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Um rio que está partindo


Antes repleto de vida, o Rio Cotinguiba agoniza um pouco a cada dia, para tristeza dos que vivem de suas águas

Por: Beatriz Passos, Carol Mundim e Maria Fernanda Monteiro

É em uma casa na entrada da cidade de Laranjeiras, distante 23 quilômetros de Aracaju, que Marlene dos Santos, 56, vive com suas duas filhas. Perto do quintal, já é possível sentir o cheiro característico do rio e seus animais. Quando entramos no espaço de vez, quase molhamos os pés no Rio Cotinguiba. Entre milhares de conchas descartadas no chão e canoas atracadas na margem, entendemos um pouco do dia-a-dia de Dona Marlene, que é marisqueira há 32 anos por influência do pai, ex-pescador. De segunda a sexta, por volta das 4 da manhã, a marisqueira veste suas luvas e segue até a “maré”, que é como as pessoas se referem aos rios e mangues. Lá, ela cata de tudo um pouco: ostra, marisco, sururu - uma espécie de mexilhão - e siri. “É tudo no Rio Cotinguiba”, conta ela. “O rio da gente é um rio rico”.

Dona Marlene e suas irmãs, Marluce dos Santos, 50, e Isabel dos Santos, 58, foram as únicas da família que seguiram na maré desde que nasceram. Além de catar os mariscos, também aprenderam a pescar com rede de arrasto e de tainha. Dependendo da natureza, em alguns períodos as irmãs se encontram no Cotinguiba para iniciar os trabalhos perto das 9 horas da manhã. “É uma sobrevivência, é cansativo, a gente se gasta e perde muito tempo. Mas o que eu vou fazer se eu não tenho outra profissão? Eu tenho até o terceiro ano [do Ensino Médio] e ‘tô’ aqui na batalha. Vou fazer o quê? Agradecer pelo pouco que eu tenho”, conta Marlene. 
 

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O Cotinguiba é um dos afluentes do Rio Sergipe. Com 51 km de extensão, nasce em Areia Branca, agreste sergipano, e corre para o litoral, desaguando em Nossa Senhora do Socorro, na região metropolitana. Foi e é personagem de muitas histórias; a principal delas é a do município de Laranjeiras, que detém 45,81% da área do rio. Essa pequena cidade com pouco mais de 23 mil habitantes, localizada no leste do estado, cresceu em torno dele. Antes da chegada dos portugueses, os povos indígenas chamavam o rio de “Águas Claras”. Desde o período colonial, em 1605, quando essas águas eram o principal meio de transporte de pessoas e de chegada de mercadorias, até os dias atuais, o Cotinguiba permanece sendo protagonista na região. 

O fato é que tudo sempre girou em torno do Cotinguiba, e, para a maioria dos moradores daquele lugar, ele se tornou fonte de sustento. À medida que o tempo foi passando, os problemas cresceram na mesma proporção: a poluição, o desmatamento e a carcinicultura. Águas que antes eram sinônimo de vida, agora são lugar de morte. Seus peixes e crustáceos não aguentam tanta destruição. E as pessoas que por ali navegavam agora se afugentam e buscam abrigo em outras correntes. Mas, ainda assim, há aqueles que não temem as águas do Cotinguiba. 

Esses problemas têm suas raízes a séculos atrás. Tudo começou no período colonial, por volta do século XVII, quando Laranjeiras - que possui um solo fértil - passou a ser uma região dominadora da monocultura de cana-de-açúcar. Ou seja, grandes fazendas com engenhos de açúcar se dedicavam apenas ao plantio deste gênero agrícola. Para obter extensas áreas de terra, os fazendeiros retiravam a mata local, desmatando as beiradas dos rios, onde existe uma vegetação responsável por formar uma barreira de proteção das águas, é a chamada mata ciliar. Ao retirar essa cobertura, o rio fica desprotegido e entra num processo de assoreamento - quando acumulam-se sedimentos no leito dos rios por causas naturais ou intervenção humana.

A rotina das irmãs Marlene, Marluce e Isabel é interrompida todos os anos pelo o que os moradores chamam de “caxixe”. As pessoas que ali moram relatam que, semestralmente, sua fonte de sobrevivência, ou mesmo sua paixão, é interrompida pelos lançamentos dessas substâncias no Cotinguiba. Segundo Antenor Aguiar, professor de agronomia e coordenador da especialização em Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Universidade Federal de Sergipe (UFS), o caxixe, também conhecido como vinhoto, é um subproduto da cana-de-açúcar. Esse material é rico de um conjunto de resíduos químicos como o potássio, fósforo e nitrogênio que, quando lançados no rio, baixam o nível de oxigênio da água, causando a morte de peixes e a degradação ambiental. 

Ainda de acordo com Antenor, pela riqueza fertilizante, o vinhoto pode ser utilizado como adubo para as plantações. O professor explica que a Usina São José do Pinheiro, como muitas usinas no Brasil, pode utilizar do caxixe como fertilizante para a cana-de-açúcar, despejando essa substância na terra. Apesar de  não serem despejados diretamente na água, os resíduos do vinhoto ainda podem afetar o Cotinguiba por meio do escoamento irregular, causado pelo processo histórico de desmatamento da barreira de proteção do rio. Entretanto, o professor destaca que, desde 2018, não há registro de contaminação pelos resíduos em Laranjeiras. A reportagem tentou contato com a usina para esclarecimentos sobre o despejo do caxixe no Rio Cotinguiba, mas não obteve resposta. 

Além desse período de mortandade, as marisqueiras respeitam a temporada de defeso, época de reprodução das espécies aquáticas, recebendo um auxílio pela ausência das atividades de pesca e cata de mariscos. A Secretaria de Meio Ambiente e Agricultura de Laranjeiras afirmou que o apoio monetário aos pescadores e marisqueiras da região, diferente de outros municípios, é responsabilidade da Colônia de Pescadores da cidade, que estabeleceu uma parceria com o Ministério da Pesca e Aquicultura, órgão federal. Conforme o presidente da colônia, José Carlos dos Santos, mais conhecido como “Sobó”, no período de defeso, os associados recebem o valor de um salário mínimo, ou seja, R$ 1.412 em março de 2024. 

Além disso, a carcinicultura é uma prática que vem prejudicando a cata de mariscos e a pesca no Rio Cotinguiba. Trata-se da criação de camarões em viveiros, geralmente localizados em áreas de manguezal, onde os mariscos estão concentrados. Essa técnica, muitas vezes praticada de forma não autorizada, causa impactos negativos aos pescadores e marisqueiras que dependem do mangue para trabalhar. Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesca, do ano de 2010 para 2021, o Rio Cotinguiba perdeu 17,4% da área de manguezais para a carcinicultura. Essa situação força os trabalhadores a procurarem outras áreas de mangue, que são cada dia mais escassas.

A pesca no Rio Cotinguiba é uma prática antiga e muito importante para a comunidade ao redor. Segundo a Colônia De Pescadores e Aquicultores Z – 14 de Laranjeiras, o município conta com aproximadamente 600 pescadores associados, sendo a maioria mulheres. A colônia foi fundada no ano de 2004 e se compromete em garantir os direitos dessa classe trabalhadora, como o cadastro de pescador artesanal no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); o requerimento de benefícios do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); a promoção de cursos profissionalizantes em parceria com órgãos públicos como a Universidade Federal de Sergipe, Sebrae, Senar, Cimesa, Azahar e a Prefeitura Municipal de Laranjeiras, além da proteção do meio ambiente e fiscalização da pesca ao lado de órgãos responsáveis.

 

Segundo Sobó, para se cadastrar como pescador basta ser levado por outro trabalhador que já esteja associado. Chegando lá, eles recolhem os documentos e encaminham para o Ministério da Pesca, que será o responsável por avaliar e aprovar os auxílios. Muitos moradores de Laranjeiras relatam que várias pessoas que não vivem da atividade conseguem se associar e receber os benefícios, gerando revolta em quem realmente precisa pescar para ter o seu sustento. Quando questionada sobre essas afirmações, o dirigente deixa claro que é ciente desta situação, mas que não tem o poder de aprovação, eles apenas auxiliam os indivíduos no processo de documentação para encaminhar até os órgãos do Governo Federal. 

Além das fazendas de cana-de-açúcar, o crescimento desorganizado da cidade ao redor do rio fez com que surgisse outro problema, a poluição urbana. É o que pontua Antenor Aguiar: “Além das usinas, depois, o grande foco de poluição foi a cidade. Laranjeiras foi construída sem planejamento, e como muitas outras cidades brasileiras, ela não tinha esgoto. Então, hoje são duas grandes fontes de poluição, o esgoto e o desmatamento que ocasionou esses problemas”. 

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Foto: Carol Mundim

Lixos encontrados nas margens do rio revelam a poluição urbana com ações incorretas por parte da população 

De acordo com o último levantamento realizado pelo Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento do Governo Federal, no ano de 2022, o município de Laranjeiras não apresentava números informados acerca do esgotamento sanitário. Em entrevista, a Secretaria de Meio Ambiente e Agricultura de Laranjeiras informou que não existem registros sobre a rede de esgoto da região e que ainda há dificuldades para um escoamento regular. “A prefeitura vem tentando recursos federais para o saneamento básico e esgotamento sanitário de todo o município”, explica Evaldino Calazans, técnico da Secretaria. 

 

Segundo o técnico, outro fator que dificulta a estruturação de um sistema de esgotamento sanitário correto está no fato de Laranjeiras ser uma cidade histórica tombada pelo patrimônio. A infraestrutura do município gera uma necessidade de um estudo elaborado, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para a construção de um local adequado para o tratamento do esgoto. “Não é uma coisa simples para um município pequeno. É algo que vai ser feito a longo prazo, que após o começo deve demorar uns 10, 20 anos para ser realizado”, completou o técnico.

 

Conforme Evaldino, a Prefeitura de Laranjeiras não realiza nenhum projeto contínuo para a preservação do Cotinguiba, mas sim programas que ajudam a evitar problemas maiores. Ainda de acordo com o técnico, a gestão municipal realiza o plantio de mudas nas margens, a limpeza de canais que dão acesso ao rio e promove a educação ambiental para evitar a poluição. São realizadas, em média, quatro ou cinco ações dessa natureza durante o ano.

 

As águas que vemos atualmente não se parecem com o rio que já foi descrito por muitos moradores ou nascidos em Laranjeiras. Os relatos feitos sobre o Cotinguiba se perderam em memórias dos que viveram às margens daquelas antigas “águas claras”. Esse processo de crescimento urbano, gravado na história da cidade, trouxe consequências que entristecem as pessoas que cresceram com este rio, que contorna as ruas das suas lembranças.

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Foto: Carol Mundim

O município de Laranjeiras surgiu e cresceu ao redor do Rio Cotinguiba

Uma paisagem construída com recordações

Na barraca que construiu, anos depois de iniciar a vida na pesca, José Rivaldo dos Santos, agora aos 67 anos, recorda suas memórias ao lado de seu pai, quando ainda aos 8 anos de idade tornou-se parte das marés. À beira do Rio Cotinguiba, onde fica a “barraca do pescador”, como está escrito em uma placa feita à mão em frente a sua casa, Seu Rivaldo descreve, de forma clara, o que antes formava o lugar em que mora. Ele se refere às cabanas que rodeavam o rio, à rotina da pesca e ao mercado em que, junto ao seu pai, vendia os pescados. Sentado de costas para as águas, quase seis décadas depois, o pescador usa suas recordações para construir a paisagem que, aos olhos, parece estranha: a de um rio de águas claras, peixes abundantes e lembranças calorosas. 

Entre pausas em sua fala, a realidade parece atingir de forma ainda mais intensa quando se ouve “não pesco mais em Laranjeiras” daquele homem que nasceu e cresceu às margens da cidade que respirava ao redor da maré. Agora, diante da “morte” do Cotinguiba laranjeirense, Seu Rivaldo recorre às viagens para a cidade vizinha, Nossa Senhora do Socorro, para encontrar os pescados em águas mais preservadas, ainda que no mesmo rio que banha Laranjeiras. “Quando cheguei na beira da maré, uma coisa me surpreendeu, o que é aquilo branco? Então eu me aproximei, era de fazer dó. Robalo e tainha, todos mortos, o caxixe do Pinheiro matou”, relembra Rivaldo, reforçando a degradação causada pelas substâncias que vêm sendo despejadas há anos no Rio Cotinguiba.
 

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Foto: Carol Mundim

Com muitos anos de pesca, Seu Rivaldo conta sobre suas experiências com o Rio Cotinguiba

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Foto: Carol Mundim

Para ficar mais próximo do rio, Seu Rivaldo construiu uma barraca nas margens do Cotinguiba, onde guarda desde itens de pescaria até uma cama 

Na conversa com Seu Rivaldo, a experiência e os conhecimentos de uma vida toda na maré aparecem claramente. Assim como todo pescador, ele conta muitas histórias; em uma delas, relata que quase morreu ao lado de sua companheira nas águas do Cotinguiba. “Eu peguei um mar muito forte, se eu não fosse um bom piloto estaríamos mortos há mais de 20 anos, porque o nordeste começou a soprar, a onda do mar subia mais do que um carro, muito mais. Eu atravessei o rio com a proa (parte da frente do barco)  dentro da onda do mar, mas não deixei o barco atravessar. Deus me deu coragem e sabedoria e eu consegui chegar até o lado mais raso”, relata. 

 

Um dos fatores que não fazem os laranjeirenses desistirem do seu rio é a gratidão por tudo que ele já lhes deu e a fé que sempre esteve com esses navegantes. Seu Rivaldo expressa muita felicidade em contar sobre quem o sempre ajudou em suas pescarias, o santo Bom Jesus dos Navegantes. “Pra mim é meu santo que me dá o meu pescado, o meu refúgio. É um santo protetor para os pescadores. Na realidade, você faz o seu pedido e é bem recebido nas suas pescas, dependendo da sua fé”. Assim como ele, muitos outros pescadores possuem suas devoções e todos os anos em Laranjeiras, saindo em uma procissão fluvial para este santo como forma de agradecer todas as bênçãos alcançadas. A celebração já existe há mais de 160 anos. Uma prova de que o Cotinguiba nunca deixará de ser importante para aqueles que conhecem o seu valor.  

 

No Centro Histórico da cidade, a residência de Cural, como é conhecido José Antônio dos Santos, de 67 anos, e Vera Lúcia de Souza Santos, 63, guarda memórias de uma antiga vida na maré. Aquele homem, na época “pequenininho”, como descreve sua esposa, foi apelidado por meio de sua paixão de ficar na beira do rio. O ex-pescador, que diferente de muitos, não entrou na pesca pela tradição familiar, se encontrava nas águas do Cotinguiba para pegar peixes pequenos enquanto esperava os pescadores e os assistia na lavagem de seus barcos. O casal saía junto para a maré e, apesar de não ter trabalhado na área, Vera embarcava acompanhando o marido na atividade pesqueira que tanto o encantava. 

 

Enquanto recordava alguns momentos, a vida na pesca se perde nas memórias de Cural, que deixou as marés há cerca de 25 anos para uma vida mais segura, como servidor público. Agora aposentado, o ex-pescador comenta que as idas ao Rio Cotinguiba não tinha hora: “O horário era o da maré, até se fosse uma da manhã, eu estava lá”. Quando ainda pescava, sua rotina se construía em ciclos que iniciavam no preparo do barco até a divisão dos pescados para a venda. 

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Foto: Carol Mundim

O pescador Cural e sua esposa, Vera, compartilharam muitos momentos no Rio Cotinguiba que ficaram na memória

Apesar de não viver mais da pesca, as diferenças no local em que costumava tirar seu sustento são nítidas e, segundo Cural, além da diminuição dos pescados, o rio secou bastante com o tempo. “Todo ano a usina joga caxixe no rio. O caxixe mata os peixes e tudo que tiver pela frente”, diz o ex-pescador, que completa seu relato afirmando que esse processo se iniciou ainda no período de 1970. Mesmo com diferenças em suas trajetórias, as histórias dos pescadores do Cotinguiba se unem em uma tristeza em comum, a perda dos pescados devido a degradação do rio que banha Laranjeiras.

 

O fato é que, hoje, o Cotinguiba parece ter se transformado em uma espécie de saudade; Saudade de um tempo que não volta mais.

Produção labotarial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe

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Produção labotarial do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe

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