Catadoras de mangaba resistem à especulação imobiliária na Barra dos Coqueiros
- Josino Neto
- há 5 dias
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Por: Breno Oseias, Isabela Davis e Marina Alves
Foto: Marina Alves

“Mangabinha pequenina do tamanho de um botão, ela é tão bonitinha, como o seu coração. Logo cedo eu vou pra feira, pra minhas mangabas vender, pra ganhar o meu sustento, pra na vida eu vencer”. Esse é o poema recitado por Rosivania dos Santos, catadora de mangaba do município de Japaratuba (SE), no documentário ‘Mulheres Mangabeiras’, realizado pela Associação das Catadoras de Mangaba, em 2012.
A mangaba é uma fruta suave, com textura que dá liga, doce e rica em vitamina C, muito comum no litoral do nordeste. Suas árvores, as mangabeiras, podem chegar a até 10 metros de altura e as flores começam a aparecer na entrada do verão, entre os meses de agosto e novembro. O nome tem origem tupi-guarani e significa ‘coisa boa de comer”. Além do sabor, a mangaba tem um valor muito significativo para as pessoas que vivem dela: as catadoras de mangaba.
Na Barra dos Coqueiros (SE), a relação entre as catadoras e a mangaba vem sofrendo transformações. A presidente da Associação das Catadoras de Mangaba da Barra dos Coqueiros (ACMBC), Mariana Moura, conta que, com a crescente expansão imobiliária, as áreas naturais da mangaba estão sendo privatizadas para a construção de grandes residenciais ou cercamentos, em que as catadoras perdem o acesso. “Depois da ponte, a Barra começou a se valorizar, começou a vender e não tem mais [mangaba]. Já tem mais de quatro anos que a gente não cata mangaba”.
Na produção da pauta para esta reportagem, a equipe decidiu que o enquadramento seria a economia e o empreendedorismo feminino realizado pelas catadoras; porém, durante a apuração, o texto mudou de direção, pois encontramos algo muito mais importante a ser escrito sobre as mangabeiras do município da Barra dos Coqueiros: o seu fim.
QUEM VIVE DA MANGABA
Autodenominar-se e ser reconhecida como catadora de mangaba envolve participar e viver de saberes e tradições que são passados de geração em geração. Viver no “tempo da mangaba” é levar a vida em torno do extrativismo da fruta e de todos os seus processos de utilização, até a comercialização do fruto e seus produtos, em que toda a rotina e o próprio calendário era adaptado para esse trabalho.
A catadora Ivanete dos Santos nos contou como, antes do desmatamento das mangaba, todos os dias ao acordar ela já sabia que sua rotina seria em torno da mangaba "A gente ia todos os dias de manhã, às 4h da manhã, pegar mangaba. A gente ia junto com essas meninas [filhas e netas] apanhando a mangaba. Chegando em casa lavava, empacotava, com três dias levava pra Aracaju, vendia e era assim. Depois que fez essa associação, a gente apanhava e já trazia aqui pra gente fazer nossos produtos”.
Nomear as pessoas dessa comunidade tradicional no feminino não é uma escolha à toa, uma vez que, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na Barra dos Coqueiros, 80% das extrativistas de mangaba são mulheres. A situação das catadoras no município abrange questões sociais do feminino, em que a escolha ou a necessidade de trabalhar com o extrativismo da fruta já são definidas pelo gênero.
“Era o que tinha pra gente fazer. Antigamente não tinha casa de família pra trabalhar, era mais em Aracaju”, como conta a catadora de mangaba, Irene dos Santos. “E como tinha mangaba, a gente ia catar. Porque era um meio de sobrevivência. Era a mangaba, sempre foi. Para os homens era a roça, para as mulheres era pescar e a mangaba”, completa Nalvinha, como é conhecida na comunidade.
Nesse sentido, a fala de Nalvinha expõe a realidade das mulheres catadoras de mangaba em relação às suas diferentes jornadas de trabalho. Na Barra dos Coqueiros, as extrativistas não se resumem apenas à cata da mangaba, mas também estão envolvidas tradicionalmente com o extrativismo de marisco e a pesca, atividades intercaladas com a jornada doméstica.
Arte: Breno Oseias
Em Sergipe, segundo o livro “A mangabeira, as catadoras e o extrativismo”, publicado pela Embrapa em 2011, essas mulheres são maiores de 50 anos (48%), casadas ou com união estável (39%).Entre as mais jovens, 45% concluíram apenas o ensino fundamental, enquanto entre as mais velhas 35% são analfabetas e apenas assinam o nome.
A mestre em Serviço Social, Maria Conceição Mendonça, explica que “elas, como quase todas as mulheres costeiras do nosso país, acumulam funções. Então, catam mangaba, tiram outras frutas da restinga para vender e para processar, mariscam em um horário e no outro horário ajudam na pesca dos maridos”.
Em 2006, a inauguração da Ponte Construtor João Alves, ou Ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros, como é popularmente conhecida, chegou como promessa de progresso e melhores condições de vida. Entretanto, para as catadoras de mangaba, se tornou sinônimo de retrocessos, como a perda de território, violência e mudanças culturais e comportamentais.
A presidente Mariana Moura relata que “antes da criação da ponte, a especulação imobiliária aqui não existia. Porque não tinha muita coisa, ninguém queria morar aqui. Então, em qualquer sítio, a gente podia entrar e catar a mangaba, ninguém proibia. Depois da construção da ponte, começou a vender os terrenos e construir os condomínios, [os acessos] foram proibidos”.
As catadoras também contam que chegaram a ser ameaçadas com armas para não entrar mais no terreno, pois agora era uma propriedade privada: "Foi uma coisa triste, porque a gente tava lá catando, aí de repente eles chegaram e disseram que não é pra levar, é pra deixar aí. Agora pra quê? Porque eles queriam? Eles não iam vender”, questiona Nalvinha.
Depois da ponte, a mobilização é uma forma de resistência; ou seja, de mostrar que essas mulheres existem e vão lutar pelos seus direitos. Em 2007, ocorreu o I Encontro das Catadoras de Mangaba de Sergipe. Na época, mesmo sem serem reconhecidas como uma comunidade tradicional, reunir mulheres e seus saberes foi o primeiro movimento formal de luta contra seu maior inimigo: o desmatamento devido às construções civis.
A assistente social Maria Conceição Mendonça destaca como a união dessas mulheres as tornou mais fortes como grupo. “Enquanto catavam mangaba sozinhas, elas disputavam entre elas, porque nós mulheres também somos ensinadas a disputar. Elas entenderam que juntas eram mais fortes e o valor do coletivo, o valor do território, da necessidade de cuidar”, destaca
Por causa do processo mercadológico, elas se viram sem escolha, a não ser trabalhar para as pessoas que compraram as suas terras. Maria Conceição explica que muitas não se adaptam ao processo de formalização, porque não foram preparadas para isso e não tiveram a oportunidade de frequentar uma escola e estudar. “Retirar os territórios, não é só especulação [imobiliária, pois] é o modo de vida delas, é como elas se percebem naquele local”, completa.
A LUTA PELO TERRITÓRIO
Antes da especulação imobiliária, muitas dessas áreas eram terras livres, onde as catadoras podiam coletar as frutas. Mas, com o tempo, foram surgindo as cercas e as proibições por parte dos novos donos das terras, até não sobrarem lugares considerados livres para que elas conseguissem realizar suas atividades.
Segundo a engenheira florestal Laura Jane, um terreno foi doado para as mangabeiras da Barra dos Coqueiros pela prefeitura para que elas pudessem manter a tradição. Porém, não foram oferecidos recursos nem apoio para que ocupassem a área, que possui nove hectares e vai da rodovia SE-100 até a Atalaia Nova. Foi apenas após um trabalho em conjunto com alunos e professores de Engenharia Florestal e Engenharia Agrícola da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que as catadoras de mangaba tiveram noção do tamanho do local.
As obras de infraestrutura e a expansão imobiliária têm desempenhado papel central no processo de apagamento das catadoras. A instalação de grandes empreendimentos turísticos e residenciais em áreas tradicionalmente ocupadas por essas mulheres intensifica a pressão sobre os territórios: não apenas pela supressão da vegetação, mas também por meio de mecanismos jurídicos que visam a retirada do terreno doado à associação.
Segundo a engenheira florestal, há tentativas de desapropriação do lote concedido à associação local da Barra dos Coqueiros motivadas por interesses de construtoras junto ao poder público. “Não teve compensação ambiental porque a condicionante da licença ambiental deveria ter sido amarrada com a compensação para que investissem nesse terreno. Mas elas não tiveram essa assessoria jurídica, [porque] o órgão ambiental não teve essa preocupação social”.
Segundo o mapeamento da vegetação nativa das áreas da mangaba em Sergipe, realizado pela Embrapa Tabuleiros Costeiros, a localização das comunidades extrativistas e o estado de conservação das áreas tem como principais ameaças a derrubada da vegetação para implantação de empreendimentos imobiliários e turísticos. Uma das medidas propostas foi a criação da Reserva Extrativista (Resex) Litoral Sul, que protegeria parte expressiva das áreas de mangabeira.
No entanto, a proposta não se concretizou devido à disseminação de informações equivocadas junto às comunidades e à resistência de interesses ligados ao grande capital imobiliário, o que inviabilizou a preservação de importantes remanescentes vegetais, como explica a analista de Agroecossistemas da Embrapa, Raquel Fernandes.
Procurada pelo Zona Contexto para tratar da situação das catadoras de mangaba da Barra dos Coqueiros, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SEMA/PMBC) declarou que a gestão atual está em processo de planejamento, avaliando a aprovação do plano de manejo da Área de Relevância de Interesse Ecológico (ARIE), que inclui a comunidade das catadoras de mangaba.
FORMAS DE RESISTENCIA
Em decorrência da luta, as catadoras conquistaram, em 2009, um assento no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). A finalidade desse conselho é acompanhar e gerar políticas públicas para grupos com formas próprias de organização social e que usam territórios e recursos naturais com a condição de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Por mais que elas recebam direitos de preservação e proteção, a atividade de catar mangaba ainda encontra dificuldades em ser formalizada e receber direitos trabalhistas.
Diante disso, as catadoras encontraram uma outra forma de resistência: a fabricação de produtos derivados da fruta, como o licor, a bala, a trufa, o biscoito e a torta, além do carro-chefe da cozinha: a geleia de mangaba. Todos esses produtos são fabricados e vendidos por elas em feiras públicas e privadas, eventos ou na Rede Solidária de Mulheres, no bairro Luzia.
Outra forma de distribuição das produções é na merenda das escolas do município. “A gente entrega os bolinhos para merenda. Todos os meses eles fazem a encomenda, pedem três mil bolinhos, três mil e quinhentos, depende da demanda e a gente faz o envio”, relata a presidente da ACMBC, Mariana Moura.
Doces, biscoitos e geleias são as formas que as catadoras encontram de conseguir uma renda com a mangaba.
Fotos: Breno Oseias e Isabella Davis
Devido ao desmatamento dos terrenos tradicionais das mangabeiras e à proibição da cata, para realizar a produção, as catadoras da Barra precisam comprar a fruta congelada das catadoras de Pirambu. A escala de produção pode variar de acordo com o tamanho da encomenda geralmente são apenas cinco mulheres envolvidas. Outra forma de comercialização dos produtos é através da Rede Solidária de Mulheres, que está presente em feiras no estado.

A Rede Solidária de Mulheres transforma a vida das catadoras de mangaba, ao garantir a renda com a fruta.
Foto: Isabella Davis
Para Laura Jane, por ser uma briga que envolve pessoas com muito poder, as catadoras sozinhas não conseguem recuperar a terra, sendo necessária a ação do poder público para que tenham alguma chance. Uma intervenção que, para essas extrativistas, já se tornou uma realidade inalcançável.
Quando questionada sobre uma perspectiva de futuro, a presidente da associação das catadoras de mangaba da Barra, expressa o desejo por mais cursos profissionalizantes para que as mulheres possam trabalhar com outras coisas e recuperar a independência financeira, retirada delas pela privatização da terra. “Não adianta. Nós não temos o que fazer porque, como eles são privados, a mangaba é deles, o terreno é deles, a gente não pode fazer nada”, complementa.
Ouça a reportagem sonora "O apagamento de uma Tradição"
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