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Resgate da essência e fortalecimento da cultura local no Povoado São Brás

Atualizado: 31 de out.

Por: Luiz Fernando Dantas, Luiz Rodrigues e Sabrina Matos

 

© SABRINA MATOS / CONTEXTO


Banhado pelo Rio do Sal, o povoado São Brás, localizado em Nossa Senhora do Socorro, antes conhecido como Fazendinha, emerge como um símbolo de transformação. Este local, que um dia foi apenas uma extensão da natureza, começou a ganhar vida na década de 1940 com a instalação de salinas que impulsionaram a economia da região. A crescente demanda por serviços de extração de sal atraiu trabalhadores do município e de regiões próximas. Para pernoitar durante a semana, eles erguiam cabanas, transformando o que era uma necessidade logística em uma comunidade sólida e resiliente.


A origem do nome do povoado está profundamente ligada a uma história de fé. Durante um surto de coqueluche em Sergipe, na década de 1950, Diocridio Vasconcelos, gerente da Fazenda Cabrália, fez uma promessa ao Santo São Brás, conhecido como o protetor da garganta, ao ver a vida de seu filho ameaçada pela doença. Sua fé foi recompensada com a recuperação não apenas do filho, mas também de outras crianças afetadas na comunidade. Em agradecimento, Diocridio trouxe uma imagem do santo de Portugal, e assim o nome São Brás passou a simbolizar a nova identidade da comunidade.


O povoado é composto por apenas duas ruas, em torno de 300 famílias e, em sua maioria, todos parentes dos primeiros moradores. No entanto, a construção de um senso de pertencimento no São Brás não foi isenta de desafios. Os moradores enfrentaram preconceitos desde os primeiros anos do povoamento, marcado por ruas sem asfalto e lama. Esse cenário de precariedade gerou estigmas aos moradores, e a comunidade passou a ser alvo de apelidos pejorativos. Esses rótulos reforçaram a marginalização dos habitantes e despertaram em muitos o desejo de se afastar de suas próprias origens.


"Na escola, os meninos sofriam bullying, sendo chamados de 'goré' ou 'caranguejo' por viverem na comunidade. Na época, achávamos que era apenas uma brincadeira, mas a verdade é que esses comentários desmereciam a comunidade e afetavam a autoestima dos jovens. Muitos moradores tinham vergonha de dizer que moravam no São Brás, optando por mencionar bairros vizinhos, como Piabeta ou Taiçoca, para se sentirem mais aceitos. Isso reforçou a nossa motivação para trabalhar no resgate da história e da identidade da região", compartilhou Givanildo Santana, que nasceu e cresceu no São Brás e a partir dessas experiências decidiu criar o Projeto Social Pescando Memórias. 


Desde seu surgimento, a diversidade cultural do São Brás é um aspecto marcante, exemplificado pelo sincretismo e harmonia religiosa que se manifestou, por cerca de 15 anos, entre a Igreja Católica, a Igreja Evangélica e o terreiro de Candomblé Ogum Raio do Sol, um dos poucos no Brasil da vertente nagô. Esse sincretismo, caracterizado pela fusão de crenças e práticas religiosas de diferentes tradições, revela a capacidade do povoado de integrar diferentes expressões de fé. Embora a Igreja Evangélica não esteja mais presente na comunidade, essa pluralidade religiosa continua a refletir a riqueza das tradições locais e o compromisso dos moradores em preservar e celebrar a diversidade.


Ameaça à Identidade


Nos últimos anos, a expansão imobiliária ameaçou não apenas o espaço físico do povoado, mas também a sua essência comunitária a partir de um processo conhecido como gentrificação. A resistência dos habitantes locais – a todo momento ameaçados de expulsão de suas moradias pelo interesse de grandes construtoras – é vivida diariamente, já que a integridade cultural e local dos moradores são expostas a perigos de expansão, podendo resultar em um apagamento de histórias e tradições do local. 


A ameaça de gentrificação  levou os moradores do povoado a acionarem o Ministério Público para que fosse impedida a venda de um dos terrenos que serve como um dos únicos espaços de lazer das crianças do povoado, e faz parte dos bens da união. “Em 2016, se não tivéssemos colocado um pouquinho do nosso pé, teriam construído os

prédios. Já estavam fazendo topografia e tudo para construir condomínios na única área de lazer da comunidade. Só não construiu porque foi feita a venda de uma área de preservação permanente. Agora está sendo vista a legalidade e como será resolvido por meio judicial”, relata Isabela Bispo, fundadora do projeto Pescando Memórias.


Essa realidade provoca o isolamento desses moradores, que ficam sem acesso a transporte coletivo, serviços de coleta de lixo, de segurança, de saúde, dentre outros. Atrelado a isso, em 2023, o Ministério Público de Sergipe, ajuizou uma Ação Civil Pública contra o Município de Socorro para impedir a emissão de novos alvarás de construções de imóveis em bairros sem infraestrutura básica. Uma vez que muitas das residências já construídas foram feitas sem a infraestrutura adequada, em lotes mais baratos e em áreas sem saneamento, pavimentação e drenagem.


© SABRINA MATOS / CONTEXTO

Manguezal da comunidade sob ameaça da expansão mobiliária


O povoado passa por um processo de reconstrução de pertencimento, e questões como essas impedem que os moradores possam se sentir acolhidos por esse lugar. Para além do processo de gentrificação, os moradores também sofrem com a falta de cuidados públicos, levando muitos deles, especialmente os mais jovens, a preferirem se distanciar da comunidade. O estigma e a negligência contribuem para o sentimento de desvalorização, influenciando diretamente nas condições econômicas e culturais, já que pessoas que vivem ali têm rendas mensais baseadas em trabalhos locais, como a pesca e em restaurantes que dependem diretamente do turismo.


Mesmo com algumas melhorias, como a construção da orlinha e o capeamento das duas ruas do povoado, em 2014, São Brás ainda enfrenta problemas estruturais. A falta de saneamento básico adequado é um dos principais desafios, já que o esgoto é despejado diretamente no rio. 


“A Deso veio fazer o esgotamento sanitário e derrubou algumas casas porque eles não souberam como cavar, porque embaixo é lama, então para conseguir drenar o solo é muito difícil. Era preciso realizar um estudo mais aprofundado, teve lugar que desceu o solo, eles fizeram uma mini estação para sugar e jogar o esgoto para parte de cima, mas não tinha condições da água subir por si só. A estação está no alto e aqui ficou baixo. No fim, mantivemos a forma antiga de despejo. Infelizmente, continuamos a jogar o esgotamento para o rio novamente, por falta de opção”, declara Givanildo, morador do povoado.


Além disso, a ausência de transporte público acessível dificulta a mobilidade dos moradores, que precisam percorrer longas distâncias até os pontos de ônibus, muitas vezes sob o risco de assaltos e outros perigos. Esses problemas mantêm a comunidade à margem do desenvolvimento, apesar de sua rica história e cultura.  “Moro aqui há 48 anos, há pouco tempo que asfaltaram as ruas, agora a gente tá correndo atrás de outras melhorias, porque antes a pista era via única, e os carros só tinham uma mão. Mas agora fica aquela enrolação, o que a gente quer é pelo menos um ônibus, que é o que tá faltando aqui”, comenta Íris Souza, moradora do povoado.


A última revitalização da orlinha ocorreu há 10 anos, e desde então não houve mais nenhum projeto de melhoria no povoado. Neste período, também houve a mudança de categoria do povoado para vila, o que não agradou os moradores, pois não foi realizada nenhuma consulta prévia sobre essa mudança. Além de retirar o nome originário, a mudança também reforça o apagamento do povoado, uma vez que não evidencia a separação do bairro São Brás e do povoado.


“Eles nomearam aqui ‘Vila São Brás’, abandonaram a categoria povoado. Ainda abandonaram sem consulta, não tiveram a consideração de nos consultar. Aqui é povoado, no endereço a gente coloca povoado São Brás. Nós solicitaremos na Câmara para eles mudarem. Fazemos questão da mudança, a troca na nomenclatura ficou para a gente um pouquinho confuso”,  Isabela Bispo.


Resgatando Memórias


Em 2012, Isabela Bispo e Givanildo Santana uniram forças para dar continuidade a uma nova proposta no povoado São Brás. O projeto se fundamentaria na ideia de que a memória coletiva é um elemento vital para fortalecer a identidade local e valorizar as tradições da comunidade. O Pescando Memórias busca resgatar e valorizar a identidade local, revivendo histórias e tradições fundamentais para a formação das novas gerações.


© SABRINA MATOS / CONTEXTO

Givanildo Santana e Isabela Bispo, fundadores do projeto Pescando Memórias


Diante da riqueza histórica da localidade foi observada a necessidade  de preservar a cultura e identidade da população local. A coordenadora do projeto, Isabela Bispo, afirma: “Sempre enxerguei a beleza do lugar, que muitas pessoas não valorizavam devido ao preconceito. São Brás, sendo uma comunidade de pescadores, era visto de forma preconceituosa, como um local de falta de conhecimento. No entanto, cada pessoa tem um tipo de saber, e os pescadores possuem um conhecimento específico sobre a pesca e como sobreviver dela”.


Segundo Givanildo, o Pescando Memórias promove uma conexão mais profunda com o lugar, apresentando a riqueza natural e histórica do São Brás, apesar das adversidades da negligência estatal, atraindo turistas de diferentes regiões do país. Ao focar na valorização do patrimônio local, o projeto desempenha um papel crucial na construção de uma nova narrativa para a comunidade, onde todos têm a oportunidade de usufruir do que o povoado tem a oferecer. 


As oficinas promovidas pelo projeto desempenham um papel crucial na transformação da comunidade do São Brás. Divididas em várias etapas, essas atividades buscam empoderar a população local, oferecendo acolhimento psicológico e orientação jurídica, administração e capacitações diversificadas, como a oficina de culinária, artesanato e barbearia. Essas oficinas não apenas proporcionam novas habilidades, mas também promovem a conscientização sobre questões sociais, como a violência contra a mulher e a prevenção do uso de drogas. 


Por meio de encontros semanais e rodas de conversa, os participantes têm a oportunidade de se reconhecerem através da troca de experiências, fortalecendo vínculos, transformando suas realidades e contribuindo para um ambiente mais solidário na comunidade. Já as oficinas de capoeira e futebol do projeto, por outro lado, estimulam jovens a partir do esporte, para que possam aprender, de maneira prática, sobre respeito e trabalho em equipe entre membros da comunidade.


Antônio da Silva, auxiliar de depósito, ex-participante da oficina, relata: “ Um projeto é uma segunda casa, porque cada vez mais que participamos de algum projeto começamos a querer ser algo melhor na nossa vida, entendi a razão social e que temos direitos iguais independente de cor ou de quem quer que seja”.


Com a ampliação das atividades, o projeto agora atende não apenas os residentes do São Brás, mas também todo o município, permitindo que um número maior de pessoas participe e se beneficie. A assistente de coordenação, Renata Alves, reforça essa visão: “Acreditamos que quem sabe de onde vem, sabe para onde vai e é justamente esse o nosso foco que eles se conheçam, que saibam quem são, de onde vieram, quais são suas raízes e para onde querem ir. Nosso trabalho é voltado para fortalecer essa consciência, para que eles sejam firmes em suas escolhas, entendendo que elas têm valor e importância”.


A presidente do Conselho municipal da Criança e do adolescente (CMDCA), Kívia Ferreira, comenta a importância das oficinas do projeto para a comunidade: “São extremamente importantes, principalmente no combate ao trabalho infantil. É essencial para possibilitar novas atividades ou atividades extras escolares, muito importante, também, para o fortalecimento da comunidade em seu território, trabalhar a profissionalização e a convivência comunitária. Os projetos complementam as políticas públicas realizadas pelo município, com o objetivo de cuidar das pessoas e promover o acesso. Dessa forma, eu só vejo impactos positivos, nesse projeto em específico, mas também em todas as iniciativas e projetos sociais.”


Em sua grande maioria os projetos sociais fazem a função do estado, que é assegurar direitos e disponibilizar insumos para a sociedade poder evoluir e se desenvolver. Uma vez que se faz necessário, que sejam criados projetos como esse, pelo motivo que o estado não consegue alcançar aquelas pessoas e tampouco cumprir as políticas públicas necessárias. 


A cientista social Izabel Cristina comenta:  “ONGs são parte da sociedade civil, a parcela que atua ativamente onde as políticas públicas geralmente não alcançam, por muitos motivos, dentre os principais estão a ausência do Estado e a falta de políticas públicas. A partir dessa perspectiva, entendo que as ONGs têm um papel fundamental na sociedade, já que são elas que dão luz a questões sociais e que consequentemente produzem um discurso sobre aquilo, assim como suprem a ausência do Estado. São instituições que representam interesses e causas que são negligenciadas pelo meio político pois a maioria dos projetos são desenvolvidos para suprir a ausência do Estado”.


Íris Souza fala um pouco sobre a oficina de administração para capacitação dos donos dos bares e como o projeto é importante em sua vida e na dos seus filhos: “O projeto nos ajudou muito, principalmente no período da pandemia. A oficina de capacitação para os donos dos bares ajudou a entender como administrar melhor o comércio, também tem meu filho, participa da oficina de futebol e capoeira, o que acho ótimo porque pelo menos tirou as crianças de ficar na rua. A cabeça fica voltada para o futebol, capoeira e os outros projetos que eles colocam aqui, e os meninos se interessam, tem a escolinha de arte, o projeto trouxe várias coisas boas”.


© SABRINA MATOS / CONTEXTO

Moradores do São Brás e integrantes do projeto social


Apesar de fazer parte de alguns editais do município para captação de verba para a realização das oficinas, não é fácil manter um projeto do tamanho do pescando memórias devido à falta de recursos para realização das oficinas. Nesses 12 anos de atuação, já participaram do projeto aproximadamente 12.000 pessoas. Atualmente, o projeto tem duas bases fixas, uma em Nossa Senhora do Socorro e outra em São Cristóvão. Ambas as bases contam com aproximadamente 270 beneficiados. 


Givanildo comenta as principais dificuldades de manter o projeto: “A gente precisa de profissionais e não temos como remunerar. Às vezes, para ser voluntário, a pessoa fica pensando duas vezes. A instituição não tem como arcar, a gente tem que lutar para fazer os projetos, para lançar nos editais e para conseguir o financiamento. Ainda tem a dificuldade do pessoal [organizadores do edital] que erram e precisamos ficar ligando para corrigirem. Acredito que não precisamos ficar pedindo ‘pelo amor de Deus, me coloque no edital’. A gente tem cronograma, sinto que a gente tem que estar o tempo em cima para as coisas poderem fluir, essa dificuldade é gritante”, finaliza.


 

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