Revelando histórias,
desvendando o invisível
ELAS MUDAM A REGRA DO JOGO
Com determinação e ousadia, mulheres desbravam espaços no mundo esportivo
Por Mateus Ferreira, Ianna Mendonça e Vivian Ribeiro
“Você não pode jogar porque mulher não sabe”. “Mulher não tem força pra jogar”. “Você é mocinha, não pode ficar assim com os meninos, eles vão te machucar”. “Perder para mulher é fim de carreira”. “Esse não é o seu lugar”. “Nem sabe o que tá fazendo, sai daí”. Esse conjunto de ofensas, ordens e afirmações, não são estranhas a mulheres que resolvem buscar lugar em esportes considerados masculinos. Nos mais diversos cargos, como atletas, técnicas, assessoras, árbitras, as mulheres precisam lutar por espaço, pelo respeito aos seus corpos e pelo direito de viver do esporte.
A dedicação de personalidades, nacionais e internacionais, permitiu não só que mulheres se tornassem referências, mas também garantiu conquistas na luta pelos direitos femininos no mundo do esporte. Mesmo com avanços, a participação de mulheres em muitas modalidades ainda é marcada por esforços, inclusive, para garantir que as categorias femininas não sejam apenas o cumprimento de cotas.
Em questão de visibilidade midiática, enquanto os homens possuem ídolos em praticamente todas as modalidades esportivas, “meninas e mulheres têm poucas atletas em quem possam se espelhar, porque, apesar das atletas estarem sendo bem-sucedidas nos esportes, suas conquistas têm sido constantemente ignoradas pela mídia”, disseram Juliana Souza e Jorge Knijnik, na Revista Brasileira de Educação Física e Esporte. A falta de espaço, muitas vezes, se deve a um estereótipo que percebe o esporte, e algumas modalidades em particular, como interesses masculinos.
Na contramão do estereótipo, um estudo realizado na televisão italiana por Capranica e Aversa (2002) e publicado na Revista Brasileira de Educação Física e Esporte da Universidade Federal de São Paulo (USP) mostrou que as mulheres correspondiam a 40% da audiência durante as Olimpíadas de Sydney. A discussão em torno da visibilidade midiática está diretamente relacionada à sustentabilidade das práticas.
Isso porque, além das dificuldades para ingressar e se tornar profissional no esporte, o baixo interesse da mídia em cobrir competições e modalidades femininas implica em um público e uma audiência menores e, como consequência, os patrocinadores e a publicidade também são reduzidos.
No ano de 2023, a posse da primeira Ministra dos Esportes, assim como a transmissão, pela primeira vez, da Copa do Mundo Feminina de Futebol em televisão aberta são conquistas que não interrompem a luta e o anseio de muitas mulheres, mas se tornam combustíveis para avaliar, questionar e debater os direitos das mulheres nas mais diversas modalidades. Entre os sonhos alcançados e os que ainda estão por vir, continua necessário visibilizar as dificuldades e a saúde física e mental de mulheres que ousam desbravar e viver do esporte.
Cida Lisboa: passado e presente
Para quem gosta de vôlei e ainda mais de vôlei de praia, o nome Duda Lisboa não passa despercebido. A atleta coleciona títulos: aos 20 anos foi a campeã mais jovem do Circuito Mundial de vôlei de praia e, antes disso, tri-campeã do Mundial sub-19. Os fãs do vôlei de praia devem lembrar de muitos outros títulos da sergipana, mas o que talvez alguns não sabem, é que a dedicação e o talento se ligam ao da mãe, Cida Lisboa. Ex-atleta de vôlei de praia, ex-treinadora da seleção brasileira Sub-20 e atualmente professora de um Centro de Treinamento de vôlei de praia, Cida construiu uma história que inspirou não só a filha, mas muitas outras mulheres a ingressar no esporte.
Cida começou sua vida de atleta aos 15 anos, quando entrou para o projeto Priesp, que dava aulas de esportes variados para crianças do município sergipano de São Cristóvão. Entre as modalidades, estava o vôlei de quadra, com o qual Cida mais se identificou. Ao enxergar potencial na jovem, o professor do projeto a incentivou a ir estudar na capital, Aracaju, onde poderia ter seu talento lapidado.
Cida treina crianças e adolescentes em seu Centro de Treinamento (Foto: Igor Matheus/ Portal Infonet)
Durante sua trajetória, Cida participou de diversas competições dentro e fora do estado. “Eu dei uma pequena contribuição para que esse esporte fosse tão bem visto aqui no nosso estado”, disse Cida. Além de se formar no curso de Serviço Social e em Educação Física, enquanto ainda era atleta.
Durante sua carreira de atleta, Cida usava um terreno perto de sua casa para seus treinos. Enquanto treinava, crianças do bairro apareciam e pediam para jogar também. Porém, como eram inexperientes e estavam ali apenas para brincar, acabavam atrapalhando os treinos. Foi então que Cida resolveu separar um espaço de tempo para treinar as crianças, passando adiante o que aprendia.
Depois que se formou em Educação Física, Cida fez uma promessa de encerrar sua carreira de jogadora e focar em treinar os novos talentos que apareceriam em sua vida. Assim, ela criou o seu próprio Centro de Treinamento de vôlei de praia, onde dá aula para crianças e adolescentes, não só da sua cidade, mas também da capital e de outros estados.
Pouco antes de se tornar profissional, ela engravidou de sua filha, Duda Lisboa, e sua vida como atleta precisou ser pausada para dar atenção à maternidade. As viagens voltaram apenas quando Duda tinha três anos de idade, mesmo assim só podiam ser curtas. Depois de criar a filha nas areias do vôlei de praia e competir ao lado dela, Cida atuou como técnica da seleção brasileira sub-20 de vôlei de praia de 2016 até 2019 e foi treinadora de campeões da modalidade, incluindo Duda.
(O Centro de Treinamento da Cida fica ao lado de sua casa, na cidade de São Cristóvão/SE)
Cida é um exemplo de sonho alcançado. Ela e outras atletas na história dos esportes conquistaram espaços e garantiram que as gerações futuras tivessem a oportunidade de mostrar seu talento e receber reconhecimento por ele.
Olhar para o passado é pensar no agora
Assim como Cida, outras mulheres serviram de inspiração ao longo dos anos. Em algumas modalidades o pioneirismo de mulheres foi ainda mais necessário já que existiram, inclusive, exemplos de proibição legal para práticas. As pioneiras precisaram provar que os seus corpos não eram frágeis ou incapazes de sobreviver às altas pressões e dificuldades de alguns esportes.
Apesar de todo o progresso conquistado pela luta dessas e de outras centenas de personagens, muita coisa ainda pode e precisa melhorar. Um exemplo disso, é o amparo legal. É válido lembrar que até hoje não existe nenhuma lei brasileira no âmbito Federal que vise assegurar a continuação de uma remuneração durante a época de gravidez e pós-parto para as atletas. Sobre esse assunto, existem proteções gerais, previstas no capítulo III da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas só são asseguradas para as trabalhadoras que possuem vínculo empregatício, o que não é vivenciado por muitas atletas.
Em relação a Lei 9.615-98, conhecida como Lei Pelé, que cuida dos contratos dos atletas profissionais, há alguns direitos garantidos, como férias de 30 dias, repouso semanal remunerado e jornada de 44 horas semanais. No entanto, a Lei não possui nada que se refira às especificidades do sexo feminino.
O mais próximo disso, é o projeto de Lei 1084/23, do Poder Executivo, proposto este ano por Ana Moser e Cida Gonçalves, dos Ministérios do Esporte e das Mulheres, que visa garantir que as atletas continuem recebendo o pagamento da Bolsa Atleta por um período de 15 meses, durante o tempo de ocorrência da gestação e do pós-parto. O projeto, que está em análise na Câmara dos Deputados, é uma alteração da Lei 10.891/04, que instituiu a Bolsa Atleta, uma política pública que apoia financeiramente os atletas de alto rendimento em seu período de treinamento.
De acordo com o texto atual, a Bolsa é destinada pelo prazo de um ano e, ao fim do seu recebimento, a atleta precisa prestar contas, comprovando que durante esse período manteve-se em plena atividade esportiva e participando de competições. Pelo projeto, essa comprovação não será exigida e as atletas gestantes ou que estão no período de pós-parto terão prioridade para a sua renovação.
Em construção
“Não desista, se é o que você quer, continua”. É isso o que Juliana Rosa, lateral direita do Estanciano, um time de futebol feminino do município sergipano de Estância, costuma ouvir da sua família toda vez que pensa em desistir do seu sonho de ser uma jogadora com carreira a nível nacional. Iniciada no futebol aos 10 anos de idade, se interessou pelo esporte porque via seus irmãos, amigos e colegas jogando. Logo depois, ela se juntou a eles. “Eu achava bonito. Inclusive, tinha amigos que chutavam com a perna direita e com a perna esquerda. Eu achava isso muito bonito e hoje chuto com as duas”, conta a atleta.
(Juliana Rosa é natural de Estância/SE e defende o clube desde a sua criação, em 2019. Foto: Ianna Mendonça)
Começar jogando com os meninos parece ser o começo da história de todas as meninas que se aventuram nesse universo. E junto a isso, vêm as piadinhas, que querendo ou não, causam constrangimento e podem servir de barreira para muitas. As fontes são diferentes, mas os comentários e termos que elas escutam são sempre os mesmos. “Maria Sapatão”, “Maria Chuteira”, “lugar de mulher é brincando de boneca”, “mulher não sabe jogar”. Em relação a isso, as nossas entrevistadas respondem: “Nunca liguei, só ia”. E foi com essa postura, que hoje elas ocupam cada vez mais esse espaço.
Maria Nierys tem 21 anos, é natural de Alagoas e começou a jogar quando tinha apenas sete. Antes de ser goleira do Estanciano, jogou no Canindé, da cidade sergipana de Canindé de São Francisco e conta que se interessou pelo futebol vendo seus irmãos jogarem. Ela conta que o desejo de ser atleta ficou mais sério quando começou a assistir partidas de futebol na TV. “Eu via o pessoal lá e me dava aquela vontade. Aí eu falei: ‘cara, eu quero isso para mim!’ Meu pensamento sempre foi assim: ‘eu quero um dia me tornar uma jogadora profissional’, só que eu pensava isso jogando na linha, não no gol’’.
Logo no início, Nierys enfrentou a preocupação de seu pai, que ficava receoso por ela estar jogando entre os meninos. “Vão te machucar”, era o que ela costumava ouvir. Mas ele nunca apresentou uma resistência ou preconceito em relação a deixar a filha seguir o seu sonho.
(Maria Nierys é a atual goleira do Estanciano Esporte Clube, mas começou como atacante. Foto: Vivian Ribeiro)
A mesma situação foi vivida por Luzivânia Oliveira, que tem 23 anos e começou aos 15, jogando como goleira no futsal. Atualmente, ela joga no Estanciano como volante. “Tinha um time de futsal na minha cidade, aí uma amiga me chamou.. Aí eu fui conversar com meus pais para ver se eles deixavam. No primeiro impacto eles disseram, ‘Ah não, você vai se machucar’, mas depois liberaram”, relembra.
Além do Estanciano, Luzivânia já jogou em clubes da capital sergipana. Em 2017, fez parte do antigo Boca Júnior. Em 2019, integrou o Santos Dumont e, em 2021, jogou pelo Cotinguiba. Ela conta que quase chegou a participar do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, da série A2, quando jogava no Santos Dumont, pois o clube participou desse campeonato por dois anos seguidos. No entanto, na ocasião, ela não pode jogar em nenhuma partida, por estar lesionada.
(Luzivânia é a que está mais à frente na lateral direita da fotografia. Foto: Mateus Ferreira)
Mas os sonhos dentro do esporte não se limitam às jogadoras, as pessoas que compõem os outros segmentos esportivos também têm os seus e a árbitra FIFA Thayslane de Melo Costa, é um exemplo disso. O interesse pelo esporte surgiu desde muito cedo, pois seu pai jogava futebol profissionalmente. “Joguei bola por muitos anos, desde a escola até a formação acadêmica e eu sonhava em ser jogadora de futebol”. No entanto, com o passar dos anos, começou a pensar na sala de aula como uma outra opção, e foi isso o que a fez cursar educação física na Universidade Tiradentes (UNIT).
Foi durante o período da graduação, que ela teve uma oportunidade inesperada. Na época, estava sendo realizada, na UNIT, a divulgação de um curso de arbitragem e ela ficou interessada. “Eu fiquei em dúvida se participava ou não, por pensar que seria a única mulher inscrita no curso. Semanas se passaram e eu sempre ia lá ver se tinha alguma [inscrição]. No fim, quando decidi me inscrever, cheguei lá e além de mim havia outras seis mulheres matriculadas”. Ela terminou o curso em 2008, e em 2009 já integrava o quadro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), com mais três sergipanas.
SEMPRE O DOBRO
Para as mulheres, ocupar certos lugares na sociedade nunca foi fácil. No esporte, não é diferente, às vezes, as dificuldades são ainda maiores, devido ao histórico recente de proibição, vale lembrar que até 1978 elas eram proibidas de praticar qualquer tipo de modalidade, além de não terem espaço para atuar em profissões ligadas à área.
A ex-atleta de vôlei de praia e atualmente professora da modalidade, Cida Lisboa, conta que quando começou a atuar, as discrepâncias, principalmente em relação a premiações, eram muito grandes. “Os salários das mulheres eram menores que os dos homens e a premiação feminina era inferior a masculina. Existia muita discriminação entre o atleta masculino e o feminino”.
Contudo, foi por meio do nome de uma mulher simples, sergipana e natural de São Cristóvão que o vôlei de praia começou a crescer no território sergipano e, consequentemente, as oportunidades acenderam. “A gente não tinha tanto apoio. Os circuitos não vinham muito para Sergipe, por ser um estado pequeno, e como eram muitos atletas participando, ficava mais difícil. Quando eu comecei a despontar no esporte nacional, me deram a ideia de trazer mais o esporte para Sergipe. A partir daí, foi crescendo”.
Foi durante sua ascensão que Cida teve Duda Lisboa, que seguiu os passos da mãe e atualmente é campeã olímpica de vôlei de praia. A professora relata que, na época após sua gravidez, não recebeu nenhum tipo de auxílio ou suporte do Governo. “Antes não existia isso, mas agora as mulheres já conquistaram, principalmente essa parte de pontuação. A gente jogava o circuito, fazia uma quantidade de pontos e engravidava. Quando voltava, um ano depois, estava zerada. Hoje em dia não, os pontos congelam”, exemplifica.
(Duda Lisboa seguiu os passos da mãe e acumula diversos títulos no vôlei de praia. Foto: Arquivo pessoal)
Outro ponto conquistado pelos esportistas hoje em dia são os auxílios. O Bolsa Atleta, por exemplo, que contempla mulheres e homens, é um programa do Governo Federal que, em 2023, destinou apoio a 5.898 atletas olímpicos e a 1.970 representantes de modalidades paralímpicas. A presença feminina tem crescido e, atualmente, 3.478 do total das bolsas (44,2%) são para mulheres e 4.390 (55,8%) para homens.
No mês de março de 2023, o Governo anunciou um Projeto de Lei que deixa o Bolsa Atleta ainda mais completo para atletas femininas, garantindo que elas recebam até 15 parcelas mensais sucessivas do benefício, mesmo afastadas de competições por conta de gravidez, como já citado mais acima. Durante a cerimônia do Governo que anunciou a mudança, a ministra do Esporte, Ana Moser, avaliou a nova norma, que ainda falta ser aprovada no Congresso Nacional.
“A adequação do Programa Bolsa Atleta é uma ação importantíssima para proteger a atleta mãe, que precisa de suporte e proteção para que seus direitos sejam respeitados a partir da licença no período necessário. É também uma política importante para garantir que sua condição esportiva possa ser retomada sem prejuízo”, afirmou a ministra durante a cerimônia do Governo.
Para Cida, as batalhas que tanto ela, como outras atletas travaram no passado, foram necessárias para que direitos como esses pudessem ser conquistados nos dias atuais.“As batalhas do passado representam segurança. A gente vê que valeu a pena todas essas lutas, porque agora estamos de igual para igual com o masculino e não devemos baixar a cabeça para ninguém. Devemos continuar lutando, alcançando nossos objetivos e ocupando os lugares que devemos ocupar. No decorrer dos anos, a gente veio conquistando esse espaço, e acredito que daqui para frente será melhor”.
A realidade de Cida Lisboa, que viu as premiações e os salários desiguais chegarem à equidade, não é a mesma experimentada pelas meninas do Estanciano. O clube feminino de futebol, que representa Sergipe a nível nacional, na Série A3 do Campeonato Brasileiro de 2023, mostra que a igualdade entre mulheres e homens no futebol, infelizmente, ainda não é realidade no Brasil.
A goleira da equipe de Estância, Nierys, conta que sua primeira participação em competições foi na modalidade de Fut 7. Para ela, foi uma boa experiência, mas desabafa que se sentiria mais incentivada se a premiação fosse melhor. “Daria uma força a mais, porque a gente se desloca do nosso lugar para ir e às vezes só ganhar título e nada mais… mas é uma experiência”, pondera.
Para a jovem, o futebol feminino carece de boas premiações, igualdade salarial, patrocínios e visibilidade. Na concepção dela, outras meninas se sentiriam mais motivadas a seguir a carreira de atleta caso tivessem esse tipo de retorno. Além disso, lembra que as partidas de futebol feminino não são transmitidas pela TV e são pouco comentadas nas redes, mesmo que hoje em dia o engajamento tenha crescido mais. Esse apoio por parte da mídia e patrocinadores seria de grande ajuda para ajudar a fomentar a participação feminina nos esportes em geral.
“As mulheres também são capazes de levar títulos e de construir qualquer coisa”, enfatiza Nierys, que levanta a bandeira de que um esporte não é mais masculino ou mais feminino. Para ela, esses estereótipos precisam ser quebrados. “Eu acho que precisa começar a mudar essa parada de que é masculino, porque eu acho que não é para um gênero e sim para todos que sentem vontade de fazer”, comenta.
Além do retorno financeiro e dos estereótipos, Juliana Rosa, que também defende as cores do Estanciano, lembra de um outro ponto que enfrentou quando estava no início da sua carreira: a falta de estruturas necessárias para realizar as práticas. “No começo era bastante difícil porque não tinha campo, não tinha clube, não tinha professores. A gente treinava na rua mesmo, jogava a babinha e foi só em 2019 que eu passei a ter tudo isso”, acrescenta.
Fora do universo das atletas, as dificuldades também acompanham as mulheres que sonham em atuar profissionalmente em funções que envolvem o esporte, como jornalismo esportivo e arbitragem. Millena Pscheidt, que atualmente trabalha na assessoria de imprensa da base do Vasco da Gama, conta que foi a primeira mulher a trabalhar nesse mesmo cargo em outros dois clubes pelos quais passou, no começo da carreira, o Marcílio Dias, de Santa Catarina, e o XV de Piracicaba, do interior de São Paulo.
“Fui a primeira no Marcílio Dias e no XV. Nos dois não vou dizer que foi fácil, porque fácil não é. Mas eu tive muita colaboração para que meu dia a dia fosse confortável”. Segundo ela, no começo, por ter iniciado muito cedo, com apenas 21 anos, ainda tinha receio com relação à área. “Comecei com o pé atrás com as pessoas, por não saber como seria o dia a dia. Mas eu tenho a noção que sempre saí deixando falta. Até hoje, por exemplo, o Marcílio já me ligou me chamando para voltar”.
A jornalista conta, também, que os maiores empecilhos no início envolviam questões com entrada nos vestiários, já que muitas vezes os jogadores estavam se trocando e não tinha como uma mulher ter acesso ao local, além das viagens de ônibus para competições. “Mas no Marcílio eu sempre tive pessoas que brigavam para eu ter as mesmas oportunidades que todo mundo”.
(Milena Pscheidt é formada em Jornalismo na faculdade Univali. Foto: Arquivo pessoal)
Já no XV, a experiência foi um pouco diferente. Isso porque ela chegou para comandar o programa de sócios, mas precisou assumir a assessoria, após outro jornalista pedir demissão. A diretoria teve certo temor se daria certo, visto que nunca havia tido a experiência de uma mulher no comando desse cargo, mesmo em um time de 109 anos de história.
“A gente teve uma reunião antes de eu começar a acompanhar o dia a dia do time e conversei com o gestor de futebol. Eu falei exatamente isso para eles: ‘eu sei que para vocês é uma coisa nova, mas para mim não é. Então deixa que eu vou fazer o máximo para dar conta e para ser bom para todo mundo. Se é uma coisa nova ter uma menina no meio, imagina eu ter que lidar com 30, 40 homens em uma comissão”.
Um comentário constante entre as mulheres que assumiram funções que historicamente foram ocupadas por homens, seja na assessoria, seja em outros cargos de liderança, é a necessidade de sempre mostrar e fazer muito mais para receber reconhecimento. “Quando a gente é mulher e está no futebol, parece que temos que fazer o dobro. Não basta você ser bom, você tem que ser muito bom”, ressaltou Millena Pscheidt.
Para Thaylasne de Melo Costa, árbitra que está no quadro da CBF desde 2009 e desde 2019 no da FIFA, esse preconceito com a presença feminina sempre existirá, muito devido a questão social e cultural do país.
A árbitra relata que começou como assistente em jogos amadores e de base, para depois começar a atuar no profissional – seu primeiro trabalho foi na segunda divisão do Campeonato Sergipano. Neste ano, ela comandou o trio feminino responsável pela arbitragem da final do Sergipão de 2023.
“O tempo todo, temos que fazer essa reafirmação que a gente está fazendo um trabalho sério, que somos liderança, mas que acima de tudo, precisamos respeitar e nos dar ao respeito, para que as pessoas respeitem, também, a nossa função, e acima de tudo que tenham uma relação de confiança”, conta Thayslane e acrescenta que além da cobrança como pessoa, há também a constante demanda por provar a qualidade do seu trabalho.
“Ao assumir o papel de liderança, às vezes somos questionadas e, muitas vezes, mostramos através do nosso trabalho que poderiam nos ver atuar primeiro ou nos dar essa credibilidade e, só depois, fazer seu entendimento”.
Luta e determinação é o que define a mulher que começa a trabalhar em um meio tão masculino como o esporte. Se atualmente, mulheres como Thayslane conseguem realizar essas funções com segurança e chegam em níveis altos, como o quadro FIFA, é porque existiram outras que lutaram para que isso acontecesse. É o caso da primeira mulher na arbitragem, a brasileira Asaléa de Campos Fornero Medina, conhecida historicamente por “Léa Campos”.
(Leá Campos já apitou no Brasil, Europa e América Latina. Foto de Arquivo)
Nascida em 1945, na cidade de Abaeté, em Minas Gerais, ela foi a primeira mulher reconhecida pela FIFA, no mundo, como árbitra de futebol. Na época da ditadura militar, quando era proibida a participação feminina em certos esportes, Léa Campos foi presa 7 vezes porque queria apitar. A profissional só conseguiu trabalhar oficialmente em seu primeiro jogo na década de 70.
Hoje em dia, as dificuldades ainda persistem, mas a esperança é de que, a cada luta e a cada espaço conquistado, esses preconceitos sejam superados. “A nossa sociedade ainda precisa quebrar muitos tabus em relação a presença da mulher no futebol, na comunicação, na política, liderando os cargos que tem representação em todos os contextos. A gente precisa compreender e levar para as pessoas esse tipo de informação e questionamento”, afirmou Thayslane.
“Ainda continuamos na luta por questões simples. A necessidade de oportunidade de maneira igualitária. Quando eu comecei, tive muitos questionamentos, o porquê de ser árbitra, o porquê de querer comandar jogos masculinos. Hoje, graças a Deus, a gente vem trilhando um bom caminho e as pessoas, hoje, têm a gente como referência. Esse é o legado que nós deixamos para as mulheres que vêm depois e vão encontrar dias melhores, assim como eu encontrei”, finalizou.
Em Sergipe, até hoje, existiram apenas três árbitros FIFA na história. Dois homens e uma mulher, a própria Thayslane de Melo Costa, espaço conquistado, como já citado acima, em 2019.No cenário nacional, 14 mulheres estão inscritas como árbitras na FIFA. Além disso, em 2022, pela primeira vez, mulheres apitaram a Copa do Mundo de Futebol Masculino, mesmo após 22 edições do Mundial – entre elas, a brasileira Neusa Back.
Corpo e mente conectados
Sabemos que o esporte pode ser um bom aliado para combater o estresse, ansiedade e ajudar no autocontrole, além de proporcionar um estilo de vida mais saudável. Porém, se com as atividades do dia-a-dia já ficamos cansados e muitas vezes ansiosos, com atletas não é diferente. A autocobrança, as metas a serem atingidas, o desgaste físico e emocional não são fáceis de lidar. Para desportistas de determinadas modalidades, viver com dor é normal e até esperado.
Além disso, as mulheres têm questões particulares em seus corpos, como a menstruação. Em esportes em que o corpo fica muito aparente, como o vôlei de praia, as atletas podem se sentir desconfortáveis quando estão em seus períodos. Pensando nisso, o uso do biquíni não era obrigatório quando a atleta estava menstruada. Hoje em dia, essa medida vale para todas as competições. A jogadora pode usar uma legging, se preferir, a fim de reduzir a exposição.
No âmbito esportivo, a menstruação ainda é um tabu. Apenas recentemente começaram a falar sobre esse assunto, mas o pouco que se fala ainda é muito voltado para o desempenho das atletas e não para a saúde das mesmas. Apenas nas Olimpíadas de 2012, a delegação brasileira se preocupou com essa questão e teve um programa médico específico para cuidar do ciclo menstrual e da TPM. Muitas atletas resolvem parar de menstruar, tomando anticoncepcional, ou lidam com isso como se não fosse um fator relevante. Quando perguntamos isso para as atletas entrevistadas, as respostas foram parecidas. “Nunca deixei de treinar por cólica”.
Além disso, a maternidade é outro fator que deve ser levado em conta na vida das atletas. Essa é uma questão vista de formas diferentes por cada atleta. “Por agora eu não pretendo isso, porque atrapalharia sim. Você passa um bom tempo parada e tem que voltar a todo o processo de novo. Mas futuramente, eu penso”, diz Nierys,goleira do time de futebol Estanciano .
Luzivânia, que joga na posição de volante do clube sergipano, tem o mesmo ponto de vista. Mas para ela, é possível conciliar as duas coisas, se houver um planejamento. “Muitas pessoas pensam que ‘Ah, eu não vou engravidar porque vai atrasar’. Mas se você tem um planejamento, eu acho que ajuda bastante e o governo poderia contribuir com isso. Eu penso futuramente, quando eu tiver estabilidade financeira, uma casa própria e mais organização“, opina
E se a saúde do corpo já é uma preocupação constante para homens e mulheres atletas, esse último grupo apresenta uma outra questão que é a sexualização de seus corpos. Para as atletas que têm seu corpo exposto, em algumas modalidades mais do que em outras, comentários desconfortáveis e situações de assédio são recorrentes.
Casos famosos de assédio no esporte, como o da ex-nadadora, Joanna Maranhão, servem de exemplo de como o ambiente esportivo pode ser muito bonito de um lado e muito tóxico de outro. A ex-atleta olímpica contou que sofreu abuso por parte de seu técnico de natação com apenas 9 anos de idade. “O abusador não é o cara com o boné que está passando na rua, ele é a pessoa acima de qualquer suspeita”, disse em entrevista à CNN, em 2020, e acrescentou que, assim como outras meninas, ela também questionou sua própria inocência. “Então, em um primeiro momento eu pensei ‘será que eu deixei o meu maiô muito cavado e eu dei algum sinal de que ele poderia fazer isso?’”, disse em entrevista à CNN, em 2020.
Apesar de saber que esses casos não são tão incomuns assim, no Brasil ainda faltam estudos, pesquisas e dados sobre o assunto. Ainda assim, ações em oposição também têm surgido. Ao mesmo tempo em que são comuns casos de assédio com repórteres, por exemplo, têm crescido o número de campanhas contra a violência e assédio não só de atletas, mas também de jornalistas femininas em ambientes esportivos, as reações individuais também têm sido mais comuns. A assessora da base do time de futebol masculino do Vasco da Gama, Millena Pscheidt, acrescenta a sua experiência. "Em estádio você sempre ouve. Eu acho que é inevitável, tanto trabalhando quanto torcendo”.
Para as mulheres que já ouviram coisas enquanto andavam, sofreram algum tipo de abuso, e mesmo as que não passaram por isso, um apoio psicológico se torna necessário para lidar com essas questões. Pois, da mesma forma que o corpo precisa estar em boas condições para realizar as atividades necessárias, a mente precisa ser trabalhada para aguentar as pressões e para saber como lidar com ocorrências desse tipo.
A Revista Brasileira de Psicologia do Esporte, realizou uma pesquisa em 2021, intitulada, Saúde mental no atleta de elite: revisão sistemática de estudos nacionais e internacionais. Nela, os autores realizaram uma revisão dos estudos ligados à saúde mental de atletas e afirmam que “atletas de elite apresentam taxas de depressão, de ansiedade e uso de álcool semelhantes às da população”. Separando por gênero, concluíram que “mulheres apresentaram taxas mais elevadas de sintomas de transtornos mentais”.
Se esse auxílio se torna tão importante para todos os esportes e atletas, quando há uma mulher em um ambiente majoritariamente masculino, ela necessita ainda mais desse suporte. “Elas vivem como se fossem aquelas pessoas que não podem abaixar a guarda hora nenhuma”, fala a psicóloga esportiva da Confederação Brasileira de Ginástica Rítmica, Claudia Canário. Ela conta que ao lidar com esses casos, os psicólogos esportivos trabalham para desenvolver a autoconfiança e segurança na atleta, para que ela não se questione de suas capacidades, fortalecendo a mulher para lidar com essas questões e demandas que lhe serão exigidas.
O debate da saúde de atletas, principalmente de alto rendimento, foi muito discutido nas Olimpíadas de Tóquio de 2020, quando a ginasta Simone Biles desistiu de competir em quatro finais para priorizar sua saúde, tanto física quanto mental. O desgaste mental facilita a ocorrência de um burnout, que é a Síndrome de Esgotamento Profissional e distúrbio emocional, que leva também a um esgotamento físico. Priorizar a saúde do corpo e da mente se faz mais que necessário para que as atletas consigam lidar com as pressões dos treinos e de competições.
Além do que já é cobrado das atletas diariamente, muitas precisam sair do lugar de onde moram e ir enfrentar as dificuldades da carreira sem a família, sendo obrigadas a lidar com uma nova cidade, novas pessoas, muitas vezes sozinhas.
“Como eu nunca fiquei longe da minha família e foi a primeira vez no ano passado, a gente sente. Mexe psicologicamente porque você sente falta. No começo foi bem difícil”, contou Nierys, jogadora do time de futebol feminino do Estanciano, que precisou sair de Alagoas, para jogar pelo clube. Esse é o caso de quase todas as jogadoras do time. Com a ajuda de suas companheiras de equipe, e do apoio psicológico oferecido pelo clube, elas foram se ajudando e se adaptando.
Assim como o suporte entre companheiras de time se tornou essencial para que as jogadoras continuassem suas carreiras, ao longo dos anos as mulheres vêm se ajudando e apoiando para que outras consigam chegar em lugares antes inimagináveis no esporte. O passado, cheio de pioneiras e desbravadoras, e o presente, cheio de sonhos, como os das meninas do Estanciano, se juntam para que mais mulheres continuem adentrando o ambiente esportivo como atletas, treinadoras, assessoras, árbitras e em diversas outras posições, afinal o lugar de mulher é onde ela quiser.