Por: Ana Beatriz Santos, Marcelo Ramos e Paula Maryana Pereira
© ANA BEATRIZ SANTOS / CONTEXTO
“Precisa acabar com essa história de que cultura é uma coisa extraordinária. Cultura é ordinária”, afirmou o cantor Gilberto Gil. Ditado durante uma entrevista em 2003, a declaração capturou o significado corrente no senso comum de um pensamento que associa a produção cultural a um certo elitismo, àquilo que é elevado ou até mesmo raro. O compositor baiano que marcou, e ainda marca, gerações incita qualquer um a repensar a não excepcionalidade da cultura que está enraizada nas ações mais simples e comuns da vida, permeia o cotidiano individual de cada um.
A cultura é a criação que transcende o tempo e tece a essência do espírito humano em um emaranhado de significados, valores e expressões. Dessa forma, é o fator de fortalecimento da identidade de um povo. O fio invisível que une passado e presente em uma dança eterna de significados. Mais que um simples conjunto de tradições, é o solo fértil onde as sementes se tornam sonhos. Através dela, o indivíduo expressa sua liberdade com mais intensidade, transformando o que lhe cerca e, ao mesmo tempo, sendo transformada por ele mesmo.
Nesse sentido, a transformação causada pelo acesso à cultura na vida de cada morador que tem esse direito assegurado em Nossa Senhora do Socorro, evidencia a possibilidade da cidade ser mais que um local onde seus cidadãos apenas dormem. O município é comumente encarado apenas como moradia para quem vive a maior parte da sua rotina na capital sergipana, seja estudante ou trabalhador. Quando na verdade, é um poço cultural repleto de historicidade com uma sociedade que anseia por consumir cada gota dessa água.
Tradição Viva
As batidas do zabumba, o sapateado dos pés no chão, os versos improvisados e os movimentos ritmados são características que definem a manifestação cultural do Samba de Coco. Uma dança de origem africana que tem influências indígenas e quilombolas, e se tornou cultura e tradição no estado de Sergipe. Essa atividade originou-se quando os escravos fugiam das senzalas, se refugiavam nos quilombos e cantavam ao praticar o ritual da quebra de coco.
O grupo Samba de Coco da Taiçoca de Fora, localizado no bairro de mesmo nome na cidade Nossa Senhora do Socorro, foi criado há mais de 200 anos pelos antepassados dessa comunidade e se reuniam para celebrar a vida, a colheita e a espiritualidade, e até os dias atuais eles mantém essa cultura viva na região. “Quando minha mãe [Dona Cenira, de 94 anos] entrou no grupo, com oito anos, o samba já existia, e tinham pessoas de 80 anos, que já dançavam, então a gente costuma dizer que vamos contar a história bicentenária do samba de coco”, explica Rejane Vieira, uma das integrantes do grupo.
Para manter essa tradição ativa no município, o grupo Samba de Coco da Taiçoca de Fora vem transmitindo seus ensinamentos de geração em geração durante os últimos dois séculos, unindo famílias e vizinhos para cantar e dançar nas rodas de coco, que acontecem no arraial, nas praças e nas festas locais, fortalecendo cada vez mais os laços comunitários. “Hoje os tocadores de samba de coco são pessoas da família, mas a gente procura resgatar pessoas da comunidade também, pra poder participar junto com a gente e dar esse apoio. Porque é muito difícil a gente poder manter sem ter quem sustente junto com a gente”, conta Edilverto Santos, neto e membro da equipe.
© PAULA MARYANA PEREIRA / CONTEXTO
Dona Cenira cantando música feita em sua homenagem por seus netos, também participantes das rodas de coco
Apesar de atualmente o grupo contar com uma boa infraestrutura para realizar suas atividades, Dona Cenira de 94 anos, que foi a criança pioneira no Samba de Coco da Taiçoca de Fora, conta que nem sempre foi assim, antigamente eles contavam com a ajuda da comunidade. Ela também explicou que, ao longo do tempo, as pessoas que ajudavam o grupo vieram a falecer, mas o prefeito Fábio Henrique, em 2008, ajudou a construir uma melhor infraestrutura para o seu arraial, que permanece preservado atualmente.
“Esse arraial não era assim, um trazia um pau outro trazia outro, as mulheres viravam as palhas e (a gente) tinha que comprar uma lona para cobrir tudo. Um vinha dava uma ajuda, outro vinha também para ajudar o arraial. E em noite de são joão todo mundo se divertia”, relata Dona Cenira.
Fica clara a necessidade do Governo Municipal de fornecer investimentos em grupos folclóricos que ajudam a manter viva a cultura na cidade e no estado. Além da comunidade da Taiçoca de Fora permanecer transmitindo ensinamentos de gerações passadas para as gerações futuras, ela também precisa de auxílios financeiros e de visibilidade midiática para fomentar a valorização dessa atividade. “Antigamente era mais fácil a comunidade ajudar do que a Prefeitura”, diz Rejane. “Hoje em dia eles estão sempre atendendo nossas necessidades, que não suprem tudo, mas a gente quer permanecer com essa parceria”, afirma a neta mais velha de Dona Cenira.
© PAULA MARYANA PEREIRA / CONTEXTO
Com seu legado cada vez mais vivo, Dona Cenira foi o início da manifestação cultural que é história no estado
Espaço de Transformação
Sentir os batimentos acelerados, as bochechas cansadas de tanto sorrirem e o peito estufado com adrenalina são sensações rotineiras na vida dos moradores envolvidos com o cotidiano da Praça da Cultura Cantor Pedro Rogério. Sejam os skatistas que não param de realizar manobras nas pistas ou os atletas de diferentes esportes que além dos jogos, também disputam a reserva da quadra. O sentimento é o mesmo para quem decide movimentar o corpo nas diferentes danças presentes, que variam dos estilos mais clássicos, como o ballet, até aqueles com cunho mais fitness, como o fitdance.
Inaugurada no ano de 2014, a Praça da Cultura Cantor Pedro Rogério faz parte do Programa de Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs) do Governo Federal. A prática é realizada por meio da integração de atividades e ações culturais, práticas esportivas e de lazer e serviços socioassistenciais através de um espaço de acesso público. Com o intuito de fortalecer o elo entre a comunidade e as prefeituras, a gestão da iniciativa é compartilhada entre essas duas partes.
Atualmente, o responsável pelo uso e programação dos equipamentos junto ao agendamento de eventos é o Alex Sandro Carvalho. Quando ainda garoto, vivenciou a experiência de reconhecer a cultura como um aspecto intrínseco à vida. Fruto de um projeto social que trabalhava a capoeira como ferramenta social, o diretor cultura reafirma a importância de iniciativas como essa. “É a cultura do local que lhe transforma. Faz com que você veja as coisas de uma maneira diferente. Um idealismo diferente”, comenta.
© MARCELO RAMOS e PAULA MARYANA PEREIRA / CONTEXTO
Influenciado pela cultura, Alex compreende a diferença de espaços públicos que assegurem esse direito
Morador de Nossa Senhora do Socorro desde que se entende por gente, Lucas Emmanuel costuma frequentar a Praça semanalmente para usufruir dos espaços que pertencem a todos. Após essas mudanças nas atividades e ações culturais, ele comenta que o ambiente além de mais seguro, tornou-se também mais democrático. Todavia, apesar de reconhecer os benefícios a comunidade, o socorrense não deixa transparecer o desejo por mais eventos que valorizem a arte das pessoas de seu município. “Falta promover mais intervenções artísticas e apresentações dos artistas locais. A gente tem muitas pessoas com vontade de falar através da arte e da cultura”.
No entanto, esse problema não é visto somente na percepção dos olhos de quem frequenta a Praça. Alex concorda que ainda é difícil realizar cultura no município de Nossa Senhora de Socorro. A falta de um espaço público que viabilize os artistas locais a realizarem apresentações pagas é uma dificuldade recorrente no âmbito cultural socorrense. “Imagina você é um artista, você toca maravilhosamente bem. E você quer realizar um show. Há custo para fazer aquele show”, relatou.
Com essa falta de investimentos públicos sediados pelas prefeituras, o obstáculo do retorno financeiro é, infelizmente, uma constância para quem decide realizar apresentações nos espaços promovidos pela Praça. “Socorro respira cultura. Basta ter uma política voltada para a cultura municipal. Tanto daqui quanto ao do Estado”, complementa Alex. Há, então, uma contradição presente no município de Nossa Senhora do Socorro. É uma cidade que busca assegurar o direito à cultura, entretanto, ao mesmo tempo, não oferece meios para tornar possível uma escolha profissional pautada na arte.
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