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Filhas da maré e frutos da restinga

Marisqueiras e mangabeiras de Sergipe preservam a memória ancestral e lutam pelo direito aos seus territórios.

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Por Cáritas Damasceno, Maiara Ellen, Laura Malaquias e Amauri Lima

Nas avenidas largas de um recente projeto de urbanismo, o calor do asfalto refrata a visão do Bairro Santa Maria, Zona de Expansão da cidade de Aracaju. Tapumes de alumínio cercam uma área de aproximadamente 80m², onde antes havia dezenas de árvores mangabeiras e agora há homens e retroescavadeiras que trabalham. Há poeira de construção por toda parte. De frente aos tapumes, um pequeno respiro verde resiste.

Rodeado por cercas, como se estas fossem o suficiente para conter a expansão urbana, a Reserva Extrativista de Mangaba, Uilson de Sá, encara os 80 metros quadrados de árvores e trabalho que perdeu. No interior da reserva, porém, as mangabeiras (árvores e catadoras) se mantêm firmes no solo areento da restinga sergipana.

É sobre este solo que Dona Zenaide vem fincar os pés quando as dores da vida que cultivou ameaçam transbordar. Ela diz não gostar de se confessar na igreja, e não o fará enquanto puder se confessar em silêncio ali, entre as mangabeiras. Muitas vezes descalça, ela caminha na areia fofa. Se algo inquieta o seu peito, ela escolhe uma árvore e sob a sua sombra confessa a Deus as suas mágoas.

Passa mais tempo entre as mangabeiras do que na sua própria casa. Se as comadres e os compadres estão na reserva para trabalhar, ou para discutir os rumos da associação, vem a calhar tomar um cafezinho entre companheiros de luta. Assim, para além do trabalho ao qual dedicou a sua vida, Rozenaide de Sá faz da reserva extrativista o seu lar e o seu templo.

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Atualmente a reserva conserva 94 mil metros quadrados de área. Foto: Cáritas Damasceno.

Nesse ponto, a relação de casa com a reserva não se trata de artifício literário. Como foi apontado por um vasto estudo divulgado pela Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), sob o título de “A Mangabeira, As Catadoras, O Extrativismo”, quanto mais etapas estão sob o controle das catadoras, mais possibilidades existem de auferir rendimentos e de contribuir para a conservação do recurso, por se entender que ele é importante para a sobrevivência. 

A conservação desse respiro em meio a poeira do Santa Maria se deve a essa relação intrínseca com as árvores e com a terra, que dona Zenaide compartilha com as várias famílias de catadoras de mangaba.  É na necessidade da preservação de suas atividades econômicas para subsistência, e da conservação do território para uma existência plena, que as comunidades extrativistas contribuem para a preservação ecológica.

Mas há algum tempo o desassossego tem vindo buscar Zenaide dentro dos limites que cercam o seu terreno. Tentativas de invasões e medidas da gestão municipal para a construção de um conjunto habitacional, que não possui pesquisa ambiental para sua instalação, vêm ameaçando a principal missão delegada às catadoras quando a reserva foi criada: garantir a sobrevivência dessas árvores que estão cada vez mais raras no território nacional. 

Longe dali, em um bioma primo do ecossistema da restinga, se aprofundando nas ruas de terra do Povoado do Arame II, em São Cristóvão, as filhas do mangue compartilham a perturbação de ter seu território invadido. Nascidas na maré e criadas através dela, Givania dos Santos, Maria Adelma da Conceição, Maria Luzia dos Santos e Joelina dos Santos, inventaram suas vidas no mangue, em meio a catação de mariscos e a outros desafios. 

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Sem embarcação própria, as marisqueiras dependem das caronas e da disponibilidade ofertadas pelos barqueiros da região para chegar onde encontram os mariscos.  Foto: Maiara Ellen

Os riscos desse trabalho, deixam claro que o mangue não é bem um templo para essas mulheres. Mas a maré não deixa de ser uma mãe generosa, que também dá às suas filhas o necessário para existir. É na ameaça de perda do único modo de vida conhecido , que a relação entre essas mulheres e o território se esclarece: elas pertencem ao mangue e, em troca, o mangue pertence a elas. 
 

Foi fingindo que toda essa lama poderia ser cimento, que elas moldaram  uma existência sólida e digna, mas pesada como o concreto. O esforço extenuante para se locomover na lama do mangue, os caminhos traiçoeiros, onde muitas já se perderam, os riscos de infecção, o peso dos baldes de marisco sobre as suas cabeças ao longo de quilômetros de caminhada sobre as pedras, mostram que a vida no mangue pede coragem.
 

Todas as ameaças à própria saúde física não foram capazes de atemorizar essas mulheres, não tanto quanto às ameaças à saúde do mangue. A poluição invadindo as águas e do solo do manguezal, por falta de projeto de saneamento adequado para a região; tanques de criação de camarão sem fiscalização, impedindo o acesso das marisqueiras ao mangue; e o assoreamento do rio Vaza-Barris,  em decorrência de atividades empresariais na região, são os principais sintomas deste adoecimento.
 

Acontece que, onde mangabeiras e catadoras, marisqueiras e maré, são extensões de um mesmo corpo, por uma simbiose que só é possível para os que nascem das entranhas das suas terras,  a saúde de um território é também a saúde daqueles que o habitam. Esta é a peleja dessas mulheres, suas famílias e seus descendentes, momentaneamente a salvos da lógica capitalista de lucro a qualquer custo, para preservar a integridade dos seus lares e vidas, erguidas no solo paupérrimo e sagrado das mangabeiras, e no corpo hostil e generoso da mãe-maré.
 

O fruto de Zenaide

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O conhecimento para catar a mangaba no tempo correto foi transmitido a cada geração de mangabeiras. Na reserva, todos respeitam a sabedoria de deixar que o fruto caia espontaneamente e libere o seu leite. Foto: Cáritas Damasceno

Mãe de doze filhos,  Rozenaide, ou apenas dona Zenaide, arrancou a vida com as mãos no terreno da reserva. Chegou para catar mangaba no Santa Maria quando tinha apenas o seu primogênito, Uilson. O menino tinha treze anos quando se mudaram definitivamente, vindos de uma “invasão” chamada Prainha, onde os moradores praticavam a cata da mangaba e a mariscagem. Logo Uilson começou a trabalhar como cuidador de um padre. Separados pela urgência de trabalhar, Zenaide mal pode acompanhar a germinação da  semente que plantou, só via o filho em um regime quinzenal.
 

Quando chegaram, o sistema do terreno ainda era de meeiro. Então, metade da produção e colheita dos trabalhadores deveria ser entregue ao “dono” das terras. Ainda havia poucas mangabeiras no local, estas conviviam com plantações de outras culturas. Um ano após a chegada de Zenaide, o sistema mudou para o arrendamento; um aluguel pela terra. Sem a garantia de que as colheitas seriam o suficiente para pagar o valor combinado, muitos trabalhadores e trabalhadoras deixaram as plantações onde labutaram por anos e saíram em busca de novas oportunidades. Zenaide ficou pela promessa de um compadre, que se comprometeu em pagar a sua parte quando lhe faltasse. 
 

O tempo correu. Zenaide havia dedicado anos à catação, com seus filhos e filhas, e à venda do fruto nas feiras. Uilson de Sá, agora um homem, deu início ao plantio de mudas de mangaba, o que transformou a reserva no que ela é hoje: uma área de 94.000m². Com a derrubada das árvores, ainda não há um número exato de quantas ainda estão de pé.

Quando surgiu a ameaça de retirada dos extrativistas da reserva, Uilson seguiu o exemplo da mãe, que resistiu em deixar as mangabeiras. Ele organizou os demais catadores da reserva e se tornou o presidente da Associação dos Catadores de Mangaba. “A minha mãe sobrevive disso”, Uilson disse certa vez ao padre Cláudio Dionízio, que posteriormente viria a frequentar a reserva. E, por isso, seguiu resistindo até o momento em que Zenaide o encontrou sem vida em sua própria casa. Segundo a mãe de Uilson, ainda havia nele, sinais de resistência.

Mangabeira não é casa de concreto

“Se eu passar um dia sem vir aqui, fico sem sossego em casa. Eu venho pras mangabeiras porque é d’onde eu vivo, é d’onde eu como”, conta Zenaide de Sá.

O local em que ela vive e de onde come, é também o que ela  é: uma mangabeira. A mesma palavra que dá nome a árvore frutífera, também categoriza os profissionais, especialmente as mulheres, que catam mangabas. Essa relação ultrapassa os termos gramaticais, porque as catadoras do fruto, homônimas às árvores, sobrevivem em um processo de simbiose psicológica, ancestral e socioambiental. 

A interação mútua entre as Mangabeiras é feita a partir de uma vivência cotidiana harmônica e produtiva na qual ambas se beneficiam. De um lado, os pés de mangaba precisam estar em um ambiente favorável para o desenvolvimento dos frutos, e as catadoras asseguram isso respeitando o tempo da colheita, e desenvolvendo maneiras de conviver com o espaço sem deteriorá-lo. Por outro lado, as catadoras e catadores dependem das mangabas para o sustento financeiro, e as árvores garantem isso aos extrativistas. Os frutos catados são utilizados para a produção e comercialização de sorvetes, licores, vinagres, sucos e polpas, ou até mesmo para a venda da safra.

Na Reserva Extrativista da Mangaba Uilson de Sá, onde dona Zenaide necessita estar presente cotidianamente, mais da metade das árvores foram arrancadas para dar lugar a um complexo habitacional, que está sendo construído pela Prefeitura de Aracaju. 

“Já foi confirmado que sem a mata ao redor das mangabeiras, elas não conseguem suportar o calor do concreto. Daqui a pouco tempo, ou as árvores vão parar de dar frutos, ou vão morrer. E a gente já sente a diferença na colheita”, explica o catador Emerson Cruz, chamando a atenção para o conflito envolvendo o local escolhido para a construção das casas e a sobrevivência da reserva.

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O barulho das máquinas repercute em toda a Reserva, agora com menos árvores. Foto: Amauri Lima

A constatação de Emerson se refere aos resultados de um estudo feito em 2020,  pela Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), juntamente com a Universidade Federal de Sergipe, através do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC). Nessa pesquisa, foi demonstrado que, o tamanho da área de extrativismo e preservação da reserva, seria “primordial para estabelecer os processos ecológicos em funcionamento, manter sua estabilidade, atenuar efeitos de borda, advindos da urbanização, como: sombreamento, sufocamento, perda hídrica e de biodiversidade”. 
 

O relatório do estudo foi enviado ao Ministério Público de Sergipe, demonstrando as consequências socioambientais do desmatamento da Reserva Extrativista Uilson de Sá, a fim de conter a construção do conjunto habitacional. Ainda assim, não foi o suficiente para parar as máquinas. Para além do tamanho do espaço, os diferentes tipos de árvores que existiam na reserva, como aroeiras e cafezais,  também somavam à sobrevivência das mangabeiras, garantindo o equilíbrio do ecossistema.

“O leite que sai das mangabeiras é anti-inflamatório, aqui a gente usa como remédio. Mas agora, não tá saindo quase nada dos troncos", lamenta dona Zenaide. De acordo com ela, isso é consequência do calor causado pela falta das outras árvores, bem como da construção imobiliária ao redor da reserva extrativista. É evidente que, sem uma mangabeira, não há a outra.

 

Sem terra, sem sossego

 

Na luta pelo direito às terras e ao cultivo das mangabeiras, se somam ativistas, pesquisadores, militantes políticos, estudantes e religiosos. Ligado à Associação das Mangabeiras, o padre Cláudio Dionízio celebra encontros na reserva e reitera a necessidade de que as catadoras se mantenham unidas para enfrentar a desigualdade e para criar uma utopia necessária. 
 

“Continuaremos lutando porque a causa é muito maior do que esse pedaço de terra. A causa é a situação de todas as catadoras, mulheres pobres, mães, violentadas diariamente, moral e fisicamente”, enfatiza o padre Cláudio, que no passado lutava ao lado do amigo Uilson de Sá. “A causa é muito maior do que esse pedaço de terra”, faz questão de reforçar.
 

No Brasil, o Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001) afirma que o direito à cidade é um direito coletivo, de natureza indivisível, em que todos os habitantes da cidade são titulares, tanto das gerações presentes, quanto futuras. O comprometimento com essas gerações é inerente aos povos e comunidades tradicionais, porque estes, não se separam da preservação da natureza. Mas, para poderem viver dignamente, precisam ter os seus territórios reconhecidos e preservados.
 

Quanto às catadoras de mangaba da Reserva Uilson de Sá, as recomendações são seguidas ao pé da letra. “Não podemos fazer casas, nem nada que seja à base de cimento, porque as mangabeiras não sobrevivem”, afirma dona Zenaide. Em uma vistoria dos pesquisadores da AGB e do PEAC, mencionados anteriormente nesta reportagem, a área da reserva extrativista, em 2020, encontrava-se em meio a uma pressão urbana, sendo reduzida de tamanho constantemente.
 

Essa pressão acarreta destruição dos povos e comunidades tradicionais, já que aniquila os seus territórios. Nos litorais do estado sergipano e dentro dos mangues, as catadoras de mariscos enfrentam conflitos territoriais e de classe, que guardam semelhanças com a realidade das mangabeiras. Na estrada para o povoado Coqueiro, onde Givania e as companheiras catam mariscos, há várias cercas de propriedades privadas, com criadouros de camarão.
 

As marisqueiras não possuem acesso a essas entradas, mas se questionam sobre os poderes concedidos aos grandes proprietários de terra, e negados a elas. A única certeza que elas tem, é que os bichos estão menores e escassos, talvez adoecidos. Elas sabem que a mãe maré já não é mais a mesma.

Maré morta 

Enquanto fazem a cata na maré do Coqueiro, as marisqueiras comentam sobre a diminuição dos bichos. “Antes a gente só precisava ficar parada em um canto e conseguia encher mais de dois baldes. Agora precisamos rodar tudo pra conseguir catar o sururu”, conta Maria Luzia dos Santos, marisqueira desde criança. 
 

Essa mudança no fluxo ecológico da região é ocasionada pelo despejo de resíduos dos viveiros de camarão, dentro do manguezal. As marisqueiras contam que a água e a lama mudam de cor, cria-se uma espuma e que, em alguns lugares, elas já não podem mais fazer a catação, porque o mangue está morto. 

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O manguezal se encontra menos abundante e alguns baldes voltam incompletos. Foto: Maiara Ellen 

No Brasil, a carcinicultura é um dos principais impulsionadores de impactos ambientais nos ecossistemas dos manguezais. Segundo o artigo “Anos de Impacto Acumulado da Carcinicultura nos Manguezais do Nordeste do Brasil”, produzido por Luiz Drude de Lacerda e outros autores, em 2021, os principais impactos nos mangues são tipicamente indiretos, devido à poluição dos efluentes dos viveiros de camarão e à perda associada de serviços ecossistêmicos.

No semiárido nordestino, os impactos da carcinicultura são ainda mais graves, porque os manguezais ficam limitados a uma faixa estreita ao longo de estuários, frequentemente afetados por secas. Neste caso, marisqueiras e pescadores artesanais, que dependem da proliferação sadia dos mariscos, enfrentam a escassez e o adoecimento da maré, por vezes, sem fiscalização.    

A vida no mangue requer comprometimento, como, por exemplo, durante o período de reprodução dos peixes (piracema), e acasalamento dos caranguejos (andada), as marisqueiras não podem entrar na maré. Para subsidiar esse tempo sem trabalho, que pode durar até cinco meses, o estado deve garantir um auxílio a todos os que fazem da pesca a profissão habitual, o chamado Defeso, assegurado pela Lei 8.213/1991

No entanto, o subsídio nem sempre é efetuado. “O Defeso é o mesmo que nada, a pessoa fica dois, três anos sem receber”, destaca Luzia, e Adelma complementa: “a gente dá entrada no auxílio, passa quatro ou cinco meses sem receber, e quando é no tempo do defeso não podemos entrar no mangue”. As marisqueiras reconhecem a importância de se afastar da maré durante o período necessário, mas precisam que os seus direitos sejam, efetivamente, concebidos.

 

Minha vida é me acabar na maré

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“Marisqueiras, mulheres que desenvolvem trabalhos correlacionados a coleta de moluscos, inseridas na modalidade pesca artesanal, segundo o Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro, 2000”. Foto: Maiara Ellen

Colunas curvadas, sem postura, descalças ou com botas feitas de pedaços de calça jeans, que afundam na lama do manguezal. É assim que caminham as marisqueiras do Arame II. Seus pés sustentam corpos adoecidos e escondem, nas solas, as cicatrizes deixadas pelas histórias de uma vida quase que inteira de trabalho. 
 

Givania, marisqueira desde os dez anos, estudou somente até a quarta série e, segundo ela, era necessário aprender “pelo menos a assinar o nome”. Maria Luzia dos Santos, 54, e sua filha Joelina dos Santos, 36, compartilham da mesma vivência, elas relatam que não tiveram acesso adequado à escola ou às interações que outros espaços sociais poderiam lhes proporcionar, afinal, "se criaram na maré”, como assim dizem. 
 

O trabalho no mangue não foi uma escolha, mas o único caminho apresentado  para essas mulheres, desde a infância. “Minha adolescência foi assim, com minha mãe e minha avó na maré”, confirma Joselina. Apesar da necessidade de catar o marisco para garantir o sustento de suas famílias, algumas delas não se encontram mais em condições de exercer a única atividade de subsistência que conhecem.

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“Nunca estudei, não cheguei a fazer nada na minha vida, nunca trabalhei de carteira assinada, porque nunca tive acesso a nada disso”.
Givania dos Santos, marisqueira

Maria Adelma da Conceição, 51, também recebeu laudos médicos que a proíbem de frequentar o mangue, seus pés não aguentam mais o contato com a lama fria do manguezal, e ela foi diagnosticada com reumatismo nos ossos. “O que vou fazer da vida? Se eu não sei trabalhar em outro setor? Como vou sustentar meus filhos?” questiona Adelma, lembrando o que pensou no momento em que recebeu os exames.

Ela lembra também de vários marisqueiros conhecidos que se aposentaram após ficarem cegos com o uso de querosene, substituindo o repelente, já que o produto apropriado é mais caro. E de outros que tiveram que amputar membros, principalmente pés, após cortes em pedaços de pau e cascalhos de ostras que ficam escondidos dentro da lama.
 

Apesar de não se encontrar em condições de ir buscar o catado no manguezal, Adelma ainda não conseguiu se aposentar e, atualmente, trabalha nas feiras do Eduardo Gomes. Para ela, apesar de estar cadastrada na Associação de Pescadores e pagar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), regularmente, a aposentadoria por questões de saúde é uma questão de “sorte”, que ela ainda não teve. “A gente tem que botar a vida pra frente e não esperar por resto de governo. A gente tem que trabalhar, suar”, reitera Maria Luzia.
 

Segundo a Lei 8.213/1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências, os pescadores artesanais, categoria em que se encontram as marisqueiras, possuem direito à aposentadoria adiantada em relação aos outros segurados através da idade ou auxílio-doença, em casos de incapacidade laboral.  
 

Para Givania, os problemas de saúde que elas desenvolveram estão relacionados à falta de condições em comprar equipamentos adequados, que as protejam no ambiente de trabalho. “Nós não temos disponibilidade para ter um repelente, para ter uma saúde de qualidade, fazer exames…”. 

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Dona Maria é uma das poucas que conseguiu se aposentar e não precisa frequentar o manguezal. "Quem é novo aguenta, mas quando passa dos 30 anos, só trabalha por necessidade”, reforça Adelma. Foto: Maiara Ellen 

Além dos obstáculos que encontram em meio ao manguezal, as filhas do mangue, nome que caracteriza o coletivo de marisqueiras de São Cristóvão, enfrentam a invisibilidade e erguem suas vozes em busca de valorização. "A gente trabalha querendo ser reconhecido lá fora, nós não somos reconhecidos pelo poder público, nem pela sociedade. Para eles, o marisqueiro é lixo”, declara Adelma.  
 

O estereótipo e a associação do manguezal enquanto lugar fedido recai sobre as marisqueiras chamadas de “fedorentas” no transporte público. Segundo Neuza Maria de Oliveira, em seu artigo “Rainha das águas, dona do mangue: um estudo do trabalho feminino no meio ambiente marinho”, feito em 1993, “o imaginário social percebe o ecossistema mangue como sinônimo de espaço geográfico desordenado, cuja dinâmica caracteriza-se pela irracionalidade das interações entre seus recursos naturais e pela reprodução descontrolada. É concebido como local feio, malcheiroso, insalubre, onde proliferam vermes, insetos e doenças”.
 

Apesar da exaustão e do calor ardente do sol ao qual são expostas diariamente, Givania, Adelma, Maria Luzia e Joelina, que cresceram juntas na maré, encontram em sua amizade a força para lutar coletivamente por reconhecimento e melhores condições de trabalho.

 

Subjetividades coletivas

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As filhas do mangue passam mais de seis horas seguidas manguezal adentro, e na pausa para se alimentar, compartilham o lanche que levaram para a maré. Foto: Maiara Ellen

A coletividade é intrínseca a essas comunidades tradicionais. É o que sustenta sua forma de organização e sobrevivência e é vital para manutenção da vida e preservação da cultura e tradições locais. Isso fica tão claro quanto os primeiros raios de sol que iluminam a maré, quando vemos nessas comunidades a união em torno de objetos em comum e do trabalho pelo bem-estar coletivo.

Assim como a força, para carregar os baldes de mariscos e para seguir na luta após o luto da perda de Uilson de Sá, a coletividade é o que impulsiona a vida nas comunidades tradicionais e permite a construção de relações de confiança, solidariedade e respeito mútuo. Tanto na Reserva Extrativista Uilson de Sá, em Aracaju, quanto no Povoado Coqueiro, em São Cristóvão, a coletividade é uma das principais formas de (re)existência.

O extrativismo é a atividade econômica que move ambas as comunidades. Na reserva das mangabeiras, essa atividade é realizada com a participação de várias famílias que se organizam em grupos para a coleta, em solo, da fruta. Em maioria mulheres, elas se reúnem geralmente duas vezes por dia, logo cedo e ao entardecer, para catar os frutos no chão areento.

Emerson Cruz, catador e morador do bairro 17 de março, ensina aos que vêm de fora que só quem come o fruto maduro é o dono. Isso porque a mangaba só está realmente madura quando cai do pé e o “leite” que tem dentro dela seca. Emerson conta que muitas vezes entravam pessoas para roubar as mangabas da reserva e sempre levavam as que estavam no pé, achando que as do chão estavam podres ou algo do tipo.

“Uma vez, em um dos encontros aqui na reserva, um dos motoristas do pessoal pegou uma mangaba no pé. Ela aqui [no pé] fica bonitona, vermelhinha, mas ainda não ta madura, só quando cai. Quando ele mordeu a mangaba, fez uma cara tão feia [risos], aí virou pro lado e cuspiu. E eu aqui de longe só vendo. Foi porque ela ainda estava com leite e verde, aí fica amarguenta”, contou ele entre uma risada e outra.

Apesar da catação, dos mariscos ou da mangaba, ser o que sustenta financeiramente as comunidades tradicionais desses territórios, o que acontece vai muito além da simples atividade extrativista. Os trabalhadores vivem em simbiose com o manguezal e com as mangabeiras, sabem que além de um território onde se encontra alimento e sustento, é um território que é cuidado e onde se faz morada. Para cuidar do mangue, dona Givania, toda vez que vai à maré, também volta com o lixo que vai encontrando manguezal adentro – e às vezes em maior quantidade do que os mariscos catados.

“Aqui são todos os frutos do mangue: maçunin, entã, unha de velho, ostra, sururu, goré. E todos eles a gente pode comer”, conta dona Selma. Foto: Amauri Lima

Selma, irmã de dona Givania, sempre agradece ao manguezal por fornecer seu alimento e seu sustento. “A maré é tão boa que tudo que tem nela a gente pode comer, a ostra, o sururu… tudo a gente come. Aqui no mangue a gente não passa fome”. As falas das catadoras reforçam como as comunidades tradicionais não entendem a natureza como apenas um recurso, mas um ser vivo que deve ser respeitado e cuidado. E isso também retoma a ligação simbiótica com a ancestralidade, como força presente e vital na luta diária pela preservação de suas tradições e do meio ambiente.
 

O reconhecimento do corpo e do espaço político das mulheres do mangue e da restinga é resultado da formação coletiva de suas comunidades. Co.le.ti.vi.da.de, com etimologia no francês collectivité, significa um conjunto de seres que, por possuírem interesses comuns, constituem um corpo coletivo; um agrupamento, associação ou grupo.
 

A construção desse corpo coletivo é feita de forma simultânea a uma série de processos psicossociais, que envolvem tanto as subjetividades dos indivíduos como as relações de poder construídas socialmente. É o que dizem Liliana da Escóssia e Virgínia Kastrup ao proporem um novo conceito de coletivo no artigo “O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade”, produzido em 2004.
 

Para elas, “a relação, entendida como agenciamento, é o modo de funcionamento de um plano coletivo [...]. Cabe ressaltar que este plano coletivo e relacional é também o plano de produção de subjetividades”. Essa subjetividade, que não é individual, engloba sistemas pré-individuais e extrapessoais, como os de sensibilidade e os ecológicos, respectivamente. Por isso, os processos de subjetivação serão sempre coletivos, pois além de serem compostos com as experiências intrapessoais do indivíduo, também se compõe com as suas marcas deixadas em sociedade.
 

Esse é um processo pelo qual os indivíduos ou as comunidades se constituem como sujeitos, em torno dos saberes construídos coletivamente e dos poderes estabelecidos na convivência do dia-a-dia. Seguindo essa lógica, o sistema extrapessoal ecológico é o ponto de partida para a construção do corpo coletivo das mulheres do mangue e da restinga, no  qual cruzam suas subjetividades na formação de entidades sociais.

 

Reconhecer-se como esse ser simbiótico que sente as mesmas dores de ser arrancado do pé antes da hora ou que sente o vazio do manguezal quando as garrafas e pneus ocupam o lugar das ostras e caranguejos, foi a fagulha para que essas pessoas se unissem em entidades da sociedade civil e lutassem pelo seu espaço político, seu território e sua própria existência enquanto parte formadora do ecossistema.

 

Autopreservação

O lugar, marcado como fim, é, na verdade, o começo da longa batalha por reconhecimento travada pela comunidade de marisqueiras e liderada pelo filho de dona Givania. É no final de linha, no Povoado Coqueiro, em São Cristóvão/SE, que nasce o embrião do que hoje é conhecido como Instituto de Desenvolvimento Social dos Catadores de Caranguejo de Sergipe (IDESOCS).

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O povoado Coqueiro, em São Cristóvão, é onde fica localizado o manguezal onde as marisqueiras vão fazer a catação dos mariscos durante a semana. Imagem: Reprodução/Google Maps

Jovem negro, nordestino e periférico, Thiago Góis exemplifica o poder transformador da educação. Formado em Serviço Social com capacitação em Saúde Pública pela Universidade Federal de Sergipe, e com pós-graduação em Justiça e Políticas Públicas, é o idealizador e um dos fundadores do Projeto às Margens do Rio (Promar), cujo objetivo é valorizar os catadores de caranguejo e as comunidades tradicionais em Sergipe além de a preservar a cultura nesses grupos.
 

O Promar nasceu como um coletivo em 2018, durante uma disciplina optativa ministrada pela professora Joseane Soares e cursada por Thiago, em que era trabalhada a relação entre o Serviço Social e o meio-ambiente. Desde então, o Promar atuou em forma de coletivo durante dois anos, até que a demanda por formalizar parcerias e ganhos levou Thiago e Jucimar Santos (amigo e co-fundador do Promar), a transformar o projeto em instituto, com a criação de um CNPJ.

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Thiago Góis (ao centro) idealizou o Promar a partir da sua experiência pessoal e, junto a Jucimar Santos (à direita, com camisa de manga longa cinza), fundou o projeto em São Cristóvão. Foto: Reprodução/Instagram.

Os dois jovens percorreram um longo caminho de apresentações, inclusive na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese), e conversas com representantes de outros movimentos e instituições. Como resultado, em 14 de novembro de 2022 o processo de abertura do CNPJ foi deferido pela Receita Federal. Todo o percurso teve apoio financeiro e acompanhamento do Instituto Phi, uma organização social sem fins lucrativos que promove transformação através da Filantropia Hub de inovação social para reduzir desigualdades. 
 

“Um dos principais assuntos debatidos e reivindicados pelo Promar é o reconhecimento da catação de caranguejo enquanto expressão da cultura de Sergipe, para combater a invisibilidade dos catadores e catadoras de caranguejo”, descreve Thiago, que ainda chama a atenção para a ausência de informações e políticas voltadas para os catadores. “Sabemos que existe o caranguejo, mas não sabemos como ele chega até a gente”.
 

A invisibilização dos catadores permite uma dicotomia entre o caranguejo ser um Patrimônio Cultural e Imaterial de Sergipe e as comunidades tradicionais, que o preservam, não receberem o devido reconhecimento por parte do poder público. Outra discussão levantada pelo Promar é o acesso à educação para as crianças e jovens das comunidades tradicionais. 
 

“Nossas crianças estão acostumadas e inseridas em uma realidade diferente das outras. Elas estão acostumadas a, desde cedo, irem para o mangue, para a maré, e a aprenderem na prática”. Thiago explica que essa vivência repercute não só em dificuldades na escola tradicional, mas também nas altas taxas de analfabetismo e evasão, motivo pelo qual o Promar luta por um ensino diferenciado para as crianças da comunidade. Ele afirma que, em sua turma, foi o único a ingressar em uma universidade, mais de 80% dos seus colegas não concluíram o ensino médio, e mais de 70% não concluíram o ensino fundamental.

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Em 2022 o Promar Passa a ser parte constituinte no Instituto de Desenvolvimento Social dos Catadores de caranguejo de Sergipe. Foto: Reprodução/Instagram

Com a criação do Promar, Thiago observou o empoderamento da categoria, no sentido de se reconhecer como agente político de transformação, como agente cultural e protagonista da cultura da catação de caranguejo. “É importante para que eles possam se ver nesse lugar e entender o porquê de terem o acesso negado em eventos proporcionados pela atividade de catação, para que se olhem no espelho e reconheçam a sua cor”. Para o fundador do Promar, o trabalho é de longo prazo e demanda transformar todas as camadas da população, em direção às novas gerações. 
 

A existência do instituto como ele é hoje é muito importante para o reconhecimento interno da comunidade, porque foram eles próprios que “arregaçaram as mangas” e o construíram do zero, para serem ouvidos, para poder reivindicar, sugerir, propor e implementar políticas dentro do território.

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A Reserva Extrativista de Mangaba Uilson de Sá fica localizada no bairro 17 de março, em Aracaju/SE, próximo ao terreno do Aeroporto Internacional de Aracaju - Santa Maria. Foto: Reprodução/Google Maps

O reconhecimento pelo qual luta o Promar, foi alcançado pelas mangabeiras. Ser a única Reserva Extrativista (RE) de mangaba do estado, entretanto, não garante o respeito ao território. A RE Uilson de Sá, do bairro Santa Maria, em Aracaju, é diariamente confrontada pelo estrondoso barulho dos tratores que realizam as obras no terreno que antes era cuidado pelo homem que, agora, dá nome à reserva.
 

Mais do que um filho e um irmão, Uilson representava um pai para muitos dos que  lutavam pela (re)existência da reserva em meio aos conflitos territoriais e político-ideológicos com o governo do município de Aracaju. Era Uilson quem aglutinava essas pessoas, o elo que as reunia pela luta diária e pelo cuidado com a reserva. Ele deu suor, lágrimas e, por fim, a vida.
 

Após sua morte, entretanto, a luta não acabou. A memória e a sede pela existência fizeram dona Zenaide, suas filhas e todos que conviviam com Uilson levarem firmes a suas razões e a luta pelo direito ao território em que se reconhecem.

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As mangabeiras são vidas que salvam outras vidas”. Foi carregando esse lema que dona Zenaide fincou, com as próprias mãos, as primeiras madeiras que hoje cercam seu terreno dentro da reserva. Foto: Amauri Lima

A articuladora social da comunidade, Cláudia Pereira, disse que o que deu início a esse processo de territorialização foi a busca por moradia. Ela afirma que a organização das mangabeiras  é necessária para a sobrevivência da comunidade tradicional de extrativismo e que essa união gera o fortalecimento da luta.
 

O que leva a comunidade a se unir com o propósito de autopreservação é a reivindicação do seu reconhecimento por parte do poder público. Conforme a articuladora social, a reserva já foi reconhecida pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão vinculado ao Ministério da Economia, e pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) como reserva extrativista e um local que precisa ser preservado.

Todo primeiro sábado de cada mês é realizado um café compartilhado na reserva, onde os participantes levam um alimento e compartilham com os demais. Também são debatidos assuntos relevantes para a comunidade e mencionadas as conquistas alcançadas. Fotos: Maiara Ellen

Claudia mencionou ainda que a comunidade conta com o apoio de algumas instituições além da UFS, como o Conselho de Arquitetura E Urbanismo (CAU), a  Associação de Geógrafos do Brasil (AGB) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), além de algumas ONGs e parlamentares do município.

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“Ter a parceria com essas instituições é muito importante para nós, porque elas nos ajudam a manter a unidade dentro da reserva e é ótimo pela troca de saberes e pelo fornecimento desse apoio mais institucional, já que o estado não nos oferece nenhum suporte”.
Cláudia Pereira, articuladora social

Uma das principais conquistas recentes da comunidade foi uma viagem a Brasília, feita entre os meses de fevereiro e março de 2023, na qual Cláudia, junto a outros representantes da reserva, se reuniu com representantes do Governo Federal e conseguiu verbas para começar a tornar real a Casa da Mangaba.
 

O projeto é um dos sonhos da comunidade, necessário para valorizar a mangaba e para garantir renda aos catadores. Sem casa da mangaba, a produção depende da tripla jornada de Aliene dos Santos, atual presidente do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe e única catadora da reserva que domina a técnica de confecção dos produtos fabricados a partir da mangaba. 

“Hoje sou só eu que produzo, na minha própria casa. E gosto de fazer tudo a noite, depois que todo mundo já foi dormir e eu tenho sossego para fazer minhas coisas, sem as crianças em cima de mim o tempo todo. Lá em casa são cinco crianças, e quando junta os netos vai para oito. Por isso faço tudo de madrugada”, contou.
 

A Casa da Mangaba contribuiria para coletivizar os saberes ancestrais de produção entre toda a comunidade e expandir a produção dos doces e licores, mas conta que só conseguirá ensinar as outras mulheres quando a Casa estiver pronta e ela possuir espaço amplo e adequado para o trabalho.
 

Além de Aliene, a única outra pessoa que sabia as receitas era o seu parceiro de produção, Uilson. Ela conta que só eles dois produziam os produtos, na casa dela, ele mais na parte dos licores. “Até hoje tem licor que ele fez lá, tá tudo no balde, coberto, esperando terminar”.

A produção de Aliene vai dos licores às geleias, polpas da própria fruta, vinagre e doces variados, todos derivados da mangaba. Foto: Reprodução/Instagram

Tanto na Reserva Extrativista de Mangaba Uilson de Sá, em Aracaju, quanto no Povoado Coqueiro, em São Cristóvão, a coletividade é uma das principais ferramentas de resistência, é o que da força para carregar os baldes de mariscos pelo manguezal e para seguir na luta pelo direito ao território e à identidade.

Tradição é saber quantos pés de mangaba, jenipapo e caju existiam no terreno agora devastado. Tradição é saber imobilizar um siri no manguezal, para que ele não fuja. É saber encontrar o “olhinho” do sururu, escondido na lama, e lembrar de cada mangabeira plantada. Mais que isso, a tradição é união de corpo e ambiente, são  as mulheres que se sentem intoxicar na lama cheia de dejetos da carcinicultura e da falta de saneamento e as que sentem as dores de serem arrancadas do pé antes da hora, como as mangabas impedidas de serem tudo o que poderiam.

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