Revelando histórias,
desvendando o invisível
Tathiane Araújo:
uma mulher de lutas e sorrisos
Engajada em movimentos sociais e pautas desafiadoras, Tathiane sabe o que é viver tendo que conquistar o seu espaço, seja na sua vida pessoal ou na política
Por Bruna Mota, Isabela Silva e Yure Pio
Quando pensamos no perfilado, estávamos procurando uma história inspiradora de luta e resiliência. Tathiane Araújo sobressaiu no meio de tantas possíveis histórias. Pode-se dizer que foi escolhida devido ao seu passado de resistência, mas principalmente pelo seu presente de sobrevivência.
Ansiosa e contente, Tathiane espera pela entrevista. Foto: Bruna Mota
Tathiane Araújo é a segunda filha de pais e viveu boa parte da infância no interior do município de Paripiranga na Bahia. A criança que ela foi teve um longo caminho até se tornar a mulher que é hoje. Até ser reconhecida socialmente como uma mulher trans, ela contou com uma rede de apoio reduzida e diversas dificuldades ao longo da vida. Antes, uma criança buscando identificação; hoje, uma mulher transexual decidida e engajada na luta pelos direitos LGBTQIAPN+.
Se hoje uma pessoa LGBTQIAPN+ ainda encontra resistência, o que dizer para uma criança que cresceu na década de 1990? Tathiane, quando criança, ouviu que não podia usar calças apertadas ou que não era normal ela preferir uma fantasia rosa do seu desenho preferido.
— Mas, eu fui criança que busquei mesmo, fui muito ousada. Eu buscava os maiôs de minha mãe que tinham bojo, buscava muitas vezes me assemelhar aos personagens da televisão sempre no campo feminino.
Suas melhores lembranças na infância são os momentos em que podia se sentir livre das amarras da sociedade em uma época que pouco se falava sobre a transexualidade.
Desde cedo, enfrentou discriminação em diversos campos de sua vida. Nos esportes sua atividade favorita era jogar vôlei, mas ela precisou se afastar ao perceber que o espaço social demandava uma certa masculinidade que se tornava tóxica. Nunca houve “coisas de garotas e garotos” para Tathiane, mesmo quando a sociedade tentava lhe determinar o que devia fazer ou praticar. Ela fazia o que lhe deixava feliz.
— Eu gostava de jogar bola, mas eu também gostava de dançar como a Angélica na televisão, e eu era reprimida nessa hora de dançar como a Angélica.
Estudou em escola pública a partir do 7º ano e sempre teve que correr atrás do que queria, se queria um jogo de videogame ela precisava se esforçar para comprar. Ela vendia coxinha e bombons para comprar bola de vôlei e jogos. São lembranças que a marcaram e a fizeram ser a pessoa que se tornou: uma mulher preparada para enfrentar obstáculos e encontrar novos caminhos.
Tathiane aproveitou todas as oportunidades que a vida lhe deu. Se aventurou em diversas carreiras: aos 16 ingressou na carreira de modelo, sendo miss e, posteriormente, trabalhou como atriz em peças pelo estado. Em processo de transição, ela viu nos concursos de Miss uma chance de mostrar quem era. Com plumas e paetês, ela foi Miss Brasil por três vezes na juventude, chegando até a ganhar o Miss Universo Gay, em 1997.
Recorte do Jornal Cinform de quando ela ganhou o Miss Universo Gay (Imagem: Acervo pessoal)
Peça teatral que Tathiane participou
(Imagem: Acervo pessoal)
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a comunidade Trans no Brasil possui expectativa de vida de 35 anos. Um número baixíssimo em comparação com a expectativa de vida média da população brasileira de 76 anos. Mesmo com essas dificuldades, Tathiane é uma mulher trans de 42 anos e conseguiu superar as expectativas que a sociedade esperava de pessoas trans na época.
— Essas lembranças me recordam e me trazem bastante gosto daquilo que eu fazia, porque me faz ser a pessoa que eu sou hoje, me preparou para tantos obstáculos e caminhos que o mundo aponta para pessoas transexuais, principalmente na minha época. Nos meus 17, 18 e 19 anos eu só conhecia pessoas trans que eram do campo da prostituição, que só tinham isso como alternativa, não que a prostituição seja algo ruim, é uma profissão digna, mas deveria ser algo que tem que ter aptidão.
Provavelmente, se a conheceu antes ela tinha outro nome, mas isso não importa porque nada mudou. Tathiane é gentil e transparece leveza mesmo revivendo o lado difícil da sua história. Com toda a agenda repleta de afazeres políticos e pessoais, ela fez questão de nos receber pessoalmente e não pense que foi no “bora logo, tô com pressa”, nossa conversa durou por mais de uma hora. Em nenhum momento ela tirou o sorriso do rosto, talvez tenha dado cãibra por ficar tanto tempo sorrindo, mas era tão espontâneo e contagiante que duvidamos que ela tenha se importado.
Tathiane relembra memórias com afeto. Foto: Bruna Mota
Com nosso segundo encontro marcado para às 15h, Tathiane chegou com sorrisos e abraços e nos convidou para conhecer a sede da Astra LGBT, em Aracaju. Ela ajudou a formar essa organização que, além de lutar pelos direitos das pessoas LGBTQIAPN+, organizou a primeira parada LGBTQIAPN+, em Sergipe, que ocorreu em julho de 2002. Ao chegar na reunião, foi notório o respeito e parceria que Tathiane tem com os e as integrantes do grupo. Cada um com suas particularidades, ela respeitou a todos e os enxergou como pessoas únicas.
Quadros das paradas gay realizadas pela Astra LGBT
(Foto: Yure Pio)
Com conversas expressivas e risadas, a reunião transcorreu como deveria. Tathiane Araújo é uma líder. Conduziu e trouxe pautas para a reunião, fez críticas e elogiou os feitos de cada um. As pessoas podem falar o que quiser dela, mas não há dúvidas ou brechas sobre a sua vontade de fazer a organização funcionar. Se mobiliza a todo instante para levantar pautas e trazer políticas que ajudem na causa LGBTQIAPN+. Mas, o que esperar de uma mulher que respira política desde a adolescência?
Enquanto adolescentes se preocupavam com a fórmula de Bhaskara ou saber se sangue A + doa para O-, Tathiane estava mais a fim de ser presidenta do grêmio estudantil. Ela ingressou no ensino médio no Colégio Atheneu Sergipense quando tinha 16 anos e foi eleita com 89% dos votos, se tornando a estudante mais votada na história do grêmio.
Mas, mesmo ganhando de “lavada”, isso não abstém todo julgamento que ouviu: “Vocês vão votar para presidente de uma escola tão grande, uma pessoa afeminada, um viado que usa roupas de mulher?”
Tathiane no pátio do Colégio Atheneu em 1998
(Imagem: Acervo pessoal)
Depois disso, tudo empurrava Tathiane Araújo para a política. Sua vida começou a seguir por onde a política a guiava. Seus objetivos pessoais? Talvez se percam na sua agenda de compromissos políticos. Se tiver sorte, talvez consiga encaixar o almoço depois da reunião das 16h. Mas em sua defesa, a situação brasileira atual e principalmente para comunidade LGBTQIAPN+ não lhe dá margem para descanso.
Outra organização que Tathiane participa é a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil - Rede Trans Brasil, na qual atua como presidenta. Sempre com muito entusiasmo e orgulho, ela relata a importância de participar dessa rede nacional que compõem um coletivo de 72 instituições promovendo discussões importantes que tramitam no Supremo Tribunal Federal, no Senado e na Câmara Federal para a luta dos direitos humanos e cidadania plena de travestis, mulheres, homens trans e pessoas de gênero diverso.
— É uma instituição fundada em 2009 e já vai para os seus 13 anos. A rede Trans Brasil é um coletivo plural que se oxigena de representações que vem proporcionando uma boa representatividade, uma boa busca ativa dessa cidadania, dessa luta social pelas pessoas trans para que possam ter cada vez mais essa inserção social no nosso país.
Seu desempenho e comprometimento com a instituição resultaram na apresentação do projeto, que culminou no Decreto Nº8727/16, sobre o uso do nome social para a Câmara Federal, durante o governo de Dilma Rousseff (2014 - 2016), presidente na época. Entre esses e outros momentos da sua vida profissional, Tathiane se orgulha da carreira política que escolheu seguir.
Tathiane não se contentou em ser apenas presidente estudantil do grêmio, ela queria espaços na Câmara de Vereadores e Deputados. Em 2006, ela foi convidada para ser candidata à Deputada Estadual pelo Partido Social Liberal (PSL) e enxergou como uma oportunidade para se iniciar na política. Ela não tinha experiência em eleições e por não ter sido instruída que precisava se desvincular da Astra LGBT, teve a sua candidatura indeferida. Tempos depois descobriu que apenas queriam utilizar da sua imagem, não havia um plano para fazê-la se eleger. Essa “rasteira” deixou Tathiane desacreditada e passou anos sem tentar candidatura novamente.
Tathiane no congresso nacional do PSB
(Imagem: Acervo pessoal)
As eleições só tiveram o prazer de ter Tathiane como candidata novamente em 2020, dessa vez como vereadora pelo Partido Social Brasileiro (PSB). Mesmo não sendo eleita, essa candidatura foi sem contratempos. O PSB a acolheu e lhe deu oportunidade, no qual continua filiada até hoje. Além disso, foi fundadora do núcleo LGBT Socialista no partido do PSB de Sergipe, além de ser a primeira mulher trans diretora da executiva, cargo este que permanece até hoje.
Nessa última eleição, em 2022, Tathiane se candidatou à Deputada Federal pelo PSB, mas não foi eleita. Na reunião da Astra LGBT que acompanhamos, ela se emocionou ao falar sobre as dificuldades que encarou nesta eleição. Com lágrimas nos olhos e sensibilidade, ela disse que mesmo sem os votos necessários conseguiu um bom número, número esses que se assemelhavam aos candidatos que tiveram mais recursos e investimentos disponíveis. Não é uma vitória nas urnas, mas é uma vitória política que dá esperança para os próximos caminhos.
O resultado das eleições presidenciais de 2022 deu a Tathiane esperança para os próximos quatro anos.
O caminho a seguir é de muita luta, mas os projetos para garantir os direitos LGBTQIAPN+ não podem parar. Mas talvez, e só talvez, os próximos anos tragam alguma luz para afastar toda a escuridão que a comunidade e a sociedade enfrentaram.
Uma luz no horizonte chega com um novo governo. Foto: Bruna Mota