Revelando histórias,
desvendando o invisível
A treinadora de um jogo
que nunca termina
Quando uma ex-atleta de handebol decide usar o esporte como ponte para a educação
Por Lucas Lima, Maria Letícia Oliveira e Taís Felix
Aos 52 anos, com seus cabelos louros, olhos iluminados, piercing no nariz e inúmeras tatuagens pelo corpo, quem a vê pela rua deve invejá-la pela alma livre e descontraída que a sua imagem passa. Pelos sinais naturais de envelhecimento, estereótipos devem ser reforçados: a da ‘coroa’ vida louca e bem de vida. De fato, Any exala uma vibe de quem se balança na rede ouvindo um reggae, enquanto o cheiro de incenso emana pela casa. Ela até é essa pessoa, mas quem a encontra por aí jamais seria capaz de deduzir as histórias que esse corpo e coração foram e são capazes de escrever. Ninguém diz que aqueles braços pintados com tantos desenhos foram responsáveis por gols decisivos. Ninguém imagina que as suas mãos seguraram a de tantas outras não só em quadra, mas em vários processos da vida. Ninguém saberia que a sua voz norteou diversos alunos a seguirem o único caminho capaz de mudar suas vidas: o da educação.
Frequentemente elogiada por sua vitalidade, o que muitos não sabem é que esse brilho é sustentado por uma resistência que já nasceu com ela e foi aperfeiçoada com os anos de prática de handebol. Para ser atleta desta modalidade é preciso aguentar os empurrões e as batidas para tomar e passar a bola. É uma prática de resistência e força pura. É, também, uma prática de coragem. Coragem de entrar em quadra e bater de frente com atletas tão ou mais fortes que você, mas deixar que a vontade de vencer prevaleça. E é força, resistência e coragem que melhor define a ex-atleta Any Shirley Machado, mãe, profissional de Educação Física e técnica de handebol mais amada e odiada de Sergipe. Amada por uma legião de filhos nascidos pelo amor em comum com a modalidade e odiada por aqueles que tentam passar por cima das regras que o esporte precisa ter.
O amor é comprovado pela casa cheia que a mãe de Any tanto reclama. Mesmo após tanto tempo sem morar mais juntas, a matriarca continua questionando as escolhas da filha. Talvez nem a própria mãe consiga entender a carga de felicidade e orgulho que Shyrley tem quando seus alunos e atletas enviam o convite de formatura, deixando claro que ela é um dos motivos para que eles chegassem ao diploma. No que toca ao ódio, até existem atletas que discordam da professora, mas as reais desavenças acontecem em jogos que treinadores e equipes agem de má fé para chegar a vitória, passando por cima das leis esportivas. Em casos assim, a briga é certa e só finaliza quando as irregularidades são provadas, o time desonesto é punido e o vencedor sobe ao pódio, independentemente de ser o seu.
Educando para a vida
Até para ser a professora que é hoje, Any foi combativa. Passou por cima das ordens do pai, que permitiu que ela cursasse Educação Física na UFS com a condição de também estudar Administração na Unit. No entanto, o seu caráter empático e sua inclinação para a docência aflorou durante uma aula da disciplina “Recreação”, em que ela e o grupo precisaram falar sobre crianças que
Foto: acervo pessoal Any Shirley
acompanhavam seus pais em canaviais de Pernambuco e encontravam formas de brincar em meio àquele mundo verde e de sol escaldante. Seus olhos marejam ao lembrar das imagens que a incentivaram a sair da sua bolha e entender que ao seu redor existiam milhares de crianças que precisavam de um pontapé para ter educação e traçar uma melhora de vida.
Firme na sua missão, antes do comando de uma sala de aula foi atleta e chegou a fazer parte da seleção brasileira de handebol, sendo destaque em competições do Estado de Sergipe. Mas não foi a paixão pelo esporte que a fez chegar tão longe na Educação Física, e é isso que a distingue dos demais professores. Como ex-atleta e docente, apenas colocar alunos numa quadra não saciou o seu objetivo de fazer a diferença no mundo. Ela queria educar e amar. Assim, especializou-se em Educação Física Escolar, para ter um conhecimento ainda maior sobre lidar com os estudantes por meio do ensino interligado ao esporte.
Com mais de 20 anos de sala de aula, intercalados com o ensino do handebol por meio de projetos que acolhiam alunos das mais diversas vulnerabilidades, Any Shyrley acumula incontáveis participações em formaturas de cursos superiores de ex alunos que começaram treinando handebol em uma quadra qualquer, sem perspectiva alguma de se destacar como atleta e muito menos de se tornar um universitário. Sem medir esforços, a professora ajudou de muitas maneiras todos os jovens que se comprometeram a manter o estudo para poder treinar handebol. Por anos acolheu e ainda acolhe os atletas em sua própria casa quando é necessário, cria vínculos com as famílias, dá apoio emocional e se atenta para que eles não coloquem a educação em segundo plano.
Durante a conversa, ela cita uma das alunas que mais marcaram sua trajetória: negra, moradora do interior sergipano, de uma família de gerações que trabalharam para sobreviver, sem ter oportunidade de estudo e que tudo indicava que ela seguiria o mesmo caminho. Contudo, um dos seus atletas comentou sobre a menina, de 17 anos, que estava no Ensino Médio, tinha talento para handebol e gostaria de trazê-la para o time de Any. Após alguns treinos, ela começou a jogar e se destacou.
Como sempre, a treinadora a chamou para uma conversa e disse que ela iria estudar, fazer o Enem e entrar para a universidade, porque era ali que ela deveria estar. “Não foi fácil fazê-la entender que era merecedora de estar em uma faculdade pública, que tinha potencial para aquilo independente da sua realidade. Mas eu insisti, disse que ela entrasse em qualquer curso, se não gostasse, depois a gente repensava e ela prestava vestibular de novo”, relata.
E a garota ingressou na UFS. Se encontrou no curso e Any chora ao descrever a alegria que foi ver a sua atleta quebrando barreiras e entendendo que ela tem voz e espaço, mesmo que a sociedade diga que não. Ao contar essas histórias, a educadora vai mostrando que a sua personalidade forte nunca foi por rebeldia, foi para se manter forte e lutar por todos os seus filhos.
Uma adversária silenciosa
Mas a fortaleza não serviu apenas para os outros, a sua força e resistência também foi cobrada em muitos aspectos da sua vida pessoal, em que o esporte e todo o projeto que gira em todo dele foi a âncora de Shirley, principalmente em momentos que ela não teria sido capaz de vencer sem ter o handebol. Em 2013, o seu pai faleceu e a perda foi pesada demais, até que recebeu a ligação de um atleta pedindo que ela fosse a técnica deles e os representassem numa competição. Shyrley não soube recusar o pedido, é claro. E, ao voltar para as quadras, foi percebendo que a saudade já não doía tanto assim, o handebol mais uma vez foi a cura para suas feridas.
Após um tempo, comandando a equipe feminino de handebol da UFS, mesmo que de forma voluntária, com a sua liderança o time foi se estabelecendo e ganhando destaque no estado, ganhando diversos campeonatos, conseguindo vagas em torneios nacionais e participando dos Jogos Universitários Brasileiro, o JUBs - Principal competição do desporto universitário do país, trazendo medalhas para a instituição.
Mas, ao falar da experiência sendo líder de um time universitário, o foco continua sendo a relação materna e educativa que tem com os participantes, porque foi nesse momento em que “adotou” seu segundo filho, Mauro Victor, um jovem entrando na fase adulta, que enfrentava problemas com sua família biológica. No time, ele conquistou o coração da treinadora para além da quadra e se tornou seu segundo filho, indo morar com Any e sua primeira e única filha, Maria Eduarda, também já maior de idade, que construiu uma amizade com o mais novo irmão e evoluiu para uma irmandade afetiva. Em toda conversa, Shyrley enche a boca para falar dos seus filhos, das suas duas “crianças” que ela ama da forma mais intensa possível, de como o encontro com Mauro é de outras vidas e que ele era o que faltava para se tornar completa.
Apesar de tanta vontade de viver, de tanta intensidade - Any é puro fogo, a vida lhe trouxe uma adversária silenciosa, misteriosa e que conhece como poucos as fraquezas de qualquer um: a depressão.
Em 2018, a ameaça de um aluno dentro da sala de aula afetou a professora de forma profunda. Não sem razão: as palavras, duras, atentavam contra sua própria integridade física. A dor de ver aquilo que mais amava se voltando contra ela desarmou sua armadura e o seu consciente não aguentou. O episódio fez com que desenvolvesse crises de pânico e de ansiedade, evoluindo para estado clínico depressivo. Como ela mesmo diz, ter vivido isso no seu local de trabalho, no espaço em que dá sentido à sua vida, foi pesado e estremeceu tudo o que ela acreditava e lutava. Desde então, a professora não conseguiu mais voltar a ensinar.
Any teve que se afastar do que mais gostava e iniciar mais uma batalha, dessa vez contra o estado, tentando provar uma doença que muitos desacreditam, por não ter feridas visíveis. Hoje, mesmo tomando dez medicações por dia para não desabar, a profissional reitera a empatia e amor existente nela, ao chorar explicando que não foi a ameaça em si que a abalou dessa forma, foi ver seu aluno, um adolescente inteligente, ser vítima da sociedade e acabar reproduzindo o caminho de violência em que estava inserido.
Agora, depois de todo o processo jurídico e médico, ela compreende que um ciclo encerrou, de forma compulsória, mas acabou. E, isso ainda a atormenta todos os dias. Mas, mais uma vez, o handebol vem sendo a cura. A sala de aula não existirá mais, mas a quadra, sim. Porque o esporte ainda vai continuar sendo o suporte para tornar os seus atletas em campeões nas competições, na vida e nos estudos. E, com toda certeza, seus filhos, os atletas que ela constrói diariamente, permanecerão admirando o ser humano forte, resistente e corajoso que a professora e técnica é. A mesma que agora luta não contra um time, mas contra uma inimiga que brinca de esconde-esconde e se assusta demais quando reaparece. Mas se tem algo que Any Shyrley sabe, é resistir. O jogo ainda não acabou.