Mulheres lutam pela preservação do artesanato e da cultura local da Barra dos Coqueiros
- Josino Neto
- há 3 dias
- 8 min de leitura
Por: George Lucas e Lauan Brito
Foto: George Lucas

Em meio ao crescimento desenfreado da Barra dos Coqueiros, uma tradição ficou escondida: o artesanato. Entre as décadas de 1970 e 1980, o município passou por um forte movimento hippie, chegando a ser reconhecido como “reduto bicho-grilo”. Foi nesse momento que surgiu a tradição de vender arte manual nas praias e praças da Barra, tendo os hippies como principais responsáveis por essa atividade. Vestígios dessa época podem ser encontrados até hoje no artesanato local, pelo uso de materiais como casca de coco, palha, arame e metais.
Manter essa memória viva não foi uma tarefa fácil. Nesse processo de reurbanização da cidade sergipana, muitos elementos culturais foram perdidos, como destaca a agente cultural Shirley Melo. “Estamos vendo que alguns saberes estão se perdendo com o tempo. Aqui tinha um grupo de quadrilha, além de outros grupos culturais, mas, hoje em dia, quando a gente faz mapeamento, não está encontrando mais eles”.
Uma das responsáveis por impedir que esse fenômeno da perda de saberes tradicionais se alastrasse para outras áreas foi Andreia da Silva, 47, fundadora da Associação de Artesãos da Barra dos Coqueiros (AABC) — por onde já passaram 60 artesãos, mas apenas 20 seguem ativos. Ela entrou para o universo do artesanato já na virada do século, quando encontrou um homem bem-apessoado vendendo biojóias pela Barra: foi amor à primeira vista, confessou.
Imagens do Barracão do Artesão localizado na Praia da Costa, Barra dos Coqueiros.
Fotos: George Lucas e Lauan Brito
Na tentativa de conquistar aquele que, futuramente, viria a se tornar seu companheiro, passou a frequentar mais ativamente a cena cultural local, participando de oficinas até aprender a fazer aquela arte com suas próprias mãos. Quanto mais imergia no artesanato, percebia a prevalência da presença feminina nesse ambiente. Com isso, veio a ideia de juntar um grupo de mulheres artesãs para compartilharem suas experiências.
A partir do início dos anos 2000, ela organizou reuniões, que primeiro eram feitas em uma escola. Depois, foram realocadas para um espaço que alugaram na Praça Santa Bárbara. Foi só em 2008, graças a uma iniciativa do Governo Federal com o Banco do Brasil, que estabeleceram um ponto fixo nas proximidades da Praia da Costa: um barracão construído de taipa e palha.
Com um local para chamar de seu, Andreia se sentiu motivada a convocar novas artesãs para fazer parte da AABC. “Foi através da associação que eu tive a oportunidade de melhorar como pessoa, em minha questão cultural, educacional, financeira e de autonomia. Então, sempre que eu via alguém no ócio, dizia: ‘Vamos lá para a associação’. Quando você está numa coisa boa, você quer que outras pessoas também [estejam]. O meu único interesse era juntar mais pessoas, pois eu tinha medo de que, por falta de gente, a AABC acabasse.”
Uma dessas recrutadas foi Sindaura de Souza, 57, que conheceu Andreia na faculdade. Na época, ela fazia Engenharia de Produção, mas já tinha uma longa história com o artesanato. Quando mais nova, aprendeu a fazer crochê com uma tia. Tinha a atividade só como hobby até receber o convite de Andreia, que lhe mostrou que poderia fazer dinheiro com aquilo.
ARTESANATO COMO REFÚGIO
Por quase uma década, Sindaura viveu apenas da renda do artesanato. No ano passado, arrumou um emprego formal e, desde então, sua atenção se voltou para ele. Todavia, quando sobra tempo, ainda se dedica à arte manual. As peças que mais gosta de fazer são as infantis, além de também produzir saias de macramê e bolsinhas.
Peças confeccionadas pelas artesãs da AABC.
Fotos: George Lucas e Lauan Brito
Sindaura confecciona o material à noite. Aproveita que essa é a hora em que as novelas são exibidas para assistir enquanto adianta o trabalho. A maratona começa por volta das seis da noite e vai até às dez, acompanhando a programação da televisão. E é só o melodrama que a atrai. Não sente o mesmo interesse por filmes.
Já Genalva Marques, 55, prefere fazer artesanato enquanto ouve música, preferencialmente gospel e MPB. Como artesã, seu trabalho é focado nas técnicas de biscuit, feltro e renda de filé. Hoje, já conta com a ajuda da filha adolescente, que está aprendendo a confeccionar suas primeiras peças.
Há algumas gerações, o artesanato virou tradição na família Marques. Isso porque Genalva passou a se interessar pela produção artesanal devido à sua irmã, Flávia Marques, 51. Ela trabalha há mais de duas décadas com a técnica. Antes mesmo do home office se tornar tendência, a mulher já buscava uma alternativa para trabalhar no conforto de sua casa. Foi quando percebeu que o artesanato poderia proporcionar isso.
Começou através de um pedido da mãe, que tinha visto um elefante de pano numa revista e ficou interessada pela peça, a ponto de pedir para que a filha a reproduzisse. Nesse caso, a ideia partiu de uma referência em uma matéria impressa, mas Maria José da Silva, 56, também conhecida como Lia, garante que a inspiração pode surgir de qualquer lugar. “O artesão, ele cria. Cada vez que a gente faz um trabalho, já surge uma nova ideia. Eu posso estar olhando uma revista e, a partir dali, tirar uma ideia diferente”, contou.

Maria José, associada da AABC, se concentra na produção de uma peça de bordado enquanto escuta a reunião.
Foto: George Lucas
Atualmente, o artesanato ocupa, na vida dessas mulheres (os únicos homens que fazem parte da associação são o filho e o marido de Andreia), algo muito além de uma fonte de renda. A atividade funciona como estimulante. “No meu caso, o artesanato serve mais como uma terapia. Mesmo com a chuva e o vento de hoje, você vê que a maioria faz um esforço para estar presente, para não deixar nossa arte morrer”, conta Verônica Patrícia, 49.
Genalva também enxerga de forma parecida. Ela diz que a associação é importante para manter a cabeça em atividade. “Na AABC, a gente é uma família. Sempre estamos nos ajudando. Mesmo que não tenha muito cliente, vale a pena. O importante é não ficar parada, sempre estar exercitando a mente”, comenta.
DIVERSAS FORMAS DE CRIAR
Para cada mulher, o artesanato é também um processo de autoconhecimento, que começa no instante em que ela escolhe sua forma de criar. Diante de milhares de formas, modelos, materiais e técnicas, o gatilho que faz a artista fisgar sua atenção em um tipo específico é, por muitas vezes, quase impossível de se perceber, e, durante sua carreira, essa vocação pode ir mudando e se transformando, para se adaptar às suas necessidades e desejos atuais.
A associada Mazilde, 71, aprendeu a fazer tricô aos 10 anos, com o incentivo de sua mãe, que buscava uma atividade extracurricular para a filha. Até hoje segue produzindo peças, mas com um foco diferente. Por sua idade avançada e limitações naturais, optou por produzir peças para bebês, que oferecem uma facilidade maior por seu tamanho reduzido. “Eu entrei na associação vendendo laço e depois comecei a fazer as peças de tricô para bebês, porque são peças pequenas, aí começo e termino logo, e, se a peça for grande, enjoa, enjoa até na cor.”
Outra forma de artesanato que ganhou bastante interesse por parte das artesãs é a Renda Filé. Esse estilo é característico da Barra dos Coqueiros, sendo o único município do estado que a produz, mas sua origem vem dos meados do século XVI, na Europa. Os primeiros registros apontam que sua chegada ao Brasil se deu na era colonial.

Colete produzido com a técnica filé, bordado que já se tornou identidade cultural da Barra dos Coqueiros.
Foto: George Lucas
Apesar de ser conhecido por todo o Brasil, ele possui uma força maior na região Nordeste e, principalmente, na parte litorânea. Em Alagoas, sua força é tão expressiva entre as comunidades pesqueiras que, em 2014, foi considerado patrimônio imaterial do estado como forma de reconhecimento da sua importância na cultura alagoana.
Com essa forte tradição no estado vizinho, em meados de 2005 foi oferecido um curso de Renda Filé em Sergipe. Uma equipe de professoras alagoanas ministrou as aulas na Praia da Costa, como iniciativa da Associação de Bares e Moradores do local. Essa foi a porta de entrada para muitas artesãs que buscavam uma nova forma de transmitir sua arte e conseguir alguma renda extra.
Foi o caso de Josefa Lima, 62, que, apesar de praticar crochê desde os 15 anos, se encontrou no curso e se apaixonou. “O filé empolga muito a gente, você quer ver como vai ficar as cores da linha que você jogou para ver a peça pronta, tira até o sono”, contou a artesã que foi uma das alunas da oficina.
Apesar da forte influência alagoana, o bordado filé da Barra tem características próprias adquiridas ao longo de sua história no estado Sergipano. Suas cores vibrantes e o trabalho minucioso de entrelaçar a linha na rede de malha (o "filé") conferem um toque único, o que tem feito com que a arte ganhe destaque fora do estado.
A INVISÍVEL ARTE DE PERSISTIR
Mesmo sendo parte fundamental da história cultural da Barra dos Coqueiros, essas artesãs constantemente são afligidas pela sensação de falta de reconhecimento em diversos âmbitos. O barracão do artesão, localizado ao lado do monumento do caranguejo na Praia da Costa, que funciona como ponto de encontro da associação e venda dos produtos produzidos, está, desde sua construção em 2008, com a mesma estrutura.
Ao observar com atenção, é possível ver o tronco de coqueiro gasto, já que foi colocado há 16 anos e continua sustentando toda a estrutura até hoje. Essa falta de estrutura do local afeta tanto a convivência das artesãs como o comércio de suas artes. “A gente está aqui na resistência e damos um jeitinho, mas podíamos estar bem melhor, né? Se tivesse um local melhor... aqui não tem estrutura de banheiro, não tem o básico que é necessário para a gente poder trabalhar”, explica a diretora da associação, Verônica Patrícia.
Existe uma expectativa de que a sede da AABC seja movida para a Praça do Turista, uma vez que sua construção seja concluída. A obra, que teve início no ano de 2022, com um investimento inicial de R$ 483.566,10 e um aditivo de R$ 105.582,57, na gestão do então prefeito Alberto Macedo, tinha previsão de conclusão para abril deste ano. Porém, basta focar o olhar no local para ver que a única coisa visível são tapumes de alumínio cobrindo toda a área.
O descaso não fica apenas restrito à acomodação da associação. A falta de eventos e de locais para a divulgação e comercialização dos produtos produzidos também é algo que atrapalha a propagação do trabalho. Sem essa vitrine, o movimento enfraquece e acaba correndo o risco de ser extinto no município.
Delma, artesã que participa da AABC há 8 anos, descreve a dura realidade em que as artesãs foram colocadas involuntariamente. “Aqui somos invisíveis, ninguém enxerga a gente, é uma batalha muito grande. Aqui ficou muito tomado pelos bares. Na Praia da Costa não tem comércio, o único que você encontra se você sair aqui é o barracão do artesão”.
A secretária de Cultura da Barra dos Coqueiros, Rita Freire, garantiu que a construção do novo espaço continua sendo prioridade da atual gestão, desde que perceberam que a sede atual da associação está deteriorada. De acordo com ela, a nova instalação resolverá parte do problema da falta de visibilidade.
“O projeto vai ser ali na orla da Praia da Costa, bem perto do espaço que eles já tinham. Mas agora com todas as adaptações necessárias para criar um ambiente seguro e prazeroso”, conta Rita. “A ideia é gerar bem-estar tanto para eles quanto para os turistas e, assim, fomentar a atividade local”, completa.
Outra medida tomada pela Prefeitura Municipal foi a solicitação de um curso do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para as artesãs, com mentoria de um estilista. O objetivo é levar conhecimento a essas profissionais e aumentar o leque de possibilidades delas com a sua própria arte, unindo as técnicas que já dominam, como o crochê e o bordado filé, a novos métodos de costura.
Apesar das adversidades enfrentadas nos 18 anos de existência da AABC, a paixão pela arte continua sendo a força motriz das 20 artesãs. Para elas, o trabalho manual transcende a simples produção: se tornou ferramenta de resiliência e autoestima e uma forma de expressar suas histórias e lutas através de cada ponto e cada cor. É ali que, entre agulhas e fios, elas compartilham experiências, oferecem apoio mútuo e reafirmam a identidade cultural da Barra dos Coqueiros.
Ouça a reportagem sonora "O Legado de Andreia: Fios de Luta e União"
Veja o webstories "Conheça o Barracão do Artesão"

























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