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Crédito da foto
Foto: Jane Miranda
Meu suor tem valor e cor
Ser mulher negra no Brasil é se deparar com menos oportunidades de trabalho, exercer menos cargos de liderança e ter a menor renda média salarial
Elaine Olímpio, Franciene Maria e Jane Miranda
Ser mulher negra em um país machista como o Brasil não é fácil. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílios (PNAD)- Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o Brasil registrou cerca de 87,7 milhões de pessoas na força ativa, no 2º trimestre de 2021, os desocupados estavam com um contingente de 14,4 milhões no mesmo período, sendo a maioria pretos e pardos (62,2%). Neste mesmo período, o total da população brasileira estava estimada em 212 milhões sendo 55% negros, na média dos nos noves estados do nordeste 72,5%, e em Sergipe 76%, sendo assim, o quarto estado do nordeste com mais pessoas negras.
Em um boletim de uma edição especial do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta que do terceiro trimestre de 2019 a 2021, houve uma redução entre as mulheres negras na força de trabalho (925 mil brasileiras), número superior ao das não negras (189 mil).
E a situação é mais grave para a mulher negra. Um fator que intensifica a dificuldade e exclusão da mulher negra no mercado de trabalho é que ela tem que optar entre trabalhar ou estudar. Esta situação se reflete nas estatísticas. Em 2016, segundo dados da PNAD- Contínua do IBGE, uma análise de indicadores que mensuram o atraso escolar mostra que as mulheres pretas ou pardas de 15 a 17 anos de idade apresentam atraso escolar em 30,7% dos casos. Os dados mencionados refletem o que fez a auxiliar de serviços gerais Edivânia Santos, de 38 anos, quando, na adolescência, precisou deixar de estudar para trabalhar em casa de família como doméstica e lavar “roupa de ganho”, termo que ela usa para descrever que lavava certas quantidades de roupas de famílias desconhecidas e de um clube de futebol como opção para se manter e posteriormente contribuir com a família que ela havia formado. As dificuldades não impediram que ela persistisse em encontrar um trabalho remunerado formalmente.
De acordo com a doutoranda em sociologia Laila Thaise Oliveira, a consequência do racismo estrutural (que é o racismo presente na própria estrutura social de uma sociedade) é de uma estrutura racista e oriundas do processo de escravidão, em que os direitos da mulher negra eram, e ainda são, negados; com direito à educação, saúde e até de sua humanidade.
Após a abolição, não houve de fato uma política de amparo às mulheres negras, saímos de um processo de escravização para um processo de liberdade sem o reconhecimento de cidadania e humanidade reconhecida no Brasil, os europeus não nos reconheciam, já existia uma discussão de uma inferiorização dessa população.
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Diz a doutoranda, Laila Thaise Oliveira
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Foto: Elaine Olímpio e Jane Miranda
Foto: Elaine Olímpio e Jane Miranda
Edivânia batendo ponto no fim do expediente de trabalho.
Edivânia Santos não se lembra de ter sofrido algum tipo de injúria racial (ofensa dirigida para uma pessoa ou um grupo determinado de pessoas), mas percebe que já sofreu racismo, por nos relatar que presenciou momentos de desconforto com suas amigas, e que conseguiu seu primeiro emprego formal por uma indicação masculina. Ao nos contar um fato que aconteceu há mais de uma década na escola onde a filha estuda, ela percebeu que a filha repetiu inconscientemente padrões de preferências excludentes. “Não queria brincar com coleguinhas negras”, acontecimento que se encaixa como reprodução do racismo estrutural. Edivânia teve que procurar auxílio da escola e de ajuda técnica para enfrentar a situação da filha. Veja no vídeo a seguir:
Mãe explica como lidou com racismo estrutural da filha.
Maioria no mercado de trabalho
Após 134 anos da abolição da escravatura, e de 200 anos da Independência, a população negra do Brasil ainda luta por direitos fundamentais. Para Laila Oliveira, como consequência da abolição da escravidão no Brasil, há uma continuidade nas dinâmicas existentes nas explorações de trabalho, que se configura como emprego, realidade presente entre as mulheres negras. Também há o caso de inúmeras brasileiras que não têm oportunidade de se qualificar.
Laila relata que atualmente, observamos a perpetuação do emprego doméstico, onde muitas vezes os direitos humanos não são reconhecidos, ou seja, diversas mulheres negras não recebem um salário digno e acabam migrando para outras cidades ainda na adolescência em busca de um trabalho com uma boa remuneração.
“Quantas meninas negras vêm morar e trabalhar em casas de famílias brancas e ainda se deparam com todo tipo de exploração sexual, maus tratos, privação, inclusive, do próprio acesso à educação e aos seus direitos?” indaga a socióloga Laila Oliveira. Essas perguntas nos norteiam para buscarmos respostas a fim de entender esse ciclo que coloca as negras em uma situação de desvantagem se comparadas com as não negras.
Após a abolição, não houve de fato uma política de amparo às mulheres negras, saímos de um processo de escravização para um processo de liberdade sem o reconhecimento de cidadania e humanidade reconhecida no Brasil, os europeus não nos reconheciam, já existia uma discussão de uma inferiorização dessa população.
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Diz a doutoranda
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Foto: arquivo pessoal
Laila Thaise Oliveira em momento de descontração para selfie.
Segundo os dados do segundo trimestre de 2022 do IBGE em Sergipe, fornecidos pela assessoria, revelam que de um total de 958 mil pessoas ocupadas com idade superior a 14 anos, 583 mil são homens, enquanto 375 mil são mulheres. Esses dados revelam essa diferença que coloca a mulher em uma posição inferior à do homem, e favorece para que a igualdade de gênero seja cada vez mais difícil.
Ocupação em Sergipe por cor, dados fornecidos pela assessoria em 26/08/2022.
(Arte: Elaine Olímpio)
Referente à cor, a maioria das pessoas ocupadas no mercado formal em Sergipe são negras (722 mil), pretas (139 mil) e pardas (583 mil). Já as brancas são 228 mil, 8 mil restantes não é especificado a cor, o que corresponde a 23,9% brancos, 75,3% negros e 0,8% outras. O recorte destes dados não detalha sobre o quanto esse número é de mulheres ou de homens negros (pretos e pardos), colocando os dois gêneros em um mesmo subgrupo, dificultando a visualização da real situação da mulher negra, que entendemos a partir das questões sociais e das pesquisas sobre a renda média salarial e do números dos cargos de gerência que exercem serem escassos na força ativa no trabalho formal.
Com isso, podemos compreender que a maior quantidade de pessoas que trabalham são formadas por negros, mas essa classe não está em boas condições de vida quando comparadas com os não negros, o que é um fator determinante para acentuar a desigualdade de renda. O gráfico ao lado ilustra os dados relacio-
nados à ocupação por cor, entretanto, não há distinção do gênero, isso reforça a importância do censo que está sendo feito este ano de 2022 que no caso da mulher negra, não contingenciar ou suprimir a necessidade de combater o machismo e racismo em nosso país.
Minoria nos cargos de liderança
A luta pelos espaços das mulheres negras e pelo reconhecimento de que o lugar dela é onde ela quiser parece distante quando verificamos que, a partir do momento em que a sociedade não admitiu e não tomou para si que existia um problema na raiz da sua estrutura.
Isso faz com que as mulheres negras tenham “a completa negação de direito e da desumanização de seus corpos, consequentemente, isso já gerou uma desigualdade que vai ser refletida no mercado de trabalho, com toda essa discussão sobre a mulher negra enquanto ela está na base da pirâmide social”, reforça Laila.
Segundo os dados apresentados pela pesquisa do Dieese em 2021, tal fator pode ser captado se verificarmos que as mulheres negras são minorias nos cargos de gerência inseridas no mercado formal no Brasil: mulheres negras (1,9%), seguido de homens negros (2,2%), mulheres não negras (5,0%) e homens não negros (6,9%). Esses dados expõem a realidade brasileira que mais uma vez não favorece o crescimento das mulheres negras no mercado de trabalho, tendo em vista que estão em desvantagem aos demais, apresentando o menor índice em cargos de gerência.
Estes percentuais nos mostram o quanto o machismo e o racismo refletem nas posições de cargos de gerência. Edivânia Santos ressalta que há poucas mulheres como ela que não ocupam esses espaços de gerência porque tiveram que trabalhar desde jovens por não terem famílias com condições de mantê-las nos estudos. “Não estou em um cargo de gerência, não pela falta de capacidade, pois tenho para isso, mas, infelizmente, não tive estudo. Sinto dificuldade não só pela minha cor, mas também pela minha idade”.
A diretora da Biblioteca Central (Bicen) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Selma Santos, que exerce cargo de liderança, relata que “o racismo estrutural tem um potencial gigantesco para tirar as mulheres negras dos cargos de poder” e isso faz com que “a mulher negra esteja em empregos subalternos, prejudicando a sua ascensão”.
Foto: Jane Miranda
Foto: Jane Miranda
Na sala da chefia o racismo não entra. Selma Santos.
Menor renda média salarial
Para análise do quanto essas pessoas ganham por meio do trabalho que executam, os dados do Dieese em 2021 demonstram que a renda média salarial do nordeste é de 1.825 reais por cor e gênero, enquanto nas outras regiões são: norte 2.097 reais, centro-oeste 2.832 reais, sudeste 2.673 reais e sul 2.396 reais. No nordeste, a renda salarial da mulher negra é menor que a das não negras e dos homens em geral. O gráfico a seguir, mostra as diferenças dos salários entre as pessoas negras e não negras do nordeste:
Diferenças dos salários entre as pessoas negras e não negras do nordeste. Fonte: IBGE- Pnad Contínua, 2º trimestre de 2021. (Arte: Jane Miranda)
A renda média salarial apenas das mulheres negras nas outras regiões do país são: norte 1580 reais, centro-oeste 1.951 reais, sudeste 1.738 reais, sul 1.696. Sendo a do nordeste, a menor do Brasil (1.334 reais).
"Quando a gente vê uma diferença salarial entre mulheres brancas e negras, oriundas do racismo e do machismo que se desenvolveram na nossa sociedade, que no que lhe concerne foi alimentado de diversas formas, inclusive, o próprio mito da democracia racial que contribuiu para isso", reforça a doutoranda em sociologia, Laila Oliveira.
A condição de receber o salário mensal menor que os demais, por ter um nível de melanina ponderado a alto, revela como o racismo influencia na nossa história, de onde viemos e estamos. A diretora da Bicen, Selma Santos, que também faz parte do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI/UFS), diz que "tem empresa falando em diversidade, mas quando você vai para o ambiente interno, os cargos de gerência estão todos ocupados por pessoas brancas e homens. É preciso que essas empresas tenham que trabalhar na questão da seleção e do recorte de raça”.
Sobre o combate ao racismo, a terceirizada em serviços gerais, Edivânia Santos, diz que faltam leis mais vigentes e eficazes em combate ao racismo, e também que falta atitude em denunciar ao sofrerem racismo, “tem que vir de dentro das pessoas, e das que passam diretamente pelo racismo, se imporem ao sofrer algum tipo de violência, infelizmente o Brasil não tem lei para isso, na verdade, existem leis no papel, mas não, na prática'' relata Edivânia Santos, sobre o combate ao racismo.
É árduo o caminho a percorrer ao perceber o quanto o racismo reflete em questões não deduzidas de forma tão perceptíveis e claras pela sociedade em geral, mas ao analisar os dados pesquisados desta reportagem podemos analisar que os pretos e pardos (grupos que o IBGE classifica como negros), em especial a mulher negra, se encontra em desvantagem em comparação com homens e mulheres brancas, tornando e perpetuando a mulher negra na posição de subalterna.