Negar a discussão de gênero no ambiente escolar é negar a própria escola
"O preconceito não começou no colégio; começou antes de chegar no colégio. Eu precisava ir maquiado porque não tinha mais nada para mudar, ali era eu”, conta Gabriel Muney.
Uma borboleta passa por diversas etapas até se tornar o que realmente é. Esse processo de metamorfose, uma ação que até pode ser análoga à de um ser humano. Para nós, um dos casulos – onde ocorre o processo de transformação no caso da borboleta – seria a escola.
Seja ao ar livre ou em um ambiente de concreto e climatizado, a escola é uma instituição social a compor a sociedade contemporânea. No Brasil, de acordo com o artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a finalidade do educar é “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Mas, a LDB possibilita que as pessoas percebam quem são e que se tornem “borboletas”?
Em meio a aplausos fervorosos se escuta: “Uma nova Era: menino veste azul e menina veste rosa”. Esta frase foi gritada por Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo Bolsonaro a qual reforça, por meio desse discurso, a própria teoria de Judith Burtler, filósofa norte-americana: o gênero como uma construção social.
Quando um indivíduo nasce, as instituições sociais determinam funções e destinam papéis de acordo com o seu sexo biológico. Em um texto traduzido pela Folha de São Paulo, Judith explica a sua teoria alegando que, quando uma pessoa não se reconhece dentro desses papéis estabelecidos, passa a sofrer a dor do existir.
“Algumas pessoas vivem em paz com o gênero que lhes foi atribuído, mas outras sofrem quando são obrigadas a se conformar com normas sociais que anulam o senso mais profundo de quem são e quem desejam ser”, conta a filósofa.
Grades
Em 2013, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais junto com o Ministério da Educação realizaram uma pesquisa que analisa a juventude na escola. O estudo revelou que 19,3% dos entrevistados afirmaram não querer ter como colega de classe travestis, homossexuais, transexuais e/ou transgêneros.
Além disso, o país concentra 82% da evasão escolar de travestis e transgêneros, segundo dados divulgados em 2016 por João Paulo Carvalho Dias, presidente da associação dos defensores públicos de Mato Grosso.
Em um país que possui os maiores índices de violência de gênero no mundo, discutir a temática nas escolas é necessário. É isso que defende o mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Anselmo Oliveira: “é preciso se discutir [gênero] sim! Senão a população continua sem educação e discriminando com preconceitos”.
Na sua dissertação, que analisou o Colégio Aplicação da UFS, Anselmo evidenciou que é raro o debate de gênero nas salas de aula. “O que existem são lapsos de discussões. A literatura também mostra que não há essa discussão de forma contínua”, explica o especialista em gênero.
Preocupado com a agenda conservadora do Governo Bolsonaro, Anselmo é resoluto: “estamos retroagindo. O que precisamos fazer é entrar nas escolas e discutir as diversidades, porque senão vamos continuar no mesmo processo”, defende.
"Estamos aquém do que deveríamos”, diz Anselmo. Ao ser indagado sobre como o Estado deveria agir diante dos fatos, o pesquisador pontua que “deveriam ser adotadas políticas públicas de acesso e orientação”. Além disso, Anselmo conta que ficou espantado quando percebeu, através da sua pesquisa, que os livros didáticos não são preparados para lidar com a realidade e que os professores não têm conhecimento sobre o que é gênero.
“Não deveria ser assim!”
Entre lousa e livros, há desejos interrompidos e/ou reprimidos. Janiele Santana, graduanda em Música pela UFS, lembra dos momentos que passou na escola. “Recebi alguns apelidos. Um deles foi Maria João". A saxofonista adorava jogar futebol nos intervalos das aulas. Porém, sempre foi repreendida. “Sempre gostei muito de jogar bola e por sempre ter um público masculino grande, na minha escola, meu pai me reprimia. Ele falava: ‘tem muito moleque. Você não vai’ ”, conta a jovem.
Janiele define a frase de Damares Alves como um retrocesso. “É como se você colocasse num padrão. A ‘nova era’ na verdade é a antiga era. Não tem a nova era em que menino veste azul e menina veste rosa. É um retrocesso muito grande”, conclui.
Outra pessoa que vai de encontro ao discurso conservador que avança no país, o qual intitula a identidade de gênero como ideologia, é Gabriel Muney. Aos 15 anos, ele foi expulso de casa. O motivo principal foi ter passado batom, sombra, corretivo e outros produtos que, segundo ele, não podiam faltar na sua maquiagem para ir à escola.
“O preconceito não começou no colégio; começou antes de chegar no colégio. Eu precisava ir maquiado porque não tinha mais nada para mudar, ali era eu”, conta o jovem, que hoje tem 18 anos e busca voltar para as salas de aula e ingressar no nível superior.
O medo foi potencializado. “Com tantas polêmicas, nossa representação no governo e tudo que tá acontecendo; nós [LGBTQ+] sentimos cada vez mais medo. Acho que não deveria ser assim”, conta Muney.
Ecoa-se no país um senso comum: o Brasil é diverso! Negros, pardos, brancos, indígenas e quilombolas. Cisgêneros, transgêneros e não binários. LGBTQ+. A diversidade é uma realidade. Contudo, a equidade não.
A pluralidade da sociedade parece estar descolada do dia-a-dia nas salas de aula. Negar o debate de gênero em um Estado democrático de direito, é, além de reconceituar a palavra cidadão - deixando antidemocrática -, é negar a escola, tendo em vista o não cumprimento da finalidade da LBD.
Produção da disciplina Laboratório de Jornalismo Integrado I - 2019.1
Repórter - Paulo Marques
Orientação - Professores: Josenildo Guerra, Cristian Góis e Eduardo Leite
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