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Foto: Pâmela Stéfani
Brasil retorna ao Mapa da Fome depois de oito anos
Em 2022, 58,7% dos Brasileiros passaram a viver em insegurança alimentar; Sergipe detém 48,17% de sua população em situação de vulnerabilidade
Pâmela Stéfani e Ramon Lima
Atualmente, mais de 33 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar grave no Brasil. Os dados são do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. O estudo foi divulgado em junho deste ano pela Rede Brasileira de Pesquisa, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). A partir disso, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece o retorno do país ao Mapa da Fome.
O país se encontrava fora do Mapa desde 2014, quando houve ainda a indicação de uma queda ocorrida entre 2002 e 2013, de 82% da população em situação de subalimentação no país. A informação vem do relatório fornecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O mesmo relatório informou também que, com a grande redução, que estava incluída entre os objetivos do milênio da ONU, o Brasil havia sido indicado como exemplo a ser seguido pela FAO.
Na época, a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, afirmou que a saída do país se deu pela priorização da resolução do problema. As principais políticas públicas que tiraram o Brasil do mapa, em 2014, foram o aumento na oferta de alimentos, o aumento em 71,5% do salário mínimo, a geração de 21 milhões de empregos, o programa do Governo Federal de Acesso à Renda, a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a merenda escolar como forma de combate à fome nas escolas.
O retorno do Brasil ao mapa da fome em 2022, depois de quase dez anos fora dele, reflete, portanto, uma nação carente de recursos. Não só pelas altas inflacionárias ocasionadas pela pandemia do novo coronavírus, como também pelo desmonte de políticas públicas que se fazem imprescindíveis para o combate ao impasse no país. Mas, para compreender com maior profundidade o que significa essa volta, vamos definir primeiramente o que é a fome.
A fome é conceituada como a carência de alimentos por períodos prolongados, causando sensações de dor e desconforto, de acordo com novo relatório, publicado em julho deste ano, pela FAO. O órgão classifica a insegurança alimentar em três escalas: leve, moderada e grave. Se enquadra em insegurança leve a ocorrência da falta ocasional de uma refeição. Já a moderada se dá pela quebra da rotina alimentar, enquanto a grave é quando ocorre a falta constante do alimento, o que se define como fome.
A insegurança alimentar no Brasil
O conceito de insegurança alimentar é a incerteza das pessoas sobre conseguir se alimentar, tendo que reduzir a quantidade ou a qualidade dos alimentos. Essa é considerada a insegurança moderada; já a falta de alimento por um dia ou mais é classificada como insegurança alimentar grave. A informação veio do mais recente relatório da FAO sobre fome no mundo.
A questão da insegurança alimentar no Brasil entrou em pauta após o retorno do país ao ranking do Mapa da Fome Mundial. Em 2022, foi registrado que 4,1% da população brasileira encontra-se em situação de fome crônica, número acima da média global, de acordo com reportagem lançada pelo Jornal Nacional.
O mapa lançado pela ONU é um indicador ilustrativo que indica o percentual de pessoas subalimentadas. De acordo com dados do 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, cerca de 9% da população passava fome e, em 2022, a quantidade chega a 15,5%. As regiões mais acentuadas desses dados são o Norte e o Nordeste, com 25,7% e 21%, respectivamente. Observe os rankings a seguir:
Mapa da Pobreza % e Rankings por Unidades da Federação – Linha de R$ 497 mensais/US$ 5,5 dia - Anos de 2014 a 2021. Arte: Pâmela Stéfani.
Em junho deste ano, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), baseada nos dados obtidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgou o Novo Mapa da Pobreza no Brasil. Segundo o levantamento, os quatro estados que se encontram com 50% da população em situação de pobreza são Maranhão, Amazonas, Alagoas e Pernambuco. Já no ranking da fome, a insegurança alimentar grave tem em 1° lugar Alagoas, seguida do Piauí (34,3%), Amapá (32%), Pará (30%), Sergipe (30%) e Maranhão (29,9%), respectivamente.
Ranking da Fome em 2022, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
Arte: Pâmela Stéfani.
O cenário econômico brasileiro diante da pandemia da COVID-19
Com o isolamento social, as configurações familiares tiveram uma tendência maior a casos de abusos e violência doméstica, além da luta de muitos pelo direito ao Auxílio Emergencial, política pública adotada durante a pandemia como forma de combate à fome. Em um contexto geral, a pandemia do novo coronavírus teve um impacto social e econômico de tanta relevância que alterou fortemente a história do mundo, o que levou a crises inflacionárias enfrentadas até o presente momento.
Ao colocar a inflação em perspectiva, o economista e professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe, Geidson Uilson Santana, explica que vários fatores influenciam nas crises econômicas. "O lado da oferta é influenciado por um choque exógeno que afeta a demanda e os custos de produção. Se o custo de oferta ficar mais elevado, a tendência é que o ofertante tenha uma retração na oferta desses produtos".
Ele explica que existe também uma pressão pela demanda. "Outro aspecto que afeta é a própria pressão da demanda quando ela é muito forte. Isso pode elevar a pressão dos preços quando existe uma demanda agregada muito aquecida, a oferta não vai acompanhar a demanda e há um choque".
Ao colocar a pandemia em perspectiva, ele fala que o Brasil já estava em crise quando o coronavírus chegou. "As variáveis macroeconômicas já não sinalizaram uma situação adequada para o comportamento da economia brasileira. A própria inflação de 2019 fechou em alta. Quando vem a pandemia, a partir de julho de 2020, a inflação começa a se acelerar fortemente e chega a um pico em novembro de 2021. Esse pico foi em torno de 10,74%, segundo o Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA)".
De acordo com o professor, a pandemia teve um forte impacto na economia, mas o país já tinha pouca capacidade de recuperação antes dela. Havia, portanto, a tendência de um cenário economicamente ruim e a COVID-19 acabou por agravar a situação. Além disso, a partir de 2022 ocorreu a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. "É um outro choque exógeno que afeta a inflação. Pensando em alimentos, a Ucrânia é um dos fortes fornecedores de trigo e de milho. Ocorre, portanto, o aumento crescente no preço dos alimentos", explica.
A insegurança alimentar em Sergipe
Segundo o Novo Mapa da Pobreza no Brasil, divulgado pela FGV com dados de 2021, Sergipe ocupa o quinto lugar no ranking nacional, com cerca de 48,17% dos cidadãos em situação de carência financeira. Isso significa que quase metade da população sergipana é considerada pobre. A pesquisa levou em consideração a sobrevivência com menos de 497 reais mensais.
O valor mínimo da cesta básica também aumentou no último ano, de acordo com pesquisa lançada em maio de 2022, pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Observe o comparativo de valor das cestas básicas nos estados Brasileiros:
Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos - Custo e variação da cesta básica - Setembro de 2022 (Dieese). Arte: por Pâmela Stéfani.
A pesquisa ainda indicou que, para a manutenção de uma família de quatro pessoas, o salário mínimo deveria ser de aproximadamente 7 mil reais. É possível pressupor que a quantidade populacional que vive em situação de pobreza não tem a renda necessária para se alimentar apropriadamente. Em níveis de desemprego, de acordo com o IBGE, em maio deste ano, Sergipe apresenta o terceiro maior índice de todo o país, com 12,7%. Além disso, 40% dos sergipanos passaram a trabalhar informalmente, enquanto que 73,3% das pessoas foram empregadas formalmente no setor privado no trimestre. Isso representa 0,8% a menos que no trimestre anterior.
O geógrafo e médico Josué de Castro definiu em sua obra "Geografia da Fome", de 1946, a diferença entre a fome extrema e a parcial oculta. A última seria a existência de uma construção imagética da fome que levaria as pessoas a crer que ela nunca está perto de nós, quando, na verdade, está bem diante de nossos olhos.
Explicitada por pedintes espalhados pelas ruas da capital Sergipana, a realidade é estarrecedora, já que 48,17% da população em Sergipe vive em condição de vulnerabilidade atualmente e o estado ocupa o 5° lugar no ranking nacional da pobreza. Em diversos pontos da cidade de Aracaju, na zona sul ou norte, pessoas em situação de pobreza levantam placas como grito de socorro por não terem o suficiente em casa. No sinal, elas nos obrigam a enxergá-las e criticam fortemente o atual governo, além da insuficiência de suas políticas públicas de combate à fome no Brasil.
Foto: Pâmela Stéfani
Placa, mochilas e brinquedo infantil encostados em um poste.
Edilde Barreto, Leilane Costa, Daniela Santos e Lenilda Silva são algumas dessas pessoas. Com idades entre 22 e 55 anos, elas se reúnem todos os dias, levam seus filhos, por não terem onde deixá-los, e pedem dinheiro em um semáforo localizado nas imediações do bairro Jardins.
Foto: Pâmela Stéfani
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Edilde Barreto e Daniela Santos erguem um papel com seu número de pix anotado.
Ao serem abordadas, as mulheres expõem suas realidades. "Nós estamos aqui pra levar alimento para casa, pedindo no sinal. Às vezes ganhamos uma moedinha, um alimento e assim nós vivemos a vida com alegria", afirma Edilde Barreto, com um sorriso no rosto.
Elas enfrentam uma dura rotina em busca da única forma que encontraram para conseguir aumentar minimamente suas rendas já que são mães solteiras e dependem do auxílio fornecido pelo governo. "Recebo o bolsa família [atual Auxilio Brasil] de 600 reais. Um valor para nos enganar, não é?", diz Lenilda Silva, que demonstra descontentamento com o atual governo, alegando que o valor concedido é insuficiente para suprir suas despesas.
Foto: Pâmela Stéfani
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As mulheres andam com papéis anotados suas chaves pix para receber doações.
Esses dias eu estava cozinhando com álcool porque não tinha dinheiro. Venho para cá quando preciso por faltar alimento dentro de casa [...]
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Leilane Costa
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Leilane Costa dos Santos, 22, diz que não gosta de pedir no semáforo, mas que o faz porque precisa alimentar seus três filhos. "O povo humilha demais porque eles não sabem o que é passar fome. Esses dias eu estava cozinhando com álcool porque não tinha dinheiro. Venho para cá quando preciso, por faltar alimento dentro de casa”, conta.
A jovem afirma ainda que recebe auxílio governamental, mas o valor é insuficiente. "Agora eu tenho coragem de agir pelo meu filho. Peço, pois não quero deixá-lo com fome. Pago um aluguel de 300 e, com 600 reais, não dá para sobreviver”. Durante a entrevista, elas erguem pequenos papéis, com as chaves Pix [meio de pagamento instantâneo] anotadas, para que as fotos sejam tiradas. "Precisamos de uma cesta básica, um alimento, pode mandar para a gente no Pix também", pede Edilde.
Levando em consideração o estudo lançado pela Dieese, para a manutenção de uma família de quatro pessoas, o salário mínimo deveria ser de, aproximadamente, 7 mil reais. Atualmente, apesar de Aracaju ter o menor valor de cesta básica, em comparação a outros estados nacionais, a quantia continua sendo pouca para os que mais precisam. "O trocadinho que recebemos aqui não dá para comprar comida. Ajuda, porque quando ganhamos uma cesta básica é uma benção em casa… Às vezes fazemos 20, 30, tem dias que a gente tem sorte de ganhar 50 reais, aí é uma benção", afirma Lenilda.
A fome tem gênero, idade e raça. São em sua maioria mulheres, crianças, pretos e pardos. É preciso enfrentar a questão com celeridade.
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Geidson Uilson
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De acordo com o professor de economia da UFS, Geidson Uilson, a fome tem gênero, idade e raça. São em sua maioria mulheres, crianças, pretos e pardos. É preciso enfrentar a questão com celeridade. "Isso é um problema muito maior quando pensamos em uma perspectiva futura. Elas não consomem o mínimo de nutrientes necessário para desenvolver as suas chamadas habilidades cognitivas. Falando do ponto de vista estritamente econômico, afeta-se a disponibilidade de capital humano, levando em consideração o desenvolvimento delas e dos seus filhos", afirma.
O combate à fome em território nacional
As políticas públicas de erradicação da fome implantadas no Brasil há cerca de 10 anos incluíram o programa Fome Zero, criado no governo de Luís Inácio Lula da Silva. De acordo com a ONU, muitos fatores foram importantes para que o país saísse do mapa da fome em 2014.
Dentre eles estão o aumento da oferta de alimentos, da renda dos mais pobres, com o crescimento real de 71,5% do salário mínimo, além da geração de 21 milhões de empregos. Outros fatores incluem a implementação do Programa Bolsa Família, que abrangeu 14 milhões de famílias, e a merenda escolar, que acolheu 43 milhões de crianças e jovens com refeições.
Temos ainda a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a governança, a transparência e a participação da sociedade. Essas foram as principais estratégias que permitiram o Brasil sair desse mapa mundial.
O programa Bolsa Família foi substituído pelo programa Auxílio Brasil no governo Bolsonaro. As principais diferenças entre os dois são o valor do benefício e os critérios utilizados para determinar quem tem direito a recebê-lo.
Apesar da mudança, o Auxílio Brasil continua sendo reconhecido por muitos como Bolsa Família pelo fato de que este último foi uma criação amplamente utilizada no combate à fome e à pobreza. Uma questão que perdura no governo Bolsonaro são as medidas governamentais adotadas por ele. Uma de suas primeiras medidas foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019.
Houve também corte de recursos para o Programa de Cisternas e o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA). Tais medidas prejudicam amplamente a população menos favorecida que ainda sofre com os impactos negativos da pandemia.
Com essas informações, é explícito o descaso sofrido pela população mais pobre ao colocar em perspectiva os direitos básicos humanos. As medidas de enfrentamento à pobreza são escassas e se fazem mais necessárias que nunca a fim de recuperar novamente o Brasil e retirá-lo do mapa da fome.
Ao falar das formas como o Brasil pode sair novamente do mapa da fome, o economista afirma que diversos estudos mostram que o país enfrentou o problema nos últimos anos e foi eficiente. "Além dos programas de transferência de renda com valor suficiente para a alimentação adequada, um outro caminho seria o fortalecimento de programas de aquisição de alimentos da agricultura familiar. Eles atuam em duas pontas para um público de baixa renda e de extrema pobreza", sugeriu.