Do outro lado do rio, tototós sustentam e resistem
- Josino Neto
- há 5 dias
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Por: Aline Souto, Gabrielle Lima e Yasmim Carvalho
Foto: Gabrielle Lima

A palavra “patrimônio” se refere a um conjunto de bens, direitos e obrigações de valor econômico que pertencem a uma pessoa, empresa ou entidade. No entanto, o conceito vai além do financeiro. Ao falar sobre patrimônio cultural, estão inclusos os bens materiais e imateriais que carregam simbologias da identidade e da memória coletiva de um povo ou região. Mas o que acontece quando um patrimônio não é valorizado?
Em 2011, a deputada Ana Lúcia (PT/Sergipe) idealizou o projeto de lei que resultou na Lei Ordinária Nº 7.320, sancionada pelo então governador do estado, Marcelo Déda. A lei declara as embarcações tototós como patrimônio cultural de Sergipe. O objetivo é assegurar a preservação, manutenção e valorização dessas embarcações, que há décadas fazem parte do imaginário coletivo do povo sergipano.
Mas, quase 14 anos depois da aprovação da lei, ao desembarcar no Terminal Marítimo das Tototós, o descaso é evidente. A falta de estrutura e assistência aos barqueiros, que há anos dedicam sua vida à profissão, é contraditória com o que, de início, teria sido assegurado no projeto de Ana Lúcia.
As tototós surgiram por volta da década de 1920, mas seu uso se consolidou a partir de 1940, especialmente na Ilha de Santa Luzia, atual Barra dos Coqueiros. Na época, por não haver ponte ligando Aracaju a Barra, a travessia era nas embarcações ou, em alguns casos, a nado. Por serem maiores, mais rápidas e capazes de transportar muitas pessoas ao mesmo tempo, as tototós se tornaram essenciais para a mobilidade local.
O historiador Jairton Rodrigues ressalta a importância dessas embarcações para a cultura sergipana: “As tototós fazem parte da nossa identidade, assim como o amendoim. Em qualquer lugar do Brasil, as pessoas não têm essa mesma cultura. Ele é patrimônio porque faz parte da nossa tradição”.
As tototós permanecem em atividade com um número menor de canoeiros e embarcações. Trata-se de uma resistência diária, fruto do esforço de quem ainda se mantém com o valor das passagens de cada travessia. Um patrimônio esquecido, mas que há décadas transporta e sustenta vidas.
CONTRA A MARÉ
Para esta reportagem, há uma palavra-chave: resistência; ou seja, o ato de persistir sob qualquer circunstância. O termo é referenciado, inclusive, na Lei Ordinária Nº 7.320, que determina: “As embarcações Tototó sempre desempenharam importante papel no transporte de passageiros pelas bacias hidrográficas de Sergipe, não devendo ser esquecidas pelo povo sergipano”. Porém, antes da tototó em si, existe uma figura que rema contra a maré do esquecimento e sequer é mencionada pela lei: o canoeiro. O único arquivo que explica o ofício é a cartilha “Tototó: Embarcações tradicionais do estuário do rio Sergipe”, produzida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2015. Segundo o arquivo, os totozeiros se dividem em popeiros e proeiros. O primeiro equivale ao comandante, que conduz a tototó e verifica o óleo e as condições da canoa. Já o segundo lembra a função do marinheiro, que cobra as passagens, limpa as tototós e auxilia os passageiros.
A poucos metros do Mercado Municipal de Aracaju, no Terminal da Tototó, uma buzina alta anuncia a próxima saída para a Barra dos Coqueiros: “vai atravessar?”, pergunta André Luiz, 46, aos que se aproximam do porto. Há mais de três anos essa pergunta é feita quase involuntariamente pelo marinheiro, que foi influenciado pelos irmãos a entrar no ofício e hoje realiza a travessia diariamente, normalmente das 5h45 às 19h, junto aos colegas da Barra.
Mesmo diante das inúmeras dificuldades enfrentadas desde a construção da ponte Aracaju-Barra, os barqueiros mantêm viva a tradição e seguem diariamente no ofício de transportar passageiros pelo Rio Sergipe
Fotos: Aline Souto, Gabrielle Lima e Yasmim Carvalho
André, assim como os demais, possui a carteira da Marinha, documento exigido para ser canoeiro. Vale ressaltar que o ofício não oferece carteira assinada e que não assegura direitos trabalhistas. O marinheiro afirma que essa insegurança é um dos motivos para a diminuição de barqueiros em atividade. A equipe de reportagem contatou a Capitania dos Portos para coletar dados sobre a quantidade de canoeiros ao longo da história, mas não obteve retorno.
Ao ser perguntado sobre seu sentimento quanto ao patrimônio, André Luiz afirma: “Diz que é um patrimônio, mas até hoje ‘eles’ não chegam para conversar com o presidente [da associação] para saber se precisamos de uma lata de tinta”. De acordo com a geógrafa Acácia Maria, as necessidades não se restringem a latas de tinta, mas também à falta de reconhecimento do ofício como um modo de vida, conforme cartilha do IPHAN.
A frustração quanto à falta de apoio é comum entre os canoeiros. O atual presidente da Associação das Tototós (ASTOTOTÓS), João Eduardo Nascimento, relata dificuldades no custeio. Após a construção da ponte Construtor João Alves em 2006, as tototós, que antes levavam mais de 300 passageiros em uma manhã comum, passaram a levar entre 50 a 100 pessoas nos melhores (e raros) dias.
A passagem custa R$ 3 e o saldo diário é dividido igualmente pelos tripulantes de uma embarcação (que costumam ser três), além dos descontos com materiais para manutenção: gasolina, óleo e tinta, por exemplo. Sem recursos da Barra, de Aracaju ou de Sergipe, a Associação sobrevive por meio dos próprios canoeiros, que pagam R$50 todo mês como um fundo emergencial.
Foto: Aline Souto

Na tentativa de complementar a renda, os canoeiros recorrem a alternativas. Márcio Santos, 42, relata que os R$ 600 que ganha ao mês sendo marinheiro não são suficientes para sustentar a família. Por isso, ele faz a travessia Aracaju-Barra na semana e, aos finais de semana, trabalha como barqueiro no Mosqueiro, além de vender artigos de moda e pizza brotinho com a esposa.
Apesar das dificuldades, a maioria dos canoeiros não trocaria o ofício. Márcio vive à beira do Rio Sergipe desde os 14 anos e não se imagina em outro lugar. Hugo Henrique é filho do barqueiro mais antigo em atividade, Pedro da embarcação SergipeStar, e sorri ao relatar que “a embarcação é como se fosse uma parte da família, a gente não deixa que a tradição acabe por isso”. Já André Luiz conta sobre o seu momento preferido na tototó: a neblina às 5h45 e o pôr do sol ao final de mais um dia.
DO OUTRO LADO EM 5 MINUTOS
Ao conversar com os barqueiros, uma surpresa: a maioria dos passageiros são moradores da Barra que atravessam para trabalhar em Aracaju. Mesmo com a opção de utilizar carros de aplicativo, ônibus ou veículos próprios, a tototó é a primeira opção para muitos usuários que apreciam a praticidade, velocidade e economia do transporte.
“Mais rápido, mais barato e eu não preciso vir em pé”, diz Larissa Sampaio, 29, sobre não precisar pegar um ônibus lotado, que pode levar meia hora para fazer a mesma rota que a tototó faz em cinco minutos. Por isso, a barra-coqueirense criou o costume de atravessar o Rio Sergipe com a mãe “desde que se conhece por gente”.
Já a guia de turismo Ligiane Prado mora na Barra há oito anos e prefere atravessar de tototó para apreciar a vista do rio. “É tão bom, é uma modalidade que você vem de lá para cá. É satisfatório”, indica. Mas, como guia, Ligiane reforça a falta de incentivo turístico para as tototós: “Elas estão sendo esquecidas. Se não fosse pelos marinheiros, que permanecem resistindo mesmo ganhando pouco, as travessias Aracaju-Barra já teriam terminado”.
DA FALTA DE REGISTROS AO ESQUECIMENTO
O maior indicativo do apagamento é a falta de registros. A equipe do Zona Contexto indagou o Arquivo Público de Sergipe e as Secretarias de Turismo e de Cultura da Barra dos Coqueiros sobre registros fotográficos, videográficos ou até mesmo documentais do patrimônio, porém, a resposta é de que esses dados não foram levantados; ou seja, não existem.
Curiosamente, o papel de parede da sala da Secretaria de Turismo é uma canoa, o que relembra a indignação do barqueiro Hugo Henrique: “Tototó, para os municípios, só serve de papel de parede para as secretarias. Ninguém olha pela gente”. A fala é comum entre os totozeiros, que são descrentes quanto às mudanças práticas.
"Tototó, para os municípios, só serve de papel de parede para as secretarias. Ninguém olha pela gente." Hugo Henrique, filho de Pedro.
A gerente administrativa e operacional da Secretaria de Turismo da Barra, Sídia Oliveira, é filha de canoeiro e cresceu andando de tototó. Ao ser perguntada sobre a ausência de registros, ela afirma que a nova gestão está interessada em colher arquivos e dados para catalogar a história do patrimônio. Ainda não existe uma previsão de início para essa ação.
Além disso, o turismo é apontado como uma forma de valorizar as tototós e proteger a renda dos barqueiros. A gerente Sídia contou que o objetivo da Secretaria é relembrar a potência da embarcação a partir de um roteiro turístico que percorrerá o Rio Sergipe, com paradas na Barra, Nossa Senhora do Socorro, Aracaju e Santo Amaro das Brotas. Ela informa que, até o momento, foram realizadas reuniões para discutir quais pontos turísticos entram no roteiro. A expectativa é de que o plano entre em vigor a partir de 2026.
Atualmente, todos os reparos necessários para o funcionamento da canoa são feitos pelos proprietários. “A gente custeia tudo, da tinta ao prego. E muitas das vezes aprendemos a fazer por não termos condições de pagar”, relata o marinheiro Hugo Henrique.
A gerente administrativa reconhece que os barqueiros necessitam do amparo público. A Orla da Rua da Frente, onde fica o atracadouro das tototós na Barra, não teve a sua reforma concluída na gestão anterior e, por motivos de regularização, a obra só deve ser retomada em 2026. A revitalização teve início em 2023, foi avaliada em torno de R$ 8,5 milhões e a previsão de finalização era em 2024. Hoje, o atracadouro segue inapropriado para os barqueiros e os passageiros.
A situação em Aracaju também demonstra o abandono por parte das autoridades. Sem uma previsão de reforma, os barqueiros chamam atenção para a escada de embarque/desembarque. Em vez de facilitar o acesso à tototó, ela apresenta riscos de queda aos passageiros, especialmente os idosos.

As escadas de embarque e desembarque apresentam grande desnível, limo e desgaste pelo tempo.
Foto: Gabrielle Lima
O marinheiro André comenta sobre a vontade de, um dia, não ter que cobrar a passagem de idosos e que as canoas sejam uma alternativa para aqueles que não têm condições. Seu desejo é que as prefeituras de Aracaju e da Barra dos Coqueiros, em conjunto com a Associação das Tototós, cheguem a um acordo e ofereçam uma ajuda de custo para viabilizar a passagem livre para os idosos.
A Secretaria da Cultura da Barra dos Coqueiros informou que não há verba destinada para preservação e fomento das tototós. No momento, existem apenas projetos para construção de um píer e articulações com outras secretarias para uma rota turística. O descaso com a cultura sergipana é um apagamento da história que, ao invés de ser perpetuada, é desencorajada a existir.
O QUE RESTA É RESISTIR!
O sentimento de abandono é corriqueiro, tanto com a história das tototós, quanto com os canoeiros que persistem na continuidade da atividade. Para eles, a incerteza sobre a renda cresce a cada viagem e a ajuda entre os colegas surge na tentativa de suprir a falta de políticas públicas. Um patrimônio esquecido, que resiste não pelo sentido bonito da palavra, mas porque nada lhes é oferecido. É o que lhes resta.
A ausência de dados e registros históricos deixa ainda mais claro que, mesmo com um projeto de lei que deveria assegurá-los, os canoeiros não têm a certeza de que são, de fato, um patrimônio. “A gente só é valorizado quando há interesse ou poder envolvido. Aqui ninguém chega dizendo: ‘Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo’. Só contamos com a gente e com os passageiros”, afirma Márcio.

Em 28 anos como marinheiro, Márcio não se recorda de propostas dos órgãos públicos para auxiliar o ofício.
Foto: Yasmim Carvalho
Em meio a um passado de memórias e a um futuro indeterminado, a única certeza é que, no tempo presente, os marinheiros continuam nas idas e vindas diárias. Ainda é incerto até quando as tototós irão permanecer ativos, mas há várias formas de fazê-las permanecer na memória.
Que as tototós não apenas resistam, mas existam. Existam para cada sergipano e para as autoridades que, pouco a pouco, parecem ter esquecido daqueles que remam contra o apagamento da cultura. Os que, com muita luta e suor, acordam todos os dias às cinco da manhã, ligam o motor e, em meio às travessias, resistem.
Ouça a reportagem sonora "Memórias que navegam"
Veja o webstories "Tototós: Memórias que atravessam"















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