como ferramenta de libertação e, ainda durante a sua juventude, nos anos 80, descobriu as duas grandes paixões que hoje se estendem e se revelam na vida e no trabalho da filha caçula. Manu descobriu possuir dislexia quando ainda era criança. Sua mãe conta que foi a arte, mais uma vez, o caminho para o seu desenvolvimento. “Eu começava a conversar com ela, brincar falando em rima. Tão interessante isso... Eu não sabia que ela estava trazendo isso pra vida dela. Não tinha essa visão de que ela estava aprendendo comigo.”, recorda. O esporte também foi e continua sendo uma das ferramentas presentes nesse processo, embora atualmente queira praticar mais. Ela aprendeu a jogar basquete ainda cedo e hoje diz torcer para o Confiança, clube sergipano, apesar de ser o Flamengo o time para o qual direciona a sua torcida mais intensa, por influência do irmão.


Aos sete anos, os trabalhos escolares de Manu já tinham ares poéticos e traços da literatura de cordel, ensinamentos compartilhados por sua mãe. Desde a sua pouca idade aprendeu a escrever sobre os seus incômodos, sobre o que considerava ser errado, sobre as opressões, traumas e violências nascidas do simples fato de existir. Se perguntam à Manu o significado da poesia em sua vida, ela afirma sem dúvida alguma: “É a minha vida. Significa a oralidade, o meu refúgio, a minha cura, o sangue que pulsa dentro de mim.”.


Na política e na arte, a família sempre falou uma mesma linguagem, a do afeto, do acolhimento e da liberdade de ser. Apesar da ausência de uma figura paterna, a rapper recebeu da mãe todo o amor e apoio que lhe era possível, mesmo com os desentendimentos existentes entre as duas, nunca faltou um “mainha, me desculpe” ou palavras de carinho por parte de Gigi: “Não deixe que essa sociedade lhe arranhe, lhe fira, lhe maltrate. Esteja sempre blindada… blindada de conhecimento para se defender”, diz Gigi.


Blindada é o nome de um single que Manu acredita ser uma espécie de “oração” para a sua caminhada, uma composição de Dani DK, cantora, compositora e rapper que também integra a cena sergipana. Era com ela que Manu ia aos encontros culturais na rua, sempre de bicicleta, e teve seus primeiros contatos com a cultura do hip-hop, mas só um pouco mais tarde se lançou no rap e no graffite, embora já escrevesse e recitasse suas poesias em saraus. “Eu chego na cena como uma boa ouvinte, né? Uma admiradora. [...] Eu fui conhecendo melhor e me sentindo parte. Me encontrei, na verdade. É o meu lugar, a minha cultura, é o que eu sou, é o que faltava para eu ser quem eu sou, de fato.”, conta.


(Foto: Juliana Teixeira/@jlntxr no Instagram)

O rap entrou na sua vida como uma “porta de entrada à luz do saber e do conhecimento”. Para Manu, o conhecimento e as pessoas que estão na plateia são um dos elementos mais importantes, responsáveis pelo fortalecimento e continuidade do movimento hip-hop. No entanto, a rapper diz que se trata de “resistência dentro de resistência dentro de resistência” e a própria essência do movimento é a militância. “Por ser algo preto, por ser algo periférico, por ser algo que transforma, por ser uma arte que é de rua, que é marginal… a gente costuma dizer que tudo que a gente faz é “poesia marginal”.”, conta.


Nas palavras de Manu, “o rap sergipano é novinho, mas já tem uma caminhada muito cabulosa, muito foda na cena nacional”. No entanto, são muitas as batalhas e humilhações enfrentadas para que seja alcançado o mínimo de respeito e reconhecimento das trajetórias percorridas em meio à uma marginalização que acompanha essa cultura e dificulta o acesso e a inserção de “minorias” a determinados espaços sociais, mesmo dentro das universidades. “Além de trampar com a arte, também tem os trampos que tiro por fora, alguns bicos... porque não tá fácil, né? Infelizmente, aqui [em Sergipe] a gente não consegue lucrar como deveríamos, não tem reconhecimento, valorização.”, afirma.

Manu acredita que a acessibilidade e a articulação entre aqueles que integram a cena seria o primeiro passo para demonstrarem a importância de seus trabalhos e o efeito deles na vida de quem pôde ter algum tipo de contato com essa cultura. Seria na coletividade, própria do rap, que estaria a força para superar esses obstáculos. “Sempre foi nós por nós. A nossa organização é o que mais importa. O sistema não enxerga o hip-hop como potência, ao contrário, marginaliza, criminaliza… basta olhar ao redor, pesquisar um pouquinho que vai entender. O mais importante é a auto-organização, é fazer os nossos famosos encontros de quebrada.”, ela afirma. No entanto, chama atenção para a responsabilidade do poder público na promoção de políticas públicas que abracem a cultura e tornem os possíveis editais e/ou ações mais acessíveis.


Gigi diz que a filha é uma “pesquisadora do rap” e que foi ele que a salvou em muitos momentos. Em 2018, participou do Encontro Nacional de Mulheres do Hip-Hop, em Pernambuco, e também foi classificada para o Slam Sergipe. Em 2020, foi uma das finalistas da seletiva estadual para o Duelo Nacional de MC’s. Manu já realizou oficinas em casas de recolhimento e em presídios, além de participação em encontros com juventudes quilombolas e viagens para outros lugares do país para que a troca de vivências e saberes pudesse ser compartilhada. “Emanuele respira o rap”, conta Gigi e lembra do convite que já recebeu e vê a filha praticar todos os dias: “Mãe, vamos multiplicar o conhecimento e usar ele como ferramenta coletiva libertadora”. Para Manu, “o rap é pra todos, desde que seja sempre com respeito e humildade”.


“Entender que ela faz parte não só do rap, mas do movimento hip-hop é entender muito do corre dela”, conta Negalê, amiga, fotógrafa, filmmaker e diretora de fotografia que também participou de alguns dos trabalhos produzidos por Manu. Segundo ela, o rap, como elemento do hip-hop, adquire uma função social e poder de transformação que são exercidos por Manu e transcendem os ritmos e melodias: “Ela leva isso para suas letras e, inclusive, para suas letras mais românticas, até porque o afeto é transformador. Esse perfil, essa postura combativa e ao mesmo tempo acolhedora é o que diferencia ela de outras pessoas”.


Há quem diga que a ter por perto é nunca se sentir só: “abraça e é abraçada”. Quem vê Manu agora, não reconhece timidez alguma, mas foi o contato com a arte que tornou esta uma característica quase que imperceptível na sua vida. Quando perguntei como se sentia sendo uma referência para outras tantas mulheres, ela disse: “A gente vai se inspirando e sendo inspiração, com certeza, mas eu sou muito cheia de falhas, nós somos…”. Se reconhecer enquanto humana, na sua fragilidade e na sua força são outras características da mulher que tem o afeto como extensão de si mesma, até mesmo ao cozinhar para quem ama: “afeto alimenta e ela faz uma comida muito gostosa”, conta a amiga.


Essa afetividade para com os seus parece ter vindo da casa de sua avó e ter sido reproduzida pela mãe nas suas relações familiares. O seu lar tem abraço, colo e o lembrete: “Nós temos defeitos, mas temos muitos acertos.”.


A artista Manu Caiane e a pessoa Emanuele são uma só. Parece viver tão intensamente o hip-hop, o rap, a poesia, a rua, a praia, as amizades, a família, os sonhos e todas as coisas que atravessam a sua vida que é difícil dizer com precisão quando nasceu Manu, senão todos os dias das dores e também alegrias de quem escolhe ser um “pássaro livre”, este que é o nome de uma das sete faixas da sua MixTape “Arte, Afeto e Ancestralidade”, lançada em dezembro de 2020.



O EP é carregado de R&B e das vivências da rapper que diz buscar expressar a sua liberdade, o amor próprio, o autoconhecimento, os sorrisos e também as cicatrizes que marcam a sua história. Outros artistas da cena participam do trabalho que já tem cerca de 3 mil visualizações em seu perfil do YouTube e diversos comentários positivos nas redes sociais. Mas foi em um feat com Dani DK, lançado um pouco antes, em agosto de 2020, que Manu diz ter iniciado seu ciclo profissional. “Foi quando bati o pé no chão e disse: não, agora eu vou me profissionalizar. Sou uma cantora, sou MC”, revela.


“Respeita o Corre” foi uma das primeiras letras de rap escritas por Manu, uma trabalho carregado de significados, como todas as suas escolhas e produções artísticas. O feat é marcado pelo drill, uma vertente influenciada pelo trap, este que é um subgênero do rap que a artista mais gosta.


No clipe disponível em seu canal, também no YouTube, Manu escreve do que se trata a música: “É sobre todas as mulheres guerreiras que são a linha de frente da batalha que é sobreviver, é sobre todas as pretas que estão na correria diária sustentando essa sociedade nas costas e sendo as mais atingidas com toda violência desse mundo injusto. [...] É por todas todas as matriarcas, por todas as mulheres artistas que resistem e constroem o Hip Hop batendo de frente com quem desacredita. Duplas, triplas cargas horárias de trabalho e, mesmo com toda invisibilização e desvalorização, seguimos honrando o compromisso com o RAP e vocês vão ter que respeitar porque viemos pegar o que é nosso!”.


Por entender que tudo o que se vive na sociedade é atravessado pelo racismo, a raça é também uma prioridade nas suas vivências e o processo de amar a si própria é parte dos renascimentos que a tornaram uma fênix ao longo dos últimos 22 anos. É “um indivíduo dentro do coletivo”, “uma mulher cabulosa que tem uma função social muito importante”, é aquilo que escreve em suas poesias e também aquilo que sente. Carrega tatuado em sua pele um verso de uma música autoral que fará parte do seu futuro álbum de rap: "descendente de guerreiras, protegida pelas matas”, uma homenagem aos seus ancestrais, às suas irmãs e irmãos de luta, à sua família e, em especial, à sua mãe.


“Manu é uma companheira muito incrível, muito ‘Odara’, sabe? Nem todo mundo está preparado para lidar com ela, porque é uma pessoa muito verdadeira e as pessoas não sabem lidar com isso. Ela é muito sincera em tudo que ela faz e isso é muito bonito. Da mesma forma que ela dá muito amor e abraça muito você, ela vai falar o que é necessário você ouvir.... As pessoas não estão preparadas para lidar com esse tipo de coisa, principalmente pelo fato da linguagem ser um espaço de poder, um espaço de disputa e, às vezes, você tem que se posicionar de uma forma diferente do que as pessoas esperam para poder ser ouvida. Ela não vai falar da forma que você quer, por causa de toda a vivência que ela teve, assim como muitas mulheres negras, periféricas, que tem que falar mais alto pra poder ser ouvida. Isso, enfim, pode incomodar e é pra incomodar mesmo. Mas no bom sentido”, conta Negalê.


A criatividade e originalidade que habitam em si são também reconhecidas pelas pessoas que estão ao seu redor e transbordam não somente na arte que produz, mas nas roupas com as quais se identifica. “Eu sou a minha própria marca”, diz e é reforçada por sua amiga: “Original sem cópia”.


(Foto: Juliana Teixeira/@jlntxr no Instagram)

Atualmente, está “produzindo à milhão, escrevendo muito, gravando e, na melhor hora, vai tá aí na pista”. Para o futuro do rap sergipano, a artista prevê muitas produções e conexões. “Espero que [oportunidades sejam] criadas por nós mesmos, pelo meu povo, por nós do hip-hop. Eu prevejo um crescimento, sabe? É algo que a gente sempre almeja, mas é muito complicado, porque a gente tá falando de ser humano. Mas mesmo com as diferenças, que a gente consiga ser uma cena unida”.


A certeza que Manu pode ter na vida é a de que não está só. Sua mãe lhe deseja o reconhecimento enquanto cantora, compositora e artista de rap que produz trabalhos autorais e é autodidata, além do desejo de que seja feliz. Mas isso Manu já é, embora precise se equilibrar entre os dias bons e ruins, entre um sistema que insiste em dizer que há algo de errado em ser como se é. É uma artista que sonha alto, mas com os pés no chão. Uma rapper que deseja criar uma escola de arte no futuro, que valoriza os caminhos que percorreu e as conexões que fez durante o trajeto, além de querer ser conhecida como “quem fez o corre sem pisar em ninguém”.


À você, Manu, Negalê deixa o recado: “Isso é só o começo, ainda tem muita coisa boa pela frente”. Sua mãe pede somente que “transcenda a luz que há dentro de você”. Eu, só posso desejar o desejo que você mesma me confessou: ser vista com os melhores olhares.


0 comentário

Comentários


Agnaldo Rezende - entrevistaJoyce e Katiane
00:00 / 01:33
bottom of page