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No mês da Consciência Negra, queijadinha reflete seu valor cultural e imaterial em SE

Por Irion Martins, Vivian Myllena, Vivian Ribeiro

 
A imagem contém a fachada salmão de uma loja. A parte de cima está manchada pela chuva e tem uma “faixa” branca também manchada. No meio está escrito, em letras maiúsculas e azuis, Casa da Queijada, com uma placa na lateral. Embaixo contém duas portas e uma janela.
O lugar é tradição para todos os que chegam em São Cristóvão. Foto: Vivian Ribeiro

Se já é comum ouvir relatos sobre a sensação de voltar no tempo nas idas ao centro histórico de São Cristóvão, a 24 quilômetros da capital sergipana, no mês da Consciência Negra este passeio ultrapassa o mero turismo e se torna símbolo da expressão de memória e resistência dos povos afro-brasileiros.


Mesma data do assassinato de Zumbi, alagoano e líder do Quilombo dos Palmares no século XVII, o 20 de novembro foi escolhido para propor reflexões sobre o processo de aculturação e escravidão ao qual os africanos e afrodescendentes foram submetidos durante a colonização. Mais do que isso, o dia que até hoje tem seu status de feriado nacional questionado no Congresso Nacional também celebra as conquistas políticas atuais do movimento e o valor de suas heranças ancestrais na formação do Brasil.


A herança está no vocabulário, na musicalidade, na literatura e até na gastronomia. Apesar de muitas vezes escondidos, não é difícil encontrar esses traços identitários nas raízes de nossa história. Segundo uma pesquisa sobre as Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018 quase 72% da população sergipana se autodeclarava parda ou preta. Mas nem sempre foi assim. Esconder a própria identidade era estratégia de sobrevivência dos povos tradicionais, seja através do sincretismo religioso da cidade com nome de santo ou mesmo da queijadinha que não leva queijo algum em sua produção.


Em 2011, a queijadinha da cidade-mãe de Sergipe e 4ª mais antiga do Brasil tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial por meio do Decreto de n.º 27.720. A trajetória histórica da receita, ligada às dimensões culturais de sua produção, traduz como esse doce, adaptado dos portugueses, resistiu à amargura, à desigualdade e aos espaços de sua própria época.


Esta reportagem foi feita como se faz queijadinha, adicionando os ingredientes pouco a pouco e deixando a massa descansar. A seguir, um percurso textual de três blocos mostra como falar desta iguaria é atravessar o tempo, o espaço e a fome. Imaterial, o patrimônio rememora os modos, os meios e uma luta que remonta o período colonial do Brasil - segundo país em população negra do mundo.

 

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.


A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.


Trecho do poema “Vozes-mulheres”

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11)

 

O TEMPO


"Essa, definitivamente, não é a geração Coca-Cola", Everaldo Fontes, de 62 anos, dizia para si mesmo a sorrir, referindo-se às dezenas de jovens estudantes que deixavam seu estabelecimento comercial - a Casa do Beiju, no centro histórico de São Cristóvão - após serem arrebatados pelos doces típicos. "Isso aqui é o quê?", alguns deles perguntavam diante de uma mesa repleta de patrimônios declarados imateriais assim como a queijada: manauê, bolachinha de goma, bolo de bacia, pé-de-moleque, beiju de tapioca, saroio e tantas outras receitas. Depois que se prova uma delas, pode ser que se queira repetir o prato, mas jamais a pergunta. É assim, em troca de saberes e sabores entre pessoas das mais diferentes idades, que grandes patrimônios nascem e se projetam.

Passada de geração em geração, a queijadinha tem suas raízes no período escravocrata, pois foi trazida para o Brasil pelos portugueses. Segundo relatos da doceira Marieta Santos, os escravos das casas grandes tiveram que aprender o seu preparo e reproduzir para os senhores de engenho. Foi assim que ela herdou de sua bisavó não apenas a receita, mas os móveis da Casa Grande, onde sua família trabalhou. Ela explica que, originalmente, a receita era feita com farinha de amêndoas e queijo - o responsável pelo nome queijadinha -, ingredientes escassos no Brasil. Além de demorarem para chegar, muitos estragavam durante a viagem. Assim, o queijo foi substituído pelo coco e a farinha de amêndoas pela de trigo.


A imagem contém uma mesa de madeira e, em cima dela, uma bacia de alumínio com uma cocada e uma colher de pau dentro. Uma mão segura um pote de plástico a cima da bacia e despeja um preparo na cocada.
Cocada da queijadinha sendo preparada. Depois, esse preparo é colocado numa base, feita com farinha de trigo e água, e levada para assar. Foto: Vivian Ribeiro

Ao longo dos anos, as receitas tradicionais foram se tornando cada vez mais populares. Em São Cristóvão, a tradição familiar é um dos grandes pilares da produção e distribuição da queijadinha. Carinhosamente chamada no diminutivo e sem nem sinal de queijo, o doce tornou-se um fenômeno cada vez mais presente no cotidiano do município, seja no consumo ou no sustento de famílias. Dona Marieta é proprietária da Casa da Queijada, localizada na Praça da Matriz, e descendente de pessoas escravizadas. “A minha vida só foi pescar e fazer queijada. É o que eu sei fazer [...] Às 4h eu estou aqui todos os dias, nossa vida é essa”, conta. Seu lamento é não poder viajar no tempo, pois, ao se dar conta de uma liberdade que tinha e nunca usufruiu plenamente, ela "só queria ter 40 anos".


Quando sua bisavó ia dormir, na senzala, sempre chamava a atenção para o sabor da queijadinha. "Minha gente, vamos comer. O negócio é bom!". O que ela não sabia é que, gerações à frente, uma adaptação histórica nos ingredientes viraria de fato um negócio, principal fonte de renda de seus familiares. Foi a necessidade de estar em um espaço mais urbano para realizar as vendas que motivou Marieta a sair da beira da Maré, da casinha de palha onde o piso era areia. "A gente vai apanhar", alertava sua mãe, ainda tomada pelo trauma da exploração de trabalho à qual foi submetida.


A imagem mostra duas fotografias de duas mulheres negras, vestidas de branco. A da direita usa um lenço na cabeça e a da esquerda está sentada em uma cadeira de plástico.
Retratos da mãe e avó de Dona Marieta, que ela guarda com carinho em sua casa. Foto: Irion Martins/Acervo Casa da Queijada
 

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela


A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue e fome


Trecho do poema “Vozes-mulheres”

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11)

 

A FOME


Tão abundante na cidade, a queijadinha tem em sua trajetória mais relações com a fome, do que com a fartura. A contradição é explicada por Luís Câmara Cascudo, historiador, no clássico “História da Alimentação no Brasil”, publicado ao final da década de 60. Ele aponta que, para os negros e indígenas, a noção de comer era "sustentar-se", diferentemente do modo como os portugueses inauguraram a queijada original: "comida doce, fazendo-se comer sem vontade, comida de passatempo, sem intuito alimentar, aperitivo, para abrir o desejo, acompanhando bebidas, ajudando conservas, motivando convívios".


Estrutural e fruto da desigualdade racial, a fome fez Dona Marieta viver situações inesquecíveis. "Nossa comida é a mesma da pobreza", compara, relembrando os anos em que morou no terreno que abrigava os cavalos de dois municípios sergipanos, Itabaiana e Lagarto. Ainda na Cidade Baixa, a família tinha se mudado apenas com o desejo de sobreviver. Por sorte, o terreno era situado em frente a uma rodoviária que acabara de ser inaugurada. O movimento favoreceu o crescimento do comércio de suas queijadinhas.


Hoje, Marieta tem um quarto, mas não sabe dormir. Sequer pensa em sair dos fundos da Casa da Queijada, onde se chega através de um corredor à direita do estabelecimento. Ali, ela mora e também trabalha. "Equipe, só coloque no prato o que for comer", lembra um papel ofício colado em uma das paredes, no imperativo de uma fome-professora.


A imagem contém uma mulher negra com uma blusa com folhas em uma cozinha branca com algumas placas de papel na parede, e em frente a ela há utensílios de cozinha.
Dona Marieta, proprietária da Casa da Queijada, fala, com orgulho, dos seus doces. Atrás dela, o ofício com a frase destacada. Foto: Irion Martins.

"Não me acostumei”, conta dona Marieta sobre morar na Cidade Alta. “Eu estou procurando quem já passou mais fome do que eu, quem já sofreu mais humilhação, quem dormiu pior do que a gente na face da Terra. Eu até hoje não sei dormir em cama boa. Eu tenho um quarto e não sei dormir. Só sei dormir numa caminha, com um colchãozinho acostumado. Tá vendo?"


A vulnerabilidade socioeconômica em cidades históricas remonta o período de abolição da escravidão, quando as populações menos favorecidas estavam à margem da sociedade, desprovidas de recursos, direitos e oportunidades. Sem uma reparação efetiva, os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, não apresentam índices sobre pessoas em situação de risco em São Cristóvão.


Captura de tela do site do IBGE, onde mostra que não há dados da população exposta ao risco na cidade de São Cristóvão, em Sergipe, desde 2010.
Site do IBGE sem dados da população exposta ao risco em São Cristóvão/ SE desde 2010. Foto: Captura de tela do site do IBGE.

Há quase 20 anos, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), de 2002/2003 registrou uma incidência de pobreza de 57,14% no mapa da desigualdade do IBGE, para a cidade de São Cristóvão. O percentual é alarmante quando comparado ao de Aracaju, de 27,45%, menos que a metade. Salvador, na Bahia, foi a primeira sede portuguesa do país e ainda assim já registrava 35,76% naquele mesmo ano; quase 22 pontos a menos.


Enquanto o decreto de imaterialidade da queijadinha ultrapassa uma década e é rótulo do turismo são-cristovense, a cidade recebe, só após mais de 12 anos, o censo demográfico. A categoria que mensura a situação de risco continua presente nas pesquisas de 2022, mas os relatórios ainda não foram divulgados. Procurada, a Prefeitura de São Cristóvão não respondeu sobre as medidas para atenuar os efeitos da vulnerabilidade na cidade.

 

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.


Trecho do poema “Vozes-mulheres”

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11)

 

O ESPAÇO


“Quando terminou a escravidão, nossa avó ficou fazendo. Depois veio a nossa mãe. Depois eu vim. Estou fazendo há 73 anos, minhas filhas fazem e até as minhas netas estão fazendo,” revela a são-cristovense sobre a venda do doce artesanal. Há 20 anos ela mudou-se novamente, mas dessa vez sem a mãe e a avó. Mortas em processos dolorosos, as ancestrais não viram Marieta conquistar o centro histórico de São Cristóvão, na Cidade Alta onde, com ajuda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), colocou a Casa da Queijada de pé. “Aqui [na Cidade Alta] a gente tinha que falar baixo. Lá embaixo é que era uma festa, não tinha besteira”, compara.


Mas, as dimensões desse marco na história da cidade e do estado de Sergipe ultrapassam qualquer espaço ou material físico. Extrapolando a si mesmo, a queijadinha tem caráter imaterial enquanto patrimônio. Fomos em busca de explicações. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2003, e ratificada pelo Brasil em 2006, a imaterialidade de um Patrimônio Cultural é composta pelas "práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados". Assim, são tudo que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu Patrimônio Cultural.


Neste caso, a queijadinha de São Cristóvão é mais que uma mera receita deliciosa de um doce, é uma representação cultural que se manifesta a partir da culinária. Essa representação vem de um passado marcado por diversos episódios difíceis da humanidade, como a escravidão e a vulnerabilidade econômica e social que pessoas pretas passaram na cidade após a abolição da escravatura.


Além disso, a queijadinha é também a resistência e a força dessas pessoas, pois supre algumas necessidades, econômicas e sociais, ao longo dos anos, se tornando parte da cultura familiar de São Cristóvão e, mais recentemente, objeto turístico particularmente famoso na região. Parte desse sucesso, deve-se à permanência legítima da receita desse doce que encanta e faz-se parte da cidade de forma imaterial. Mas que sempre está presente na vida dos sergipanos, seja na sobremesa de um almoço de família ou no negócio que gera o sustento de pessoas amadas, e perpetuam esse patrimônio para que todos conheçam a história e a delícia da queijadinha.

a imagem contém um forno a lenha em formato redondo com cinzas dentro. Na boca do forno duas formas de alumínio contendo queijadinhas, a mais perto do forno já assada e a outra ainda crua.
A queijadinha de São Cristóvão é tradicionalmente assada no forno a lenha, para dar o seu gosto característico. Foto: Vivian Ribeiro

Para Ilzver de Matos Oliveira, doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), a contradição da fartura das queijadinhas em relação à vulnerabilidade dos povos tradicionais é uma violação ao que está previsto naConstituição Federal de 1988. “O direito à alimentação está garantido constitucionalmente, no artigo 6º, apesar de grande parte da população brasileira dele ser despido cotidianamente”, contrasta. A falta do cumprimento deste artigo acarreta um maior número de pessoas com Insegurança Alimentar. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, 30% da população sergipana se encontra gravemente nesta situação.


Ilziver conta que “nesse contexto de ineficácia, tanto da garantia constitucional do direito à alimentação como das políticas para a sua concretização, é inescapável a constatação de que o processo histórico de escravização e exclusão da população negra e de discriminação e perseguição às expressões religiosas dos povos e comunidades tradicionais de terreiro, refletiu - e ainda reflete - na desigualdade no acesso ao direito à alimentação”.


Também ativista do movimento negro e de povos de terreiro em Sergipe, Ilzver dedicou-se a análises científicas sobre a insegurança alimentar com o recorte das pessoas pretas ou pardas. Suas teses comprovam que o perfil das pessoas que vivem sob extrema pobreza coincide com “o perfil socioeconômico da maioria das sacerdotisas de comunidades tradicionais de terreiro: mulheres negras com baixa escolaridade e renda mensal igual ou inferior a dois salários mínimos”.


No mês da Consciência Negra, o pesquisador propõe olhar para o passado para entender a noção de imaterialidade dos patrimônios. “Olhando para a história, vemos como que as tecnologias sociais desenvolvidas pelas comunidades negras escravizadas para a garantia da alimentação e do sustento econômico, seja através da queijada ou do abate religioso de animais, por exemplo, possui grande importância para os povos tradicionais de terreiro e compõe, ainda, a liturgia das várias das suas expressões religiosas, como na ‘quitanda de iaôs’”, reflete, ressaltando a importância de alimentos como a queijadinha nos cultos ritualísticos das religiões de matriz africana.


Pra cego ver: a imagem mostra um homem negro sorrindo, usando uma camisa branca e um colar.
Ilziver Oliveira, doutor em Direito pela PUC - RIO, pesquisador e historiador. Foto: Acervo pessoal.

Hoje a iguaria já superou os limites do município e até do estado. Os doces de Dona Marieta, apesar de tradicionais, passaram a ser consumidos até em festas de aniversário. Quando revelou que uma encomenda foi levada de avião para o Rio Grande do Sul, Marieta reproduziu a surpresa do dia em que ficou mais consciente sobre seu próprio trabalho: “Eu disse ‘vixe, meu Deus do céu, então é bom mesmo!’”. Apesar das boas vendas em São Cristóvão, ela afirma: “eu vivo do povo de Aracaju e do turista”. Atualmente, seus doces fazem parte do cardápio de lanchonetes e delicatéssens na capital e arredores e não escapam das feiras livres.

 

A resistência da queijadinha em meio aos populares pastéis da Feirinha do Rosa Elze é tema do nosso webdoc. No período que englobou datas como a Consciência Negra, o Outubro Rosa e o Novembro Azul, entrevistamos estudantes, comerciantes e membros de instituições sobre como aquela praça - onde a feira funciona toda quinta-feira das 14h às 22h - também é um espaço imaterial, de convivência. Confira o produto no portal da Zona Contexto.

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