Revelando histórias,
desvendando o invisível
As cidades, como mães que acolhem seus filhos, nascem abraçadas às águas, encontrando nelas fontes de vida e prosperidade. Mas, conforme a urbanização se expande, transformamos nossas águas em repositórios das nossas próprias mazelas
Nas entranhas da cidade, onde o concreto se estende como um manto cinza, os rios fluem silenciosos, como testemunhas da frenesi da vida urbana. Mas sob a superfície calma das águas, um drama silencioso se desenrola, um conto de negligência e desolação.
As cidades, como mães que acolhem seus filhos, nascem abraçadas às águas, encontrando nelas fontes de vida e prosperidade. À medida que o tempo avança e a urbanização se expande, contudo, esses mesmos cursos d’água são relegados ao esquecimento.
O fato é: nutrimos uma relação ambígua com as águas.
Ao longo da história, seus movimentos sutis serviram para marcar e remarcar o tempo das cidades. Foram - e ainda têm sido - fonte da qual se podia beber prosperidade, um espaço de dupla consideração. São rios, lagoas, praias, cachoeiras, córregos… cursos d’água que moldaram destinos e continuam a determinar, em meio a trancos e barrancos, os fluxos das nossas vidas.
Uns amados, outros odiados. Uns imortalizados na poesia, em versos e prosas, outros narrados por seus encantos na literatura. Uns historicizados, cultuados em religiões místicas que atravessaram o Atlântico e cá se instalaram; outros confinados, sepultados, esquecidos. Como seria se não tivéssemos virado as costas às nossas águas?
Certamente a sombra sinistra do lixo acumulado às margens de rios não passaria despercebido aos nossos olhos. Seria impossível dormir sob a luz difusa de um abajur lilás sem refletir que cada pedaço de plástico, cada garrafa abandonada, cada bituca de cigarro é uma pequena tragédia em si mesma. Tudo isso, de acordo com um estudo produzido pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, vai parar no oceano e tem impactos difíceis de reverter.
Se não tivéssemos virado as costas às nossas águas, o maior desastre ambiental que atingiu a costa brasileira ainda estaria presente em nossas memórias. Quase cinco anos depois, já não se fala mais no derramamento de 5.300 toneladas de petróleo no litoral nem quando os responsáveis pelo crime serão efetivamente punidos. Até aqui, o que se tem é um rastro de destruição na biodiversidade, aumento de doenças e prejuízos às comunidades tradicionais que sobreviviam da pesca.
Paradoxalmente, enquanto estamos refratários aos cursos d’água que nos satisfazem diariamente, existem povoados espalhados pelo Brasil no centro de disputas fratricidas para ter acesso à água. Diminuição do acesso, destruição, poluição e não cumprimento de legislação ambiental são os principais fatores do aumento de desavenças dessa natureza.
Os conflitos aumentaram mais de 481% nos últimos 16 anos, segundo a Comissão Pastoral da Terra, organização ligada à CNBB que mapeia casos de disputas no campo há quase quatro décadas. Em alguns casos, importante mencionar, pessoas são assassinadas. O mais recente deles aconteceu em 2020, em duas cidades do Amazonas: oito pessoas de duas comunidades que vivem ao longo dos rios Abacaxis e Mari-Mari foram executadas.
Mas não precisamos ir muito longe. Tão perto de nós, comunidades espalhadas por Sergipe têm o sono e o despertar embalados pelas águas do Velho Chico, mas vivem sob o temor da expulsão. Algumas delas, inclusive, batalham na Justiça para ter o direito ao território reconhecido, manter a conexão com o rio e, assim, impedir a chegada de grandes empreendimentos.
Ou seja: virar as costas às águas também significa esquecer os povos que encontram nelas razões ancestrais para continuar existindo. É como se pelo bem da cidade e o consumo desenfreado dos bens, essas pessoas fossem sacrificadas no altar do ‘progresso’. E assim, neste movimento sutil e corriqueiro, vamos transformando nossas águas em repositórios das nossas próprias mazelas.
E se nos permitirmos olhar para essas águas com outros olhos?