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A raiz do corpo

Consciência identitária como fio condutor para assumir e amar os cabelos


Segundo a poeta Blenda Santos, o significado do seu cabelo "é a maior representação da negritude escancarada dentro dessa sociedade racista"

O corpo humano representa trajetória de vida, manifesta cultura e expressa história por meio das escolhas individuais. O cabelo singulariza essa materialidade, um lar e alicerce para personalidades. Desde sempre, os fios são elementos significativos para a figura humana, fundamentais para a beleza, a sedução e até mesmo para o poder e a força. Eles marcam, sobretudo, um ponto em comum na história entre as deusas na Grécia antiga, os faraós no Egito, a nobreza na Idade Média e as blogueiras e youtubers na contemporaneidade.


O estilo do cabelo modificado desde a infância ou adolescência levou mulheres a compartilharem suas experiências nas mídias digitais, como por exemplo, através de blogs e vídeos no Youtube, em busca das verdadeiras raízes das suas cabeleiras. Segundo o Dossiê BrandLab, entre 2015 e 2017, as buscas pelo termo “transição capilar” cresceram em 55% no Google. Esse dado revela grande mudança de atitudes na rotina de beleza de muitas mulheres brasileiras, e até mesmo de homens.


Por muito tempo, o cabelo liso artificial se configurou como um padrão estético diante dos cabelos naturais. A ditadura dos fios por meio das químicas – alisamento com guanidina, escova progressiva, relaxamento, botox e selagem – não reconhecia a essência do ondulado, cacheado e crespo. Dessa forma, assumir o cabelo como elemento identitário parecia uma tarefa difícil e distante. Os rótulos são muitos: cabelo “feio”, “indomável” e até “ruim”. A pesquisa do Google aponta que 1 em cada 3 mulheres já sofreu preconceito por conta do cabelo, e 4 em cada 10 já sentiram vergonha por ter cabelos cacheados.



Segundo a cientista social Lídia Matos, mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe, as jovens, impulsionadas por movimentos feministas, redes de solidariedade e apoio mútuo, que passam pelo processo de transição capilar, vão além do movimento estético e alcançam um caráter político.


Aceitar e assumir os fios naturais desafiam a lógica padronizada de uma indústria de beleza que “teima em tratar os cabelos como se fossem iguais”, reconhece a blogueira Sabrinah Giampá em “O Livro dos Cachos” (2016). Voltar às raízes é dar o primeiro passo à jornada em busca de si, é ser disruptivo em relação ao discurso imposto pela sociedade e resistência em meio ao preconceito e racismo vigentes.


Presente! Cabelo pronto para (afro)ntar

O estudo brasileiro conduzido pelo Google BrandLab também apresenta que a busca geral por “cabelos afro” cresceu expressivamente somando 309%, entre 2015 e 2016. Cada cabelo é único e tem suas peculiaridades. O cabelo afro, geralmente conhecido como crespo, é o tipo que não possui um padrão de onda definido e mais parece pequenos dreads naturais, com a textura livre e mutante.

"Meu cabelo é parte da minha personalidade", conta a jornalista Aline Braga, ao se recordar da libertação da química

A ousadia de ser, encorajou a jornalista e militante negra Aline Braga a se libertar das químicas entre os 17 e 18 anos, para se redescobrir no emaranhado de fios que emoldura seu rosto. Já cansada do discurso de perfeição capilar e sem ideia da textura e forma das suas raízes, começou o processo de autoaceitação da maneira mais radical: raspando o cabelo, atitude conhecida como big chop, o grande corte. “É sempre aquela história de a gente vai deixar você bonita, seu cabelo bom! Sua raiz já está crescendo. A gente vai dar um jeito no seu cabelo”, lamentou Aline sobre o tratamento nos salões de beleza não especializados em cabelos naturais que frequentava em bairro nobre de Aracaju.


A infância de Aline, marcada pelo cabelo rebelde, mesmo alisado, dar vez a uma vida adulta onde emerge o orgulho do black ouriçado. A relação com o cabelo é de pertencimento e também afetiva. Segundo ela, a figura do pai, um químico e responsável pelos penteados de escola, teve significativa influência para enfrentar a mudança estética diante da realidade racista que a envolvia.


Potencializar a palavra “crespo” é necessário, afinal, é preciso que ela seja dita para o fio poder viver, respirar e ser respeitado. O preconceito está ligado diretamente à questão étnica e racial, uma vez que o cabelo crespo é uma característica dos negros. Hoje, liberta e decidida, Aline se tornou referência para seu filho, nascido em berço livre e cultivador perpétuo da raiz a qual lhe gerou.


Existe padrão fora do padrão?


“Sempre gostei do meus cabelos com cachos, no tempo que ninguém tinha. Todo mundo trabalhava para ter cabelo liso e isso era motivo de crítica para eu me enquadrar e eu nunca gostei. Foram surgindo produtos que preservavam os cachos, e as pessoas começaram a aceitar essa condição, mas ainda não era a condição natural dos meus cabelos”, conta a cordelista Izabel Nascimento. Discreto, arrumado, baixo, sem volume e com textura aceitável eram as características capilares das quais, por muito tempo, se via refém.



A carga empoderadora do discurso de autoaceitação desabrochou múltiplas conquistas: transformação do conceito de beleza; evidência da diversidade; e representatividade na TV e na rua. Esses aspectos contribuíram para que a declamadora de versos nordestinos passasse a desbravar o vasto mundo dos penteados com flores e laços. Porém, ao entender que a transição entre duas texturas capilares vai além da questão da vaidade, apoiou-se à ação coletiva feminina para fortalecer sua transformação individual – processo de busca das raízes ancestrais e instante oportuno de firmamento dos pés no chão, embora a raiz esteja na cabeça.


Evolução conjunta


De acordo com Mariana Costa, cabeleireira especialista em cabelos naturais, a demanda de cuidados dos fios naturais na cidade de Aracaju é crescente, inclusive entre o público masculino. O fotógrafo Davi Cavalcante, por exemplo, teve sua infância marcada pelo cabelo curto e se inspirou na sua companheira para assumir o cabelo cacheado. O processo de entendimento da essência de seus cachos, transformou-o em um homem expressivo, autoconfiante e consciente da negritude que o enraíza. Ao quebrar seu primeiro tabu, Davi revelou seu ativismo. O crescimento dos cachos possibilitou reconhecer que as pessoas tentavam lhe “esbranquiçar” de maneira constante e o fez percorrer um caminho de autoconhecimento sugestivo. Através de autorretratos, o fotógrafo passou a explorar a sua arte em busca do amor próprio.


Refletir a diversidade através da textura natural dos cabelos é superar o discurso de modismo. A busca de si converte em um encontro do eu. O processo de mudança para assumir o ondulado, o crespo ou os cachos é de dentro para fora: é da cabeça para o corpo. Confiança no riso largo, autoestima equilibrada e timidez de escanteio foram as consequências de cada um após unir forças para se reconhecerem a partir dos fios.







 

Produção da disciplina Laboratório de Jornalismo Integrado I - 2019.1

Repórter - Francielle Nonato

Orientação - Professores: Josenildo Guerra, Cristian Góes e Eduardo Leite

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