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“Estamos à deriva, só o criador dos céus cuida de nós”. É assim que o motorista Graciliano Barbosa, 63, fala sobre o que espera do futuro da comunidade Cajueiros II, localizada na Barra dos Coqueiros, município distante quase 9 km de Aracaju. O local, que no passado abrigava inúmeros pés de mangabeiras e coqueiros, transformou-se em lar para ao menos 140 famílias que têm na agricultura familiar uma forma de sobrevivência. Às margens da Praia do Jatobá e da rodovia SE-100, o pequeno povoado observa, há quase duas décadas, as transformações sociais e tecnológicas pelas quais passa a região sem fazer parte desse processo. É que mesmo estando próximos de imensas torres de energia eólica, os moradores ainda precisam improvisar para ter energia elétrica em suas casas e precisam conviver com o medo de, a qualquer momento, serem expulsos do local onde vivem há tantos anos.
Andrea Bispo, de 51 anos, trabalha com a limpeza de camarões e outros mariscos em um galpão na cidade de Pirambu, a 30 km da Barra. A marisqueira lembra como, com o passar dos anos, as famílias que se instalavam ali cultivavam novas espécies e relações, transformando o lugar não só em um ambiente de trabalho, mas também em uma comunidade, da qual todos se beneficiam.
“Aqui era uma mata livre, não tinha morador, não tinha ninguém aqui. Quando nós chegamos, tiramos o que não servia, mas as frutas ficaram”, conta Andrea, se referindo às mangabeiras e aos coqueiros, preservados pelos moradores de Cajueiros II. Além dessas espécies, os moradores mostram outras árvores frutíferas, incluindo mangueiras, limoeiros e pés de pinha e graviola, todos já dando frutos. “Isso aqui foi nosso cultivo e agora já estamos colhendo”, completa.
Foto: Giulia Meneses
No olhar singelo, Andrea encontra na fé a esperança de dias melhores para a sua comunidade
Mas nem só da plantação e do cultivo de frutas vivem os moradores da comunidade. Ali mesmo, na família de dona Andrea, o trabalho com os frutos do mar não se resume à ocupação da matriarca. Lima Souza Barreto, 58, e Deivyson Gois da Hora, 32, respectivamente, o marido e o filho da catadora de camarão, trabalham com a pesca de arrasto em um barco de pequeno porte, que os abriga durante os 15 dias em que passam no mar.
A poucos passos dessa família, o quintal de Seu Graciliano chama atenção pelo seu espaço arejado e algumas árvores frutíferas. O motorista de 63 anos, que expressou sua preocupação quanto ao futuro da comunidade no início desta reportagem, , estava sentado na varanda, ao lado de sua esposa, quando falou sobre a decisão de se mudar para os Cajueiros II. “Viemos morar aqui há uns 8 anos, mais ou menos. Eu vivia de casa alugada e quando surgiu a oportunidade a gente aproveitou e veio para cá, agora vivemos cuidando disso aqui”, relembra.
Seja na conservação das belezas que sempre estiveram ali ou na transformação do espaço, a população que forma a comunidade de Cajueiros II se empenha para fazer dali um local digno para todos. Muitas vezes, quando o poder público falha em garantir os recursos básicos, a união se torna a solução para assegurar a qualidade de vida.
Dona Giselia e Seu Josenilson são exemplos de como ajudar uns aos outros é prioridade para a população local. Às nove da manhã de uma segunda-feira, em um calor de 30ºC do verão sergipano, a dupla uniu forças para restaurar um dos muitos pontos de ônibus construídos por eles para o local. O ponto estava parcialmente destruído, depois de ter sido atingido por uma forte ventania no final de semana anterior.
“Esse aqui é o nosso ponto de ônibus. A chuva e as ventanias do último sábado deixaram ele assim, mas ainda é nosso! Agora estamos ajeitando o teto para que as crianças não fiquem no sol enquanto esperam o ônibus escolar”, explicou Dona Giselia.
Foto: Giulia Meneses
Dona Giselia e Seu Josenilson, após uma tempestade, reerguendo ponto de ônibus improvisado pela comunidade
A proximidade com o mar e a abundância de água subterrânea estão entre as razões para atrair moradores ao local. Para pescadores e marisqueiras, a região atrai pela proximidade com suas fontes de renda (os pescados e mariscos). Para os demais moradores, a água subterrânea garantia não só terrenos férteis para a plantação, mas também o acesso à água através da construção de poços artesianos.
O mesmo ambiente privilegiado e rico em água que atraiu moradores foi responsável por levar empreendimentos energéticos e ambientais para o local. Hoje, os moradores de Cajueiros II temem que suas casas e comunidade sejam destruídas diante dos novos interesses que passaram a envolver o lugar.
Um território, muitos interesses
A cidade da Barra dos Coqueiros foi criada em 1953, mas só em 2006, com a inauguração da Ponte Construtor João Alves, mais conhecida como Aracaju/Barra, as questões de urbanização passaram a ser urgentes no território. Desde então, a infraestrutura tem marcado significativamente o desenvolvimento do município e desencadeado uma série de transformações na região.
Além de facilitar a ligação entre os dois municípios, a ponte impulsionou o crescimento econômico e o turismo, promovendo o acesso a recursos e serviços anteriormente mais restritos. Um dos resultados mais expressivos dessa expansão econômica inclui não só a especulação imobiliária, mas também a criação de iniciativas industriais, como o Parque Eólico da Barra dos Coqueiros, em 2012, e a Usina Termelétrica Porto Sergipe I, em 2020.
Composto por 23 aerogeradores de 100 metros de altura e pás de 80m de diâmetro, o Parque Eólico está localizado entre os povoados Jatobá e Touro. O projeto inicial recebeu cerca de 56 milhões de dólares do China Development Bank (CDB), um banco de desenvolvimento ligado ao governo chinês - à época, argumentou-se que a escolha por Sergipe se deu principalmente pelo potencial de ventos na região.
Foto: Giulia Meneses
O Parque Eólico da Barra dos Coqueiros produz cerca de 34,5 megawatts, o suficiente para abastecer 120 mil habitantes
Oito anos depois, a Usina Termelétrica Porto Sergipe I foi instalada. A termelétrica atende a 15% da demanda de energia da região Nordeste, segundo informações fornecidas pela Eneva, empresa que controla o empreendimento atualmente.
Inicialmente, a usina era administrada pelas Centrais Elétricas de Sergipe, um grupo de empresas que se juntaram em 2015 para participar de grandes projetos no setor elétrico. Dois anos depois da inauguração, o empreendimento foi vendido à Eneva por R$ 6,7 bilhões - a empresa, vale dizer, é conhecida nacionalmente por ter representantes do BTG Pactual entre seus sócios.
Em usinas termelétricas, ocorre o processo de conversão de energia térmica (calor provocado por queima) em energia elétrica. No entanto, uma parte da energia liberada na queima não é convertida em eletricidade, o que gera um calor residual que precisa ser resfriado. Por essa razão, termelétricas costumam ser instaladas perto de grandes corpos de água, como mares, lagos ou rios, usados para fazer a troca térmica necessária.
A Porto Sergipe I, especificamente, produz energia elétrica a partir da queima de gás natural, um combustível fóssil, e utiliza o mar da região para o resfriamento necessário. Além da usina, o grupo conta com uma unidade flutuante, localizada a 6,5 km da costa sergipana, que serve para armazenar e regaseificar o gás natural (ou seja: converter o gás natural liquefeito para o estado gasoso) antes que ele siga para a usina onde ocorre a geração de energia. Ainda segundo o site da Eneva, a unidade flutuante consegue estocar até 170 mil metros cúbicos de combustível.
No mesmo ano em que a Porto Sergipe começou a funcionar, o então governador Belivaldo Chagas (PSD) assinou o decreto de criação do “Parque Estadual Aquífero Marituba”, a fim de proteger e conservar não só o ecossistema costeiro, mas também parte do aquífero de mesmo nome. O parque, primeira unidade de conservação de proteção integral do estado, fica localizado entre os municípios da Barra dos Coqueiros e Santo Amaro das Brotas, no leste sergipano. O parque, de acordo com o governo estadual, apresenta um ganho para o desenvolvimento industrial para ambas cidades, além de, futuramente servir para garantir o abastecimento da água de Aracaju.
Apesar de serem iniciativas com pouco em comum, o parque ecológico e as usinas eólica e termelétrica convergem em uma única coisa: ambos os empreendimentos tiveram impactos sentidos até os dias atuais na rotina dos moradores de Cajueiros II. Com a construção das torres eólicas, que durou cerca de quatro anos, a comunidade viu o silêncio desaparecer e passou a ter o sono e o despertar embalados pelo barulho das turbinas. O parque ecológico, entretanto, deve ser a iniciativa que mais os tomou de surpresa, isso porque, a partir de 2020, a área ocupada pela comunidade passou a integrar o território do parque.
Os três empreendimentos também têm em comum a promessa de desenvolvimento e de geração de riqueza para a região. Contudo, a grandeza só se mostrou ameaçadora para a comunidade Cajueiros II. No fim das contas, a população, que acompanhou lado a lado todo o processo de implantação e sonhou com eventuais benefícios coletivos, viu as transformações se tornarem privilégios para alguns.
As queixas dos moradores voltam-se, sobretudo, para questões de falta de energia, poluição ambiental e disputa por território. Apesar da ampla produção, a comunidade segue sem acesso à luz elétrica. A presença do navio Golar Nanook, ligado à Usina Termelétrica, também ameaça os moradores por dificultar a atividade pesqueira. E, por último, o desenvolvimento do Parque Marituba deixa a comunidade com medo de ser obrigada a abandonar a própria terra.
Do Desenvolvimento ao conflito sociocultural
De um lado, uma comunidade tentando se manter firme e, do outro, a sombra da incerteza. O destino da comunidade Cajueiros II começou a perder a nitidez perante as transformações externas que os afetam internamente. Mesmo após a chegada do parque eólico e da usina termelétrica, separados da comunidade por poucos metros, a maior dúvida ainda é por que o acesso a serviços básicos, como energia elétrica, produto final desses parques, é tão restrito à comunidade.
Os moradores de Cajueiros II não têm energia elétrica chegando diretamente às suas casas. Para que tenham acesso à energia, precisam fazer ligações clandestinas e retirar a eletricidade dos postes da rodovia. A comunidade se queixa ainda da falta de lâmpada nos postes, o que faz com que a rodovia se torne insegura, propícia a acidentes e violências. “Sofremos aqui na escuridão. Temos nossos filhos que estudam e chegam tarde no escuro”, conta uma moradora que preferiu não se identificar.
Depois que a reportagem de +Contexto esteve na comunidade, a Energisa, empresa responsável pela distribuição de energia elétrica em Sergipe, restabeleceu o serviço dos postes localizados às margens da SE-100, onde a comunidade Cajueiros II está localizada. O reparo não foi por acaso: ele só aconteceu após um grave acidente envolvendo uma motocicleta e um carro de passeio. Ainda assim, os moradores do povoado seguem sem energia regular em suas casas, precisando recorrer a ligações clandestinas.
Procurada, a Energisa informou que a comunidade precisa comprovar a posse dos terrenos para regularizar os serviços. Disse ainda que, em razão de a comunidade estar localizada em área de preservação ambiental, também é necessário apresentar documentos a comprovar o aval dos órgãos ambientais ligados à prefeitura para a permanência no local.
Além da falta de acesso à energia elétrica, outra queixa dos moradores é a presença do navio Golar Nanook, sistema interligado ao gasoduto que alimenta as turbinas da usina termelétrica. Por ser responsável pela regaseificação do Gás Natural Liquefeito (GNL), o navio desperta na comunidade o receio de uma possível explosão e da liberação do GNL para as águas, afetando ecossistemas marinhos. A situação ameaça os moradores e dificulta a atividade pesqueira da comunidade.
Segundo os moradores, a empresa responsável solicitou que fosse tomada uma certa distância do navio responsável. Essa necessidade de distanciamento afeta os pescadores. “A parte que fica o navio é onde tinha os melhores peixes para a gente, aí a empresa já veio dizendo que tinha que ficar afastado, colocou sirene para tocar, até que realmente a área se tornou restrita e a gente ficou na mão”, afirmou Carlos Assunção, pescador há 30 anos.
Por outro lado, mesmo com a problemática do navio, a região onde a comunidade está localizada não é abastecida pelo Departamento de Saneamento de Sergipe (Deso). Por esse motivo, ao chegarem na comunidade, a própria população construiu poços artesianos e retira a água manualmente. Ao +Contexto, a Deso disse a mesma coisa que a Energisa: para que haja água encanada, os moradores precisariam apresentar um documento de uso e ocupação do solo emitido também pela prefeitura.
Foto: Giulia Meneses
Desde sua chegada na comunidade, Dona Andrea utiliza um poço artesiano para obter o acesso à água potável
Parque Marituba e a disputa territorial
Tradicionalmente, a área que abriga a comunidade Cajueiros II é conhecida por seus moradores como um local de água limpa e abundante. Os poços artesianos mencionados anteriormente são exemplos dessa fartura. Segundo os moradores, a maior parte dos poços alcançam água a uma profundidade pequena, que varia entre oito e nove metros.
“A água daqui é tão boa que eles querem tirar a gente daqui, por isso que querem fazer esse parque, porque descobriram ali um estoque de água mineral para abastecer”, relatou outra moradora, que também pediu para não ser identificada.
O parque em questão é o Parque Estadual do Marituba, uma unidade de conservação criada em 2020 e localizada entre os municípios da Barra dos Coqueiros e Santo Amaro das Brotas. O parque é importante para a preservação, ecoturismo e evolução das pesquisas ambientais em todo o estado. Essa reserva se destaca também pela disposição de água doce, tão importante para a manutenção da fonte de renda daqueles que vivem ali.
Foto: Giulia Meneses
Administrado pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura
(Sedurbi), o Parque Estadual do Marituba é capaz de atender aproximadamente 25.000 pessoa
Para os responsáveis pela preservação desses espaços ambientais, o Parque Marituba representa o empenho com a manutenção do ecossistema que incorpora quase 20% da Barra dos Coqueiros. O secretário do Meio Ambiente do município, Edson Aparecido dos Santos, destaca o esforço dos órgãos em proteger e preservar os ricos lençóis freáticos da região.
“Temos aqui o maior aquífero do nosso estado, o aquífero Marituba, preservado por outro espaço de conservação também, que é o Parque Estadual Marituba”, afirma o secretário. A área do parque vai até Santo Amaro e dispõe não só de recursos hídricos, mas também de vegetação da Mata Atlântica. “É muito importante a manutenção do sistema, equalizar, e recuperar os degradados. Isso ajuda a equilibrar o ecossistema e gera renda para os pescadores artesanais que dependem realmente disso”, completa.
Com o intuito de demarcar o território pertencente ao Parque Marituba, a prefeitura da Barra dos Coqueiros instalou uma cerca de arame que percorre pouco mais de 1,5km de extensão, envolvendo toda a comunidade. Tendo em vista que os recursos hídricos e ambientais ali presentes são de interesse do poder público, a instalação da cerca é percebida pelos moradores como uma forma de demonstrar quem detém o comando da área.
Foto: Giulia Meneses
Comunidade se sente ameaçada com cercamento feito para demarcar o Parque Estadual do Marituba, em 2020
No início da cerca, logo após a placa que nomeia o aquífero, vive a aposentada Jaciara dos Santos, 60. Para ela, viver dentro de uma área de preservação traz o medo de ser retirada do local a qualquer momento. Dona Jaciara começou a levantar uma casa no terreno em frente ao da sua filha, mas parou a obra temendo perder os materiais de construção em uma eventual desapropriação.
Hoje, a aposentada mora em uma casa emprestada por uma vizinha da comunidade. “Aqui mesmo não é meu, essa casa é de uma senhora que me cedeu. [...] Como ela me conhecia e sabia da nossa luta aqui pelo terreno, a casinha que era do filho dela já estava pronta e ela me cedeu pra que eu viesse”, explica.
Assim como ela, outros moradores vivenciam a incerteza em relação à posse dos terrenos e casas. “Passaram a cerca e a gente ficou aqui, na indecisão, se vai à frente ou não. Ninguém pode construir e nem sair, porque se sair, derrubam o que tiver em pé”, pontua dona Jaciara.
Foto: Giulia Meneses
Jaciara fala das dificuldades financeiras e do medo de perder sua terra.
A cerca que traz preocupação para Dona Jaciara é a mesma que envolve a comunidade de Cajueiros II e moradores como Seu Graciliano, o motorista de 63 anos que abriu esta reportagem. Ele confirma que a incerteza sobre a permanência da comunidade naquele local é algo que o assusta, e a esperança por alguma mudança em meio a tantos problemas é praticamente inexistente.