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Insegurança alimentar: medidas urgentes para frear a fome

No Brasil, 43,4 milhões de cidadãos declararam não possuir a quantidade necessária de alimentos para subsistência e outros 19 milhões afirmaram enfrentar a fome


Por Ana Julia Oliveira, Juliana de Jesus Santana e Waldênnia Soares Teles



O Restaurante Popular Padre Pedro, localizado em Aracaju, é o único restaurante popular do estado de Sergipe (Foto: Governo do Estado de Sergipe)

Nos últimos meses, diversas imagens assustadoras relativas à fome viralizaram nas redes sociais. A principal delas mostrava um grupo de pessoas coletando restos de comida em um caminhão de lixo. Nos jornais, também cresceram as notícias sobre a busca e a comercialização de ossos de carne. Esses fatos constatam uma realidade cruel: a Segurança Alimentar (SA) do brasileiro está cada vez mais ameaçada.


No Brasil, mesmo antes dos agravos provocados pela crise sanitária da pandemia do coronavírus, havia uma tendência de diminuição da Segurança Alimentar do brasileiro. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018 (POF) realizada pelo IBGE, 63,3% dos domicílios pesquisados vivenciavam situação de SA. Esse número representa uma queda de 14,1 pontos percentuais em comparação com o melhor nível de segurança alimentar de toda a série histórica, 77,4%, registrado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2013.


Desse modo, é possível constatar que o crescimento dos índices de insegurança alimentar no Brasil teve dois fatores determinantes, sendo estes os percalços da economia mundial e nacional 一 e a sua consequente inflação 一, e o cenário de instabilidade política certamente prejudicial à tomada de decisões para reverter os quadros de inacessibilidade alimentícia no país.


Disponibilidade, instabilidade, acesso e utilização de alimentos são os quatro pilares, nomeados como dimensões, que servem para definir o conceito de Insegurança Alimentar (IA) e determinar em que nível está caracterizada. A conceituação do que é considerada a IA parte da situação em que a população de um país ou região se encontra em relação à falta de acesso físico, social e econômico a recursos alimentares que sejam nutritivos e suficientes para suprir as necessidades dietéticas de cada indivíduo. Segundo a agência especializada em Alimentação e Agricultura, ‘Food and Agriculture Organization’, existem interpretações para as quatro dimensões que podem caracterizar a insegurança alimentar.


A disponibilidade está relacionada à capacidade geral do sistema agrícola em suprir as demandas alimentares de cada região ou país. A instabilidade é relativa à possibilidade de perda temporária ou permanente dos recursos necessários para a produção de subsídios alimentares. O acesso diz respeito à distribuição de recursos e direitos às populações, o alimento pode estar disponível, mas esta disponibilidade não está diretamente relacionada à acessibilidade. A utilização de alimentos abarca subdivisões referentes à questões sanitárias que possam influenciar na qualidade da nutrição e, consequentemente, na saúde da população e indivíduo.


Ainda dentro das suas definições, a insegurança alimentar é subdivida em três níveis, sendo estes “leve”, “moderado” e “grave” caracterizados respectivamente pelo receio de passar fome em um futuro próximo, restrição na quantidade de recursos alimentares para a família, e pela ausência de alimento na mesa. Os níveis da IA são definidos, no Brasil, através de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que servem para traçar panoramas e soluções de modo a mitigar a fome.


Além da capacidade financeira de comprar mantimentos, para que o cidadão esteja fora das estatísticas de IA, é preciso que ele consiga cumprir o conceito chamado “soberania alimentar”. Beatriz Gouveia Moura, nutricionista e mestranda em Ciências da Nutrição da Universidade Federal de Sergipe (UFS), explica que as pessoas precisam ter o seu direito de escolha e autonomia assegurados.


“O indivíduo que se encontra em uma situação de insegurança alimentar tem o direito de poder decidir aquilo que ela quer comer e aquilo que ela come, pois é um princípio que está ligado a essa soberania”, ressalta Beatriz, que além das suas outras atribuições, também é colaboradora do Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe (OSANES).


Com a pandemia, houve um agravo ainda maior no apuro econômico que já assolava o Brasil. O colapso econômico de 2020, promovido pela crise sanitária, fez com que os índices inflacionários atingissem a margem de 4,52%, medidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e divulgados pelo IBGE. A alta nos índices inflacionários influenciou diretamente no aumento dos preços dos alimentos, inclusive dos 17 itens que compõem a cesta básica.


De acordo com Beatriz, a pandemia do coronavírus agiu como catalisador que acabou fortalecendo a situação de desigualdade e insustentabilidade no país, principalmente pela forma como a gestão política atual tratou a situação. “Era o momento de ter uma maior efetividade de direitos e pensar mais sobre questões estruturais, nos auxílios e em relação ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), dos sistemas universais, etc., quando, na verdade, o que ocorreu foi o contrário”, enfatiza.


Em 2021, mesmo com a melhora nos indicadores da pandemia no segundo semestre do ano, a inflação não demonstrou tendência de queda, sendo ainda um problema para o bolso dos brasileiros. Em constante alta, o IPCA para o último mês de outubro chegou a atingir a marca de 1,25%, sem uma expectativa para redução no resto dos meses. Para o ano de 2021, a estimativa de mercado é que o índice suba de 9,17% para 9,33%, sendo esta a trigésima primeira semana seguida de aumento.


A influência direta dos índices do IPCA pode ser explicada a partir de uma pesquisa básica referente ao novo valor destinado à montagem de cestas básicas. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) destacou o aumento de mais de 10% das cestas básicas até o mês de agosto deste ano, e este percentual elevado acompanha o preço de itens como açúcar cristal, óleo de soja, café moído, contrafilé, margarina, batata inglesa e tomate.


De todas as capitais que foram objeto de pesquisa do Dieese, Aracaju apresentou o menor valor referente às cestas básicas. Ainda sendo considerada a mais barata, o conjunto de 17 itens alimentícios que compõem a cesta custa R$ 456,40 reais, representando um gasto de cerca de 44,86% do salário mínimo de um cidadão aracajuano. Uma realidade certamente cara que contribui para a ascensão dos índices de insegurança alimentar no estado.


A pesquisa “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), no mês de dezembro de 2020, constatou que cerca de 116,8 milhões de brasileiros vivenciaram algum nível de IA. Dentre este número, 43,4 milhões declararam não possuir uma quantidade necessária de alimentos para subsistência e outros 19 milhões de pessoas afirmaram estar enfrentando a fome.


De acordo com o inquérito, a região Nordeste abriga 7 milhões de pessoas em situação de fome, sendo a região 一 em conjunto com o Norte 一, que concentra o maior número de domicílios em situação de insegurança alimentar moderada e grave. Enquanto apresenta apenas 30% de Segurança Alimentar, o Nordeste marca a faixa de 13,8% de IA grave, demonstrando que o dobro de residências da região está exposto ao nível mais agravado de insegurança alimentar, se comparado ao Sul e Sudeste.


Em Sergipe, segundo uma pesquisa do IBGE, divulgada em 17 de agosto deste ano, com a temática “Análise da Segurança Alimentar”, 40 mil domicílios se encaixam no cenário mais crítico da escala, sendo que cerca de 117 mil pessoas vivem nessas residências, seguindo as prevalências de segurança alimentar conforme a Escala Brasileira de Medida Direta e Domiciliar da Insegurança Alimentar (EBIA).


No quesito dados sobre a insegurança alimentar em Sergipe, Beatriz destaca que “o dado mais recente sobre essa informação é da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018, sendo um período anterior à pandemia de Covid-19, do aumento da inflação e do desmonte de várias políticas estruturais”.


A nutricionista ainda complementa que essa mesma pesquisa já apontava que cerca de 50% da população sergipana convivia com algum nível de insegurança alimentar, sendo elas leve, moderada e grave. “A maioria não se encaixa na grave, que é situação da fome mesmo, mas nós já tínhamos um aumento dessa insegurança se comparada com anos anteriores”, diz.


Segundo a nutricionista, Sergipe enfrenta uma dependência das informações fornecidas pela POF, visto que o estado não realiza nenhuma pesquisa para entender a situação da Segurança Alimentar ao nível local. Essa carência de dados, inclusive, dificulta a compreensão acerca das formas de manifestação do problema nos diversos municípios sergipanos, e a elaboração de planos públicos para mitigar o óbice que é a insegurança alimentar.


De acordo com o “Relatório de Indicadores de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe”, produzido em 2018 pelo Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe (OSANES), os sergipanos contam com apenas 14 equipamentos públicos voltados para o fortalecimento dos níveis de SA como parte da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). São duas cozinhas comunitárias, um restaurante popular e 11 Unidades de Distribuição da Agricultura Familiar em funcionamento que buscam atender as 117 mil pessoas em situação de IA grave no estado.


O único restaurante popular de Sergipe, o Restaurante Popular Padre Pedro localizado no Centro de Aracaju, fornece refeições no valor de R$ 1,00. Atualmente, devido à pandemia, os almoços e jantares, que eram oferecidos no próprio refeitório, estão sendo distribuídos na forma de “quentinhas”, que chegam ao montante de 2450 unidades por dia.


Em relação a programas governamentais que atendem famílias de baixa renda, o Bolsa Família ampliado por meio da gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi responsável por tirar o Brasil do mapa da pobreza. No entanto, recentemente o projeto foi encerrado depois de 18 anos, através de uma decisão do atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido), para então ser substituído pelo Auxílio Brasil, por meio da Medida Provisória (MP) n.º 1.061.


Porém, com o fim do programa surgem impactos como a ampliação do projeto em todo território nacional, pois o Bolsa Família garantia que seus assistidos tivessem direitos básicos como alimentação, moradia, saúde e educação. Além disso, o seu desfecho também deverá impactar na contabilidade pública, visto que a nova proposta apresentada por Bolsonaro não vem sendo aprovada com louvor pelo mercado de investimentos, devido à falta de justificativas para o cancelamento de um programa com eficácia ao longo dos seus anos de implantação.


Para o futuro do país, fica difícil estabelecer uma perspectiva positiva. Com a volta ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), do qual havia saído em 2014, o Brasil precisa continuar investindo em iniciativas públicas para frear o avanço da pobreza e da fome que, por consequência, continuam sendo a realidade de milhões de brasileiros. Além disso, os incentivos governamentais precisam estar focados em assegurar, diretamente, ao menos uma renda mínima para as famílias brasileiras mais pobres a fim de que possam começar a se estabelecer e garantirem ao menos o básico de uma alimentação saudável.


Caso não haja uma organização do cenário brasileiro no que diz respeito à alimentação do povo, o Brasil terá que enfrentar novamente um antigo inimigo, que dessa vez aparece fortalecido pela pandemia e a inflação. É preciso uma organização séria e competente desde agora para impedir uma progressão maior e mais cruel da fome.


Agnaldo Rezende - entrevistaJoyce e Katiane
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