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Bigato Pereira: baque, cortejo

à liberdade e aquilombamento 

Escolhido e acolhido pelo baque, Bigato compartilha suas vivências no Maracatu com seus alunos e espalha essa cultura por Sergipe.

Por Larissa Moura, Letícia Monalisa e Marco Ferro

          O sol das três da tarde de um sábado é incisivo, mas os três homens que chegam carregando instrumentos não se abalam e ocupam um canteiro, com sombra, na pista de skate da Orla da Atalaia, um dos principais pontos turísticos da capital. Timbal, alfaia e gonguê são dispostos na grama, mas falta ainda a caixa e o ajbé para completar o baque.

          Até então, nosso contato com o mestre Bigato Pereira era apenas virtual, mesmo assim foi fácil reconhecê-lo, com seu fiel óculos escuro, vestindo a camisa do grupo Maracatu Asé D’orí, boné, bermuda e tênis preto. Bigato nos recebeu com um abraço e um sorriso acolhedor, disposto a conversar e pedindo para que ficássemos à vontade.

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          Da física dura e exata aos maleáveis sons e movimentos do Maracatu, a trajetória de Bigato Pereira é um retorno, ou melhor, uma descoberta de raízes. O percussionista e professor em oficinas, que conectam alunos com a essência da expressão folclórica, também já foi um aprendiz e precisou percorrer uma grande trajetória para entender seu ofício.

          Para conhecer Bigato, é preciso abandonar qualquer tipo de descrença sobre o acaso. Nesta jornada, o Maracatu surge como um chamado rumo ao desconhecido, por ambientes completamente novos. Foi em São Paulo, longe de casa e da família, que o sergipano teve o seu primeiro contato com o Maracatu. O encontro aconteceu em 2010, no momento em que, tomado pela saudade, percebeu a necessidade de firmar-se em meio a um território desconhecido. 

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 Nas oficinas, Bigato repassa  o conhecimento acumulado sobre as características do Maracatu e estimula o entrosamento com a expressão cultural  (Foto: Larissa Moura)

Uma segunda família

          Foi com o Maracatucá, grupo de Campinas, que ele foi escolhido pelo Maracatu para realizar sua missão. No mesmo ano, começou a conduzir oficinas junto ao Maracatucá e em 2011, quando vinha passar as férias em Aracaju, testou as águas. Como quem não quer nada, tentou compartilhar suas vivências para a cidade e reuniu um grupo de pessoas dispostas a participar das oficinas. Sua busca por aprendizado e entrega à percussão ultrapassou fronteiras e Bigato criou laços fortes, semelhantes aos familiares, que tanto sentia falta. Acolhido em 2014 por um grupo de Salvador, onde realizou oficinas, considera a Maracatu Ventos de Ouro sua irmã de Maracatu. Também foi abraçado pela Nação Maracatu Porto Rico, de Pernambuco, a sua principal referência. Dentro da Nação, aprendeu com o mestre Chacon desde a construção de tambores aos fundamentos da manifestação cultural. Talvez o Maracatu tenha o encontrado para que ele mesmo pudesse se encontrar.

          Firmado o compromisso e munido do conhecimento adquirido de seus mestres, Bigato se viu na posição de compartilhar o aprendizado e fortalecer a cultura dentro de sua terra natal. Assim, em 2011, começou a ministrar oficinas de divulgação da sonoridade e coletividade e, em 2014, criou o grupo Maracatu Asè D’Ori, que faz parte do maracatu nação e é considerado a primeira expressão de baque virado do estado.

Em 2010, Bigato deu início as oficinas,  de maneira despretensiosa,  interessado em compartilhar suas vivências (Fotos: Larissa Moura)

          “Eu costumo falar que é o primeiro baque virado de Sergipe que se tem notícia porque a gente não pode esquecer de todas essas manifestações que podem ter sido apagadas pelo processo de racismo, o processo histórico de apagamento das nossas riquezas ancestrais”, afirma Bigato.
          Nascidos nos terreiros de candomblé de Pernambuco, os grupos de maracatu de baque virado são agrupados em nações, com ligação com os quilombos que lhes dão origem e reconhecidos como patrimônio imaterial desde 2014 por representar a expressão da cultura afro-brasileira. Considerando a dimensão histórica, percussiva e a representatividade cultural, Bigato enxerga o Maracatu como uma ferramenta e uma tecnologia de aquilombamento.


“No toque do meu gongué, no chiquichá dos meus agbês ”
          A aula começou com broncas, tão envoltas ao bom humor que, se não entendêssemos o contexto, jamais saberíamos. No discurso, ele destaca a importância de ouvir os discos recomendados, de se familiarizar com as músicas, e a necessidade de estar imerso na prática do baque. “Tem que aproveitar o bom das coisas. Quanto mais tempo você tem no Maracatu, mais aproveita a festa, a companhia e a presença do Maracatu na sua vida”, enfatiza Bigato.

          O pessoal da alfaia, um tambor envolto de cordas característico do  Maracatu e do Samba de coco, são os primeiros a chegar para afinar os instrumentos. O esforço para manejar as cordas e atear nós é grande, mas a atenção do mestre Bigato, que incentiva que os alunos colaborem entre si, também é. 
          Ritmo, movimento e harmonia descrevem a oficina. O som, que começou a ecoar apenas com Bigato no Timbal e um companheiro ensaiando os movimentos de dança, vai ganhando aos poucos novos, timbres, graves e agudos, com a incorporação também do coro de alunos que ensaiam a letra das músicas que irão cantar no baque. Para os adultos, crianças e idosos que compõem a oficina, os instrumentos funcionam quase como uma extensão do corpo.

          É fácil se sentir confortável na presença de Bigato. Mais que um professor, ele deixa claro que também está frequentemente aprendendo com seus alunos; estes que, com orgulho, apresentam os avanços de semanas de práticas com os instrumentos, enquanto outros relatam suas dificuldades – sempre acompanhadas do compromisso de buscar o melhor resultado. Todos os comentários são recebidos com o mesmo entusiasmo e estímulo. 

          A preocupação também é com a valorização do Maracatu como uma expressão que possui fundamentos e o empenho no processo de aprendizagem. Bigato questiona - “Lembram dos arranjos da semana passada?”- e faz questão de despertar nos alunos o entrosamento com as letras e sons já consagrados, com o objetivo de tornar a experiência ainda mais única e prazerosa coletivamente.

          Mesmo em um sábado pré-eleições presidenciais de segundo turno, num espaço em que os esportes radicais são protagonistas, o som do baque do Maracatu chamou a atenção dos passantes, que se acumulavam ao redor para acompanhar o ensaio. Parece até impensável, dada a polarização presente em todo o país, observar pessoas vestidas com adereços e bandeiras de diferentes partidos compartilhando o mesmo espaço. Foi bom observar que a celebração da prática cultural, durante horas, foi maior que qualquer divergência política. 
 

“Homens guerreiros, mulheres que lutam pela liberdade”

          Bigato carrega em si a essência do Maracatu, em uma relação tão íntima que é impossível fazer qualquer desassociação. Vê-se, em suas falas e movimentos, a alegria dos cortejos e o batuque do tambor que guia o povo em união. Estar em sua presença é, antes de tudo, sentir a sublime e calorosa expressão de contentamento. 

          “Eu acho que a maior riqueza que o Maracatu me trouxe foram grandes amizades e encontros na minha vida que me levaram para vários lugares, onde pude conversar com pessoas de realidades totalmente diferentes através da mesma linguagem, a linguagem do maracatu. Então, eu acho que o tambor tem esse poder de construir pontes onde as pessoas põem fronteiras”.
          Bigato se afasta em um momento e retorna segurando uma camisa e o apito. Logo dá início a uma canção, ergue a camisa com a imagem de Marielle Franco e outras duas figuras representativas dos povos indígenas e pessoas negras, e em unidade, os participantes cantam: “Homens guerreiros, mulheres que lutam pela pela liberdade”. Bigato pula no ar, explode junto com a intensidade do baque e vibra.

          Com o sol se despedindo, ele tira os óculos, os alunos param de tocar e se abraçam. Enquanto Bigato carrega o som junto com a agogé, todos estão unidos pelo asé. 

          Se antes sentia falta da família e de casa, Bigato retornou ao seu lar com o coração preenchido com tudo o que lhe é mais precioso, carregando no axé seus irmãos de baque e canalizando toda sua vivência em suas apresentações.

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