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Pesca artesanal, uma tradição que está ameaçada em Sergipe

A profissão que já foi importante para a economia e a tradição sofre risco de extinção.

Por: Gabrielle Oliveira, Janaína Cavalcante, Lucas Silva  e Thaisy Santa Rosa

Mesmo dividindo o espaço no céu com algumas nuvens acinzentadas, o sol cumpriu seu papel de irradiar o calor na manhã daquela sexta-feira, 2 de fevereiro. Os feixes de luz atravessavam e iluminavam as águas de uma maré calma e baixa, que conduzia algumas embarcações em um sutil balançar. À frente, a imagem proeminente da ponte Construtor João Alves, que liga Aracaju até a Barra dos Coqueiros, não deixava dúvidas de onde estávamos. Mas, apesar de poético, o cenário esconde uma triste realidade: o fim de uma tradição.

Localizada na Zona Norte da capital, à margem do Rio Sergipe, a Orlinha do Bairro Industrial é a casa de muitas pessoas que tiram o seu sustento do rio; lá, é possível ver a pesca artesanal ganhar vida. A visão de embarcações pesqueiras é algo recorrente. Boias flutuantes em diferentes pontos do rio demarcam os locais onde pescadores deixaram suas redes, na esperança de recolherem elas fartas. Há também aquelas figuras solitárias com varas de pesca nas mãos, esperando pacientes o momento de içar o peixe. 


Não demorou muito para seu Bóca se fazer presente na Orlinha. Chegou falante e tomou toda atenção dos que estavam à sua volta. Mesmo aposentado, aos 64 anos, ele frequenta todos os dias aquele local, quase como um ritual religioso. Registrado como Sandoval Melo, o pescador exibe com muito orgulho as manchas na pele causadas pela ação do sol, revelando os anos de trabalho. Desde muito cedo, aos 12 anos de idade, ele já acompanhava o pai na profissão, e assim seguiu até a vida adulta.


Com seu jeito comunicativo, seu Bóca apresenta o responsável por levá-lo ao rio todos os dias: um pequeno barco azul, de madeira, com os dizeres “Deus é Fiel” escrito com tinta branca na lateral da embarcação. O cheiro forte de pescados e as redes desarmadas indicam que o pescador havia retornado de mais um dia de trabalho. Sozinho, todas as manhãs ele escolhe um ponto do rio onde possa lançar sua rede, mas antes de entrar nas águas, seu Bóca faz uma oração pedindo para que a pesca seja farta e o retorno para casa tranquilo.

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Foto: Thaisy Santa Rosa

 O nome da embarcação foi escolhido pelo filho do pescador, que apesar de não ter seguido a tradição pesqueira, gosta de fazer passeios com o barco.

Durante a sua trajetória, seu Bóca já tentou outras profissões, mas sempre voltou para a vida de pescador. Em sua última tentativa, não conseguiu conciliar a vida de caminhoneiro com a paixão pela pesca. Apesar de estar aposentado, jamais largou a atividade que aprendeu na infância; o fato é que ele não consegue viver longe da maré. “Pedi as contas de quando era motorista de caminhão para continuar pescando e eu só largo essa vida quando morrer, porque pescar é a minha paixão. Eu tenho amor por isso aqui”, conta o pescador.

 

A paixão que move seu Bóca para seguir na pesca logo se transforma em desânimo quando ele reflete sobre a atual situação dos rios e a falta de incentivo para que a prática dessa atividade possa sobreviver aos dias atuais. Sabemos que políticas de apoio e investimentos em capacitação e infraestrutura podem ajudar a fortalecer a contribuição econômica da pesca artesanal e garantir sua sustentabilidade a longo prazo, mas não é isso que acontece com os pescadores do Bairro Industrial.

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Foto: Thaisy Santa Rosa

“Meu amor é isso aí, eu tenho prazer de estar na maré. Me traz muita felicidade”, conta Seu Bóca

O pescador, com os olhos marejados, aponta com os dedos para o mangue completamente entulhado de lixo e que está localizado logo em frente a um grande centro comercial: o Aracaju Parque Shopping. Bóca reclama que os políticos não lembram que a atividade que ele e outros colegas de profissão desempenham têm um papel significativo no meio econômico, especialmente em comunidades costeiras e ribeirinhas. A pesca fornece meios de subsistência para muitas famílias, contribuindo para a geração de renda e o desenvolvimento local.

 

Entre os relatos dos pescadores artesanais, em média, eles precisam desembolsar 53 reais para encher o tanque de 8 litros da embarcação, e, em todas as vezes, é necessário abastecer novamente durante o percurso. Além disso, gastos inesperados com os barcos, como um vazamento ou motor danificado, precisam ser calculados e reparos básicos podem ultrapassar o valor de 2 mil reais. Em contrapartida, um pescador artesanal ganha cerca de 80 reais a cada rede de peixe vendida, no fim do mês, isso corresponde a 2.400 reais - o que é insuficiente para cobrir todos os gastos que a pesca envolve, e ainda tentar sobreviver com o que sobra.


Do outro lado da cidade, em frente à praia da Cinelândia, na esquina de um luxuoso prédio, avaliado em cerca de 1,5 milhão de reais, Wellington dos Santos, de 41 anos, já sofre as consequências de um cenário em que não há espaço para ele. A calçada que o comerciante utilizava para trabalhar diariamente com a sua barraquinha de pesca foi interditada. Agora, uma manta cerca o local, o calçamento está arrancado, e há entulhos por todos os lados. Apenas a placa de vendas permanece no lugar. O comerciante explicou que já não está fazendo as vendas naquele local e se alocou para a parte asfaltada daquela mesma esquina. “Estou vendendo ao lado do bar, na pista mesmo, correndo o risco de um carro passar e me atropelar”, comenta Wellington.

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Foto: Thaisy Santa Rosa

“Se a gente recebesse incentivo do governo, a gente teria o nosso ponto de venda na beirada da praia, hoje a gente não tem, não recebe nenhum apoio”, lamenta Wellington.

O negócio se sustenta por meio da colaboração familiar. Enquanto Wellington se dedica à comercialização, os seus primos vão ao mar em busca dos peixes. O comerciante perde as contas das décadas vendendo naquele local – estima que há cerca de 30 ou 40 anos –, mas demarca o tempo sinalizando que, antes mesmo do asfalto chegar, ele já estava ali. Mesmo com os longos anos, a urbanização diante dos seus olhos, é a principal ameaça: “Estamos sem saber para onde ir, porque os moradores do prédio, de certeza, não vão querer que a gente fique aqui na frente vendendo peixe, e a gente está sem saber para onde ir, tá entendendo?”

 

Durante a conversa, Wellington também expressou sua indignação com o Governo. O comerciante explicou que não recebe nenhum incentivo dos órgãos públicos para auxiliar na melhoria do seu trabalho para ter um local apropriado para vender os peixes em sua banca. “Eles não se preocupam comigo e com outras pessoas que dependem disso aqui para sobreviver. Não recebo nada, nem uma visita das autoridades para ver a situação do meu trabalho”, pontua.

Crédito: Lucas Silva

Wellington relata o que representa a sua banca de vendas.

Em Sergipe, a pesca artesanal é praticada majoritariamente nos estuários, que são corpos de água parcialmente encerrados, formados por rios e córregos que fluem até o oceano e se misturam com o mar. Segundo o levantamento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a frota pesqueira artesanal do Brasil era composta por aproximadamente 450 mil embarcações e empregava cerca de 1,5 milhão de pessoas em 2021.

No estado, esse número corresponde a 10 mil pessoas; no entanto, não existe nenhum registro que especifique a quantidade exata de embarcações para esse total de pescadores. A pesca artesanal é responsável por uma captura média anual de 3,4 mil toneladas de pescado no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Vale destacar também que 70% desses trabalhadores vivem exclusivamente da pesca. Em Sergipe, essas pessoas estão concentradas, em grande maioria, nas comunidades tradicionais da pesca artesanal, geralmente localizadas nos rios Poxim e Sergipe, além das margens do Rio São Francisco.

 

Pensando na sustentabilidade a longo prazo da prática da pesca, a Companhia De Desenvolvimento Do Vale São Francisco de Sergipe (Codevasf) realiza, por ano, cerca de 20 peixamentos no estado. Os peixamentos são ações de repovoamento realizadas com alevinos, como são chamados os filhotes de peixes, e nesse processo são inseridas espécies nativas de peixes da bacia hidrográfica, como curimatã-pacu, pacamã e piau.

 

Anualmente, a Codevasf lança cerca de 1 milhão de alevinos nessas ações de repovoamento. A maior parte delas é realizada no Rio São Francisco. Esses peixamentos acontecem com frequência em açudes, lagoas e pequenas barragens em outras localidades, lançando alevinos de espécies como tilápia e tambaqui.

 

Segundo o assessor de comunicação da Codevasf em Sergipe, Fernando Pires, nos últimos anos, a empresa também passou a realizar ações de repovoamento com pós-larvas de camarão-pitu, que é uma espécie em extinção na bacia do Rio São Francisco e que tem grande valor econômico na atividade pesqueira. “Os peixamentos são importantes para a recuperação dos estoques pesqueiros, contribuindo para o equilíbrio ecológico na bacia do Rio São Francisco e para a manutenção da pesca artesanal na região, que é uma importante fonte de renda e alimento para as comunidades ribeirinhas”, pontua Fernando.

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Foto: Thaisy Santa Rosa

O repovoamento colabora para a manutenção de uma comunidade que vai do pescador ao vendedor e que mantém viva essa cultura. 

A continuidade desse trabalho contribui para que as espécies nativas de peixes da bacia do São Francisco continuem existindo, uma vez que a poluição, a construção de novos prédios, a pesca em excesso e a presença usinas hidrelétricas, por exemplo, dificultam a reprodução natural ao longo das últimas décadas.

 

Além do prejuízo econômico e ambiental, a cultura e memória da comunidade pesqueira que frequenta o Rio Sergipe também pode ser prejudicada por esses fatores, isso significaria o silenciamento de uma cultura ancestral. Um exemplo disso são as famosas histórias de pescador, caso não exista pescadores, evidentemente, não haverá histórias a serem contadas.

HISTÓRIA DE PESCADOR

Diferente do que acredita a crença popular, as histórias de pescador nem sempre  relatam inverdades. Com o trajeto diário, a longa convivência com outros pescadores e os encontros com aqueles que passeiam pelos rios, a bagagem de histórias costuma ser mais cheia que as próprias redes. 

 

Elenilton Santos, 42, mais conhecido como Lico, é um dos pescadores que vivem das águas do Rio Sergipe. Os que aguardam à margem do rio veem o pescador surgir pequeno entre as águas e crescer à medida que o seu barco navega para a costa.

 

Lico retornou da sua pescaria com peixes que cabiam em um balde e logo expôs para os atravessadores (revendedores de pescados), que ficam à espera de um pescador. A partir daquele momento, iniciou-se uma espécie de leilão pelos peixes: “7, 8, 9… vendido!” Cada número representa uma dezena, ou seja, 70, 80 e 90 reais.

Foto: Thaisy Santa Rosa

Pescar não basta, todos os dias é necessário ter um preço acessível para os atravessadores

Entre a venda do peixe e o retorno ao rio, Lico, que segurava o dinheiro dos peixes em uma mão e o balde na outra, contou uma história que os seus filhos também costumam ouvir. Em uma certa noite, de muita chuva, após voltar do seu antigo trabalho de vigilante noturno, resolveu pescar com o seu pai, que estava receoso com a chuva e sem esperança de voltar com algum peixe, mas cedeu à esperança e insistência do filho. Eles remaram contra a maré, em direção a um pesqueiro distante e o resultado foi melhor que a intuição do pescador: “Quando cheguei lá, larguei a rede, o barco veio quase afundando de bagre e pescada [tipos de peixe]. Era peixe de perder de vista! Aí eu disse: ‘aí, tá vendo?””.

Crédito Thaisy Santa Rosa

 O pescador Tonho lamenta o descaso das autoridades públicas. “Podiam ao menos fazer uma benfeitoria”.

BATISMO NAS ÁGUAS

Um outro aspecto que se perde com o fim das produções são as tradições pesqueiras, juntamente com suas histórias,  memórias e  cultura. As tradições pesqueiras reforçam que as embarcações são uma extensão dos pescadores, parecidas com filhos, que exigem zelo, atenção e um nome de batismo. Entre nomes inusitados e comuns, as embarcações sempre possuem sua marca, um  batismo que conta muito da trajetória daqueles que navegam. Esse é o caso de um dos barcos da Orlinha, batizado de Dandara. O nome feminino engana aqueles que acreditam se tratar de uma história romântica. Na verdade, Dandara era a cachorrinha do pescador, que faleceu aos nove anos em decorrência de uma complicação no pós-parto.

 

Antônio Santos, conhecido como Tonho, fala de Dandara com os olhos marejados e com palavras de carinho, sua pequena companheira acompanhava ele e a sua família naquela mesma embarcação quando navegavam a passeio. “Dandara ia sempre na frente do barco, parecia guia turística, ela gostava de ir com a gente. Em homenagem, antes dela falecer, eu coloquei o nome desse barco, ela era praticamente a dona do barco. Ela morreu e o nome ficou”.

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Crédito Thaisy Santa Rosa

  Tonho pesca há 28 anos e divide a carreira de pescador com a função de servidor público no Instituto Federal de Sergipe (IFS).

Se por um lado Tonho batizou o nome da sua embarcação por conta de um amor, Paulo Dantas, mais conhecido como “Paulo Surdo”, escolheu o nome por um motivo inusitado. O pescador tem 64 anos e desde os vinte frequenta o Rio Sergipe todos os dias, de domingo a domingo, em busca do seu sustento. Sorridente, o homem de pele negra e com baixa audição desde a infância carrega no pescoço um colar de prata com pingente de cruz, exibindo a fé que o acompanha diariamente.

 

O barco, comprado de segunda mão, de coloração esverdeada, acompanha a labuta do pescador há dois anos e mostra, com grafia irregular, o nome “ói a boia viu”. Ao ser questionado sobre o motivo da escolha, brinca: “Eu sou surdo, mas tem muito cego onde eu pesco, aí você larga a rede e o cara vem e larga por cima. Assim já fica o aviso: ói a boia, viu?”

 

Apesar de brincalhão, Paulo não esconde que a vida de pescador não é fácil e que, assim como os seus colegas de trabalho, as incertezas pairam na cabeça e o medo de acordar e não ter mais espaço para sua profissão é uma dura realidade a ser vivida. 

Fotos: Thaisy Santa Rosa

 Seu Paulo Surdo é o pescador mais antigo da Orlinha, os companheiros de pesca o descrevem com respeito e admiração.

Paulo Surdo, assim como seu Bóca, Wellington, Antônio e Lico carregam em comum a tradição e a paixão pelo que fazem e, por conta disso, temem a extinção da pesca artesanal devido à fragilidade de políticas públicas de incentivo a essa atividade. E o que sobra são os medos. Medo de faltar o dinheiro do aluguel, de não conseguir colocar comida na mesa e, além de tudo, o medo de perder a tradição que ajudou a construir as suas memórias. Se a pesca artesanal acabar, todos esses sonhos e lembranças também terão um fim. 

Produção labotarial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe

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Produção labotarial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe

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