Invisíveis e abandonadas, pessoas com deficiência têm acessibilidade negligenciada na Barra
- Josino Neto
- há 5 dias
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Por: Carolina Cardoso, Letícia Amarante e Sayonara Gomes
Foto: Sayonara Gomes

A insuficiência do poder público na garantia de direitos de frações vulneráveis da população é constante. E na Barra dos Coqueiros não é diferente. Com o crescimento da cidade acelerado, chama atenção a falta de mobilidade urbana acessível para Pessoa com Deficiência (PcDs), e pessoas com mobilidade reduzida, como idosos e acidentados. Com isso, essas pessoas encontram obstáculos à sua acessibilidade, direito garantido pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência regido pela Lei, nacional, n°13.146/2015.
A lei assegura os princípios básicos da acessibilidade nas vias públicas, meios de transporte, prédios e espaços urbanos. Na prática, alguns elementos são essenciais, como calçadas regulares, sinalização adequada em rotatórias, rampas, elevadores nos edifícios, ciclovias e transporte público acessível.
Presente na Constituição Federal de 1988, o direito à cidade impõe medidas relacionadas à infraestrutura que são de obrigação das prefeituras e suas respectivas secretarias municipais de planejamento urbano, exigindo em qualquer comunidade parâmetros mínimos de acessibilidade para garantir bem-estar e equidade à Pessoa com Deficiência (PcD) e a população geral. Essa regulamentação é uma exigência global, obrigatória tanto nas construções públicas quanto privadas.
Na Barra, a gestão pública ainda peca quando o assunto é mobilidade acessível. Em bairros tradicionais da cidade, como os localizados na região do centro, onde reside a população mais idosa. O Estatuto da Cidade, regido pela Lei nº 10.257/2001, ressalta o direito à mobilidade, com o objetivo de desenvolver a urbanização de forma inclusiva.
A pesquisadora de mobilidade acessível, Marília Cavalcante, destaca a importância de uma cidade acessível “porque se [alguém] tem uma deficiência física ou visual, ela vai depender de outra pessoa para carregar ela. Se você não tem acessibilidade, você não tem autonomia. E a gente fala assim, os dois pressupostos da acessibilidade: autonomia e segurança”.
A falta de acessibilidade começa em um dos marcos da Barra dos Coqueiros, a Praça Santa Luzia, que carrega o nome da padroeira da visão e dos cegos e, coincidentemente, também da cidade. No entanto, ao chegar na praça, percebemos a falta de recursos de acessibilidade para deficientes visuais. Apesar de possuir diversas rampas, o local não apresenta piso tátil.
“Porque se [alguém] tem uma deficiência física ou visual, ela vai depender de outra pessoa para carregar ela. Se você não tem acessibilidade, você não tem autonomia.” Marília Cavalcante, pesquisadora
SUPORTE PRECÁRIO E DIREITOS INVISÍVEIS
Preparar-se para ir treinar na academia há poucos metros da moradia, é uma realidade comum, mas para Carlos Alberto, uma pessoa com baixa visão, as dificuldades são rotineiras. No primeiro semáforo da rodovia José de Campos, ele espera o aviso de que pode atravessar e torce para que os motoristas respeitem o sinal. Em direção ao ponto de ônibus, só há um piso tátil degradado para se localizar. Chegando ao local, espera o ônibus certo, e, ao entrar, confirma com o motorista se pegou a linha correta. Ao notar um banco sinalizado para PcD vazio, senta-se.
Carlos, que tem baixa visão, posa com vestimenta de Goalball. Enaldo, deficiente visual, está com traje de Judô. Jeane, cadeirante e comerciante ambulante, espera ônibus no terminal. Fotos 1 a 4: Sayonara Gomes Foto 5: Arquivo Pessoal
Até aquele momento, Carlos segue tranquilo. Sua preocupação está nas ruas, onde anda pelo meio fio, evitando as calçadas, já que o que seria adequado se torna inacessível. “Algumas calçadas vocês estão vendo que não tem como [caminhar], as calçadas são irregulares, altas e baixas”, relata. Sem opção, caminha próximo às calçadas, e apesar da retinose pigmentar e miopia, enxerga a faixa branca e consegue usá-la como guia para se locomover. “A gente geralmente escolhe a rua, já que não existe calçada livre, acessível”, comenta.
Carlos não é o único com impasses na mobilidade. Enaldo Costa, deficiente visual, mora há 18 anos na Barra e tentou por anos criar uma iniciativa de assistência, mas ao buscar os órgãos públicos, não obteve resposta. “Pode ser criado o conselho em todos os municípios, e tipo assim, minha tentativa foi totalmente frustrada. A pessoa que tá ali à frente, nem respondeu meus áudios”. Ele expõe a insegurança ao andar, uma vez que está com o celular para se localizar, tem medo que, ao notarem a exposição, seja roubado e fique sem condições de locomoção.
Carlos e Enaldo, ao saírem de casa, compartilham os mesmos obstáculos, ainda que na Barra exista um número significativo de PcDs. A escassez da mobilidade urbana acessível afeta diretamente na rotina e a falta da instituição de apoio no município piora a situação. A Secretaria de Assistência Social direcionou a equipe de reportagem para o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para tratar dessa temática.
A coordenadora do CRAS, Edenya Menezes, tenta explicar a inexistência de uma instância representativa de PCDs. “Estou organizando o Conselho da pessoa com deficiência, que existe no município e estava desativado. Tá voltando agora”, comenta. Ela está buscando rotas de acesso a instituições de apoio para reaver o conselho, que entrará em funcionamento ainda em agosto.
Enquanto isso, ela alega que o CRAS oferece direcionamento para estas pessoas terem acesso a uma parcela dos seus direitos e ela ensina, como realizar o cadastro para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), concedido a idosos ou pessoas com deficiência. De acordo com Edenya, o valor deste auxílio é de um salário mínimo.
Atualmente não existe um mapeamento concreto de quantos PcDs residem na Barra, mas Edenya indica que esse levantamento é realizado pelo Cadastro Único. “Temos o número de pessoas que são cadastradas na assistência social ou que necessitam de algum programa social que necessite do número do NIS”, fala. De acordo com a gerente da Vigilância Socioassistencial, Isaides, a estimativa atualizada é de 1.370 PcDs. No entanto, não existem dados de outras fontes que englobam outros públicos.
VITIMISMO OU PRECONCEITO? REALIDADE DE EXCLUSÃO

Descrição: A personagem Jeane Ferreira, cadeirante, está visualmente ao lado de um banco no terminal da Barra dos Coqueiros. Em seu colo carrega uma cesta de doces e placa de venda.
O dever e o direito de equidade silenciado para as pessoas que buscam autonomia ao caminhar pela cidade.
Foto: Sayonara Gomes
Filha da Barra dos Coqueiros, Jeane Ferreira é cadeirante há 13 anos e, como vendedora ambulante, vende balas para complementar a renda. Jeane relata que a vida de cadeirante não é fácil, pois mora numa área considerada periférica, onde as ruas são muitas vezes inacessíveis e esburacadas, o que acaba tirando sua autonomia. Além dos obstáculos de não ter uma cadeira motorizada, depende diariamente do marido para se locomover.
Outro desafio envolve o transporte coletivo. Dona Maria Helena, 60 anos, reclama dos degraus do ônibus, que são altos para quem possui mobilidade reduzida. “O ruim é para subir. No ônibus eu tenho muita dificuldade e estou com medo, porquê eu já tenho esse braço operado”, diz. Já Carlos fica feliz com as melhorias da nova frota de transporte coletivo, mas lembra que esse avanço também precisa chegar nos pontos de ônibus.
As leis para pessoas com deficiência no Brasil têm o objetivo de garantir a inclusão e a proteção de direitos dessa população, mas, na prática, isso não acontece na totalidade. Através dessas, visa a inclusão social e a cidadania dessas pessoas, além de assegurar e promover, em condições de equidade, o exercício dos direitos fundamentais.
A Lei nº10.098/2000, estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Ainda assim, é importante que a luta por inclusão seja de todos, pois a falta de acessibilidade afeta também quem possui mobilidade reduzida temporária ou está apenas envelhecendo.
Para que leis voltadas ao bem-estar e à acessibilidade dos PcDs sejam garantidas no dia a dia, o Plano Diretor é essencial, pois estabelece diretrizes e normas para o desenvolvimento urbano dos municípios, incluindo medidas direcionadas para infraestrutura acessível. Todavia a última atualização do plano da cidade ocorreu em 2010.
De acordo com o arquiteto Robson Marques, que atua na Secretaria de Infraestrutura e Urbanismo da Barra, o Plano Diretor tem data de renovação.“Ele foi atualizado em 2010. E vai ser agora, era para ser em 2020, enfim. Mas a gente está trabalhando nele já. Estamos analisando”, afirma. A previsão é para o mês de outubro, e pela regulamentação, isso será feito após 5 anos de atraso.
Como a cidade possui ruas estreitas e passeios públicos irregulares, uma alternativa adotada pela prefeitura foi o alongamento das calçadas nas vias. O crescimento da cidade tem trazido melhorias, mas há desafios, que ainda não dão autonomia para quem possui algum tipo de deficiência ou tem a mobilidade reduzida.
PARA ALÉM DA EXCLUSÃO

Bicicletas tomando o espaço de rampa para cadeirante, descaso com a acessibilidade de PcDs nas vias.
Foto: Sayonara Gomes
Para além dos desafios arquitetônicos enfrentados pelas pessoas com deficiência em sua rotina, existe ainda outro tipo de barreira que não pode ser vista ou tocada, mas que se faz presente e impossível de ignorar: o preconceito. Barreira atitudinal é a expressão utilizada para se referir a qualquer comportamento ou atitude que impeça a participação social plena de PcDs, segundo a Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
No cotidiano, essas barreiras podem tomar várias formas, às vezes até físicas, como conta Carlos. Para ele, esses obstáculos aparecem na forma de mesas de bar ocupando calçadas e vendedores ambulantes impedindo a passagem. Porém, os obstáculos mais difíceis de enfrentar são os imateriais, como a falta de paciência e o riso. A dificuldade de Carlos em lidar com veículos em alta velocidade e calçadas de casas irregulares apenas revela o quão pouco a população observa as necessidades de PcDs, por vezes condenando-os a andar em um limbo.
Esses entraves não se limitam ao deslocamento, manifestando também em atividades rotineiras como ir à mercearia ou a um show, como no caso de Jeane. “Eu mesmo não vou mais meu esposo, porque além de não ter lugar pra mim, as pessoa não respeita. Sai atropelando minha cadeira, não tem lugar pros cadeirantes ficar”, relata.
Carlos também comenta sobre o desânimo em sair de casa. Além da falta de paciência, o riso continua como um impedimento para PcDs na rotina. Mesmo quando identificam sua baixa visão, ainda ridicularizam tropeços que ocorrem pela falta de acessibilidade. “Na minha associação, você vai ver vários relatos de pessoas que estão com depressão em casa, justamente por causa disso”, diz. A vulnerabilidade na saúde mental do grupo preocupa, pois 29,6% das notificações de autolesões entre 2010 e 2021 envolveram PcDs, segundo boletim do Ministério da Saúde.
Contudo, engana-se quem pensa que essa tem que ser a realidade em todo lugar. Carlos cita uma experiência em que pôde fazer compras tranquilo com auxílio de uma funcionária em um supermercado em São Luís, no Maranhão. Além de ações como essa, ele também encontrou no esporte um lugar de potência. O Goalball foi criado especialmente para aqueles com deficiência visual e mostrou-lhe que o esporte é para todos. Hoje, além de ser parte do time da Associação dos Deficientes Visuais de Sergipe (Adevise), também leva a prática para a Barra e outras cidades.
Igualmente, Enaldo revela que os PcDs têm que criar “na marra” maior autonomia, impulsionada, por exemplo, pela tecnologia, como aplicativos de transporte. Ele declara que “as pessoas com deficiência estão começando a sair de casa” e ocupar espaços em que não costumavam ser vistas, apesar do estranhamento da população. E cita a surpresa das pessoas ao verem o passeio turístico que organizou com um grupo de 100 pessoas cegas. Afirma que ainda falta um olhar para os PcDs enquanto pessoas que estão ali para acessar todos os meios de lazer que quiserem.
Por fim, a Barra dos Coqueiros está em crescimento de população, de infraestrutura, mas para quem? Jeane, Enaldo e Carlos trazem apenas algumas vivências de como é morar em uma cidade que não foi pensada para pessoas com deficiência. A falta de acessibilidade permeia constantemente inúmeros aspectos de suas vidas, mas suas dificuldades são pouco consideradas a ponto de proporcionar uma autonomia real. A cidade agora tem a oportunidade de mudar seu olhar e expandir-se para todos.
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Veja o webstories "Um caminho de obstáculos"















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