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Quando a relevância se torna um problema

Nossa Senhora da Glória é responsável pelo gerenciamento de água na região do sertão; essa responsabilidade, no entanto, traz mais problemas que soluções para o município

Por: Danielle Caetano e Netto Ribeiro 

Maria Bispo, 78, aposentada, levanta todos os dias logo pela manhã, em seguida, limpa sua casa, depois vai regar suas plantas. A sertaneja faz parte dos 800 moradores de Lagoa Bonita, mais conhecido por antiga Feirinha, um pequeno povoado de Nossa Senhora da Glória, município localizado no sertão sergipano. Apaixonada por plantas, ela diz que um de seus passatempos é cuidar delas. Mas o seu dia a dia não é fácil. Água encanada já não está em suas torneiras há cerca de dois anos. 

Para que Maria Bispo e seu esposo, o comerciante Raimundo Bispo, 84, possam consumir água, eles dependem de carros-pipas do município. “Pelo gosto da gente, era de ter água direto. Para a gente que quer abrir o chuveiro, tomar um banho. Mas quando a gente vai tomar banho, tem que ir buscar água na vasilha, é assim’’, destaca ela.


 

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Foto de Dona Maria e seu Raimundo Bispo. webp..webp

Foto: Daniele Caetano

Dona Maria e seu Raimundo ainda não podem prever quando ou se poderão pegar água da torneira. 

O povoado Lagoa Bonita fica distante cerca de 25 km da zona urbana de Glória, e possui muitas histórias de luta e superação em busca de uma vida melhor, como é o caso de Maria e Raimundo, casal que mora na comunidade desde sua criação, há quase setenta anos. 
 

Sergipe e a estiagem predominante em algumas localidades do estado

Anualmente em Sergipe muitos municípios entram em situação de vulnerabilidade e decretam situação emergencial por causa dos problemas envolvendo a estiagem e má distribuição de água em determinadas regiões. Estas localidades são assoladas por esta problemática, o que impacta negativamente a vida dessas pessoas que convivem ali.

De acordo com o coordenador de Gestão e Integração de Recursos da Defesa Civil Estadual, Edivaldo Celestino, em novembro de 2023 mais de 63,8 mil pessoas em dez municípios de quatro regiões sergipanas (Alto Sertão, Médio Sertão, Agreste e Centro-sul) estavam em seca e situação de emergência. Algumas cidades do interior do estado, além de enfrentarem um longo período de estiagem, não conseguem ser atendidas de maneira eficiente pela companhia responsável pelo gerenciamento de água e esgoto.

Dentre as regiões mais afetadas está o Alto Sertão sergipano, cujo município mais populoso é Nossa Senhora da Glória, com uma população estimada de 41.212 pessoas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele se destaca por fazer parte do semiárido e sofrer diretamente os impactos da seca e da falta de chuvas, de modo que está localizado em uma região que possui um exaurimento hídrico predominante, quando há um regime irregular de chuvas que compromete a disponibilidade de água, afetando não só o consumo humano, como também a agricultura familiar e a agropecuária.
 

Em Sergipe, existem iniciativas como o ‘Programa Sergipe no Pódio’, que foi criado em 2023 e é o principal programa mantido pelo governo estadual para incentivar o esporte profissional. Em 2023, o projeto ofereceu uma contribuição financeira no valor de 20 mil reais para que cada federação participante pudesse arcar com o transporte dos atletas sergipanos para as competições nacionais e internacionais. As Federações Aquática de Sergipe, Sergipana de Remo e Sergipana de Surfe foram algumas das beneficiadas com o programa, além de outras 12 federações olímpicas do estado, totalizando cerca de 300 mil reais em investimento, segundo a Secretaria Estadual de Esporte e Lazer (Seel). 

 

Ainda conforme a pasta, em 2024 o programa será continuado e há previsão de reajuste do valor do benefício. O Sergipe no Pódio é concedido por meio de passagens aéreas e hospedagem, conforme solicitação e demanda. Além disso, a pasta alega ter concedido apoio à realização de eventos esportivos no estado, como o Campeonato Brasileiro de Surfe Master, realizado na Praia da Caueira, em 2023, e do Norte-Nordeste de Natação, realizado no Parque Aquático Zé Peixe, em Aracaju, no ano de 2022, além de auxiliar as federações e atletas. 

 

Entretanto, nenhuma dessas iniciativas garante um custeio regular de despesas básicas para os esportistas, o que ainda cria insegurança e pode inviabilizar a manutenção de uma carreira. Questionada sobre a necessidade de uma iniciativa que garanta um benefício mensal para custeio das despesas pessoais dos atletas, a Seel justifica que está previsto para esse ano o lançamento do programa Bolsa Atleta Estadual. Entretanto, não há data prevista para lançamento. 

 

Ainda assim, o presidente da Federação Aquática de Sergipe (Fase), Antônio Aragão, destaca que a natação de alto rendimento no estado está avançando. O principal ambiente de preparação para competições é o Parque Aquático Zé Peixe. De acordo com Aragão, os atletas de alto rendimento podem contar com uma boa estrutura, que também é utilizada para a realização de competições regionais e nacionais. No entanto, Aragão reforça que há necessidade de apoio para arcar com os custos mais significativos, relacionados à compra de materiais para treino e competição. Para o presidente da Fase, parcerias sólidas com a iniciativa privada poderiam ajudar a resolver essa demanda.  

Créditos: Daniele Caetano.

 Dona Maria Bispo relata como é a sua vivência no povoado Lagoa Bonita e como se dá sua relação com a água.

No entanto, o problema vai para além da questão climática: a distribuição de água no município, realizada pela Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso) vem deixando muitos moradores insatisfeitos. Eles relatam estarem há mais de dois anos sem água encanada, como é o caso de José Bispo Farias, 43, filho de Maria e Raimundo. “Uma comunidade igual à Lagoa Bonita vem sofrendo muito. A gente utiliza a água aqui só pra consumo mesmo, só pra tomar um banho, nem sobra às vezes para limpar a casa”, relata ele. 
 

Glória se torna gerência regional de abastecimento de água do alto sertão 

Por se tratar de uma realidade anual, as localidades assoladas pelos longos períodos de estiagem, bem como a falta de água diariamente, já se preparam para decretar situação de emergência com antecedência, o que permite ao município afetado receber apoio do governo federal e estadual. A decretação, por sua vez, ocorre por meio de uma solicitação de reconhecimento do cenário de emergência. Após o decreto é feita uma comunicação entre município, Defesa Civil, estado e Governo Federal. 

O período de estiagem costuma iniciar entre os meses de setembro e outubro quando os municípios começam a receber as solicitações de abastecimento de água da população da zona rural. A partir daí, as coordenadorias da Defesa Civil locais vão a campo e produzem um relatório georreferenciado sobre a situação. Na sequência, o documento é enviado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, através do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID). Depois disso, juntamente com os documentos do Formulário de Formação de Desastres (FFD) preenchidos, toda a papelada é encaminhada para Brasília e para a capital do respectivo estado a que pertence o município solicitante. 

Após o reconhecimento federal da situação de emergência, os municípios passam a receber o suporte do estado e do Governo Federal, a exemplo de carros-pipas. A Defesa Civil municipal informou que são 15 carros-pipas a serviço de Nossa Senhora da Glória. Porém, em relação à distribuição de água, o município possui um déficit de abastecimento causado por uma sobrecarga no fornecimento da água distribuída pela Deso.
 

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Foto:  Netto Ribeiro

Manancial, como é chamado, é o local onde os carros-pipas aguardam para abastecer as carradas de água.

O que muitos moradores não sabem é que Glória é uma gerência regional de abastecimento de água do alto sertão, abrangendo outros 20 municípios. Diariamente, a água que chega até a Deso abastece várias cidades circunvizinhas como: Frei Paulo, Carira, Pinhão, Pedra Mole, São Miguel do Aleixo e Nossa Senhora Aparecida. Essa água tem como fonte de captação o Rio São Francisco, em Porto da Folha, também no Alto Sertão sergipano.

A Defesa Civil municipal destacou que Glória, em média, recebe 50 caminhões-pipa por dia para essa redistribuição, além dos que atendem apenas à cidade. São aproximadamente três “carradas” (caminhão cheio de água) que são levadas para os outros municípios. Por causa dessa quantidade significativa de água que abastece as outras cidades, a população da zona urbana e rural de Glória relata uma dificuldade para a utilização dessa água.

Moradora da zona urbana há cerca de seis anos, Genilda Morais, 54, mora com o esposo, três filhos e uma neta, e relata como atravessa essa dificuldade. “Aqui em casa tem dias que eu fico acordada até duas ou três da manhã. É triste viver numa situação dessa. Todos os meses eu pago dois talões de água: o da Deso, e os galões de água mineral, que eu chego a pagar quase 200 reais por mês”, afirma ela. 

Desse modo, é evidente que a problemática da má distribuição no município de Glória vai muito além do que o imaginado. De acordo com seu Raimundo, muitos moradores estão deixando o povoado em busca de um lugar onde a água seja mais acessível. “O sofrimento é grande. Tem gente saindo do povoado… Quem tem vasilha pequena fica passando sede. Quem tem mais reservatórios de água pega mais, quem não tem, fica com pouquinha mesmo ", diz ele.

O gerente da Deso responsável pela região de Glória, Raul Mota, informou que neste ano a companhia está expandindo a rede de adutoras que vai de Glória para os municípios de São Miguel do Aleixo, Frei Paulo, Pinhão, Nossa Senhora Aparecida e Ribeirópolis, visando melhorar o sistema de redistribuição de água para estas localidades. Além disso, há outra construção no município sendo finalizada para fazer uma nova ligação que leve água até Ribeirópolis e interligue dois novos reservatórios em Glória, nos bairros Brasília e Divinéia. Segundo Raul, o intuito é melhorar a distribuição de água na zona urbana do município. 
 

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Foto: Daniele Caetano

A obra realizada pela Prefeitura Municipal de Nossa Senhora da Glória corta boa parte do centro da cidade.

 


Na comunidade conhecida como Miguel José, cerca de 15 km da sede de Glória, Jocelino Alves, 39, e a sua mãe, dona Creuza Alves, 73, possuem uma cisterna para receber a água dos carros-pipas enviados por Glória. A família solicita a carrada e a Defesa Civil encaminha o carro. Essa água serve para o uso cotidiano, tanto para beber e tomar banho quanto para lavar roupa, cozer os alimentos e lavar a casa. 

A felicidade de Jocelino ao recepcionar o caminhão-pipa é palpável. Sua família possui duas cisternas: uma para o uso humano e outra para servir aos animais. Mas no período do inverno, há dificuldade de receber essa assistência, por conta das más condições das estradas que atrapalham o acesso dos caminhões, e é nesse momento que a família passa a contar com a água que cai do céu. Mas não se trata de qualquer chuva. "A gente capta através do telhado da casa quando tem trovoada. Tem a biqueira, têm os canos ao redor da casa, a gente deixa dar uma lavagem na telha primeiro, deixa a  chuva lavar, depois coloca o cano embutido para a cisterna", explicou Jocelino. 
 

Jocelino e sua mãe no alpendre da casa. webp..webp

Foto: Netto Ribeiro

Dona Creuza e seu filho Jocelino utilizam água da cisterna mais próxima da casa há mais de 15 anos.

 

Durante a visita, estava presente o coordenador da Defesa Civil do município, Lenaldo Leite, 58, que confidenciou ter vivido a seca na década de 1970, um período mais rígido do que o atual. Apesar das dificuldades de então, ter esse sistema de abastecimento via caminhões é um alívio se comparado ao que ocorria no passado. "Na minha época era muito difícil, apesar de hoje no período de estiagem ser duro para a população, antigamente era mais complicado porque nem existia carro-pipa nem cisterna, a gente ia buscar água no tanque, dividindo com os sapos, a gente abanava os sapos pra pegar um pouco de água, no pote ou na lata", afirma Lenaldo.

Na Capital do Leite, a prioridade da água é para as empresas

Segundo a Lei n.º 8715, em 22 de julho de 2020, Nossa Senhora da Glória é reconhecida como a Capital Estadual do Leite. Por ser uma bacia leiteira, fazendeiros e proprietários de empresas de laticínios, como a Natville e Betânia, compram tickets de água para utilizarem ao seu favor, desfavorecendo a população da cidade. Lenaldo informou que por dia, são cerca de 20 carros-pipas que levam a água da Deso às empresas.

 

A grande quantidade de carros-pipas para abastecer outras localidades e empresas de laticínios interfere no trabalho de vários caminhoneiros, que chegam a dormir na fila para levarem suas carradas de água aos povoados de Nossa Senhora da Glória. Essa é a situação vivida por Valdeci Sousa, 49, que trabalha há 3 anos e meio para a prefeitura de Glória e tira desse trabalho o sustento da família. “Hoje o abastecimento aqui está meio ruim. Temos que dormir aqui pra arriscar pegar duas carradas por dia, porque é muito caminhão para abastecer além das empresas de laticínios”, revela ele.
 

Possíveis soluções para o problema da distribuição de água 

Há cidades que passam por períodos de estiagem severa, mas não chegam a precisar do suporte do estado ou do Governo Federal. Esse é o caso de Nossa Senhora de Lourdes, localizada no Alto Sertão Sergipano; segundo o último IBGE divulgado em 2022, a cidade possui uma área territorial de aproximadamente 84 km² e quase 6,3 mil habitantes. Por conta da sua pequena extensão territorial e população, o município possui vantagens quanto à distribuição de água na localidade, diferente do que ocorre em Nossa Senhora da Glória.

 

Segundo o Secretário de Agricultura e Abastecimento do Município, Michel de Lima Farias, a prefeitura possui uma relação das comunidades que anualmente mais sofrem com os períodos de estiagem e, com isso, o órgão monta um cronograma de abastecimento utilizando os carros-pipas da própria gestão. “A gente já tem uma noção das comunidades que são afetadas com a seca e utilizamos o sistema de cisternas coletivas, ou seja, se um vizinho tem cisterna e o outro não, nós calculamos a quantidade de água para o uso dos dois e abastecemos essa cisterna para o uso coletivo” assegura o secretário. 

Já segundo Edivaldo Celestino, mencionado no início desta reportagem, os cidadãos são parte integrante do sistema de enfrentamento das secas. “A partir do momento em que há essa educação, esse racionamento e esse uso adequado da água, em que há essa conscientização sobre o seu manejo adequado, ela [a população] também acaba conscientizando os demais’’, afirma ele. 
Entre as medidas individuais destacadas por Edvaldo estão: não utilizar água de forma desordenada, ter o hábito de armazenar água em local adequado e sempre ter uma cisterna limpa. Ele também informa que os municípios que sofrem com a estiagem podem adotar medidas que farão a diferença durante o período de crise, como, por exemplo: aberturas de poços, limpeza de barreiros e barragens, racionamento e criação de sistemas de captação da água.

 

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Foto: Netto Ribeiro

Na casa de Jocelino e Creuza, a água armazenada na cisterna pode durar até 6 meses.

Historicamente, nas regiões afetadas por longos períodos de estiagem, popularizou-se a ideia de “combater a seca”. Com isso, a construção de açudes, adutoras, barragens e poços foram as ações mais empregadas pelos órgãos para lidar com a problemática. Porém, com a compreensão de que a questão da seca nessas regiões é um problema cíclico e natural, ou seja, sem possibilidade de acabar, um novo pensamento se fez necessário: o de conviver com o semiárido e lidar de maneira sustentável com as suas condições. 

Essa relação de sobrevivência deve, portanto, levar em consideração medidas sustentáveis, como, por exemplo, ações de conscientização em relação à preservação do meio ambiente, uso consciente da água, políticas públicas de economia e uso de potencialidades regionais, acesso a novas tecnologias de produção e distribuição de água, até medidas de inclusão de jovens e de fomento cultural nas regiões que enfrentam a seca e a falta de chuvas no Brasil. 

Produção labotarial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe

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