Revelando histórias,
desvendando o invisível
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Arte: Mira Marques
SUS: pensado para ser perfeito, gerido para ser destruído
Entenda o que é o SUS e como os setores da vacinação e saúde mental têm sido atacados
Dhenef Andrade, Fernando Matias e Mira Marques
No Brasil, o declínio de investimentos no sistema de saúde pública começou a ficar mais robusto a partir de 2016, no governo de Michel Temer (MDB). PEC da Morte, PEC do Teto e PEC 241 foram termos exaustivamente divulgados na imprensa, à época, e debatidos no campo legislativo, para se referir à Proposta de Emenda à Constituição nº 241. Essa proposta previa um novo regime fiscal de contenção dos gastos públicos em educação, previdência social e saúde, por 20 anos.
O Poder Executivo tentou justificar a emenda em razão da crise econômica da qual o país estava tentando sair, evitando um aumento da dívida pública. Uma medida dura, mas segundo eles, necessária. Mesmo com protestos da população e opiniões contrárias dentro do governo, a PEC foi aprovada e se transformou, então, na Emenda Constitucional nº 95. A partir disso, o desmonte na saúde foi estrategicamente iniciado.
Mais recentemente, o atual governo de Jair Bolsonaro (PL) cortou verbas destinadas à farmácia popular, programa criado em 2004 que firma parcerias com farmácias da rede particular, distribuindo medicamentos de graça ou com 90% de desconto para o tratamento de diabetes, asma e hipertensão, Parkinson e glaucoma.
Segundo informes da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 2019, houve uma redução na oferta de 49 mil leitos de UTI no país. Ainda, nos últimos dois anos, a saúde perdeu quase 30 bilhões de reais em investimentos, período crítico da pandemia do novo coronavírus. No entanto, a redução da dívida pública, como prometido, também não se efetivou: ao contrário, cresceu 16%. Enquanto isso, a maioria da população, que depende do Sistema Único de Saúde (SUS), tenta encontrar uma resposta para a pergunta: quem tem direito à saúde?
Mesmo que beneficiando milhares de brasileiros, as sucessivas gestões do Brasil não colocaram em prática o que o SUS prega em sua origem. Em alguns casos, o direito à saúde é concedido à população, que apresenta alguma resistência para recebê-lo, como por exemplo a vacinação infantil. Basta assistir ao jornal para ver as incontáveis campanhas de conscientização e apelos que as secretarias de saúde têm feito para que os pais vacinem os filhos, contra a poliomielite e outras doenças. Já em outros setores, os brasileiros apresentam uma demanda que é negligenciada pelo governo, como ocorre no setor da saúde mental.
Como chegamos até aqui
Mariana Accioly, 29, foi uma das últimas estudantes a participar do Ciência sem Fronteiras, projeto que, diga-se de passagem, também foi cortado do orçamento governamental e não existe mais. O programa do governo federal foi criado em 2011 e incentivava a pesquisa científica brasileira no exterior, e para isso, os estudantes recebiam bolsas que custeavam a estadia em outro país. Parecia um sonho ir estudar fora sem pagar um real por isso. Hoje, Mariana já é graduada em Design Gráfico, pela Universidade Federal de Sergipe, mas de 2015 a 2016 ela foi morar em Chicago, nos Estados Unidos, e também chegou a morar um período em Nova York.
Mariana conta que a bolsa que recebia do governo brasileiro cobria todos os gastos com a faculdade particular em que estudava, além da alimentação, transporte, material didático e um seguro de saúde. Em todo o tempo que esteve fora, ela não precisou de nenhuma ajuda financeira da família ou de algum auxílio que não viesse do Ciência Sem Fronteiras. Ainda segundo a designer, o programa pensou na saúde como algo inegociável e para ela foi muito importante receber o seguro, um direito tão básico quanto ter um prato de comida e um teto para dormir.
“Eu precisei de atendimento lá, em duas ocasiões. A primeira foi quando eu tive reação à uma vacina que precisei tomar, fiquei com várias erupções e bolhas na pele que doíam bastante. Como não havia tratamento específico, era só tomar remédio e esperar a dor passar. Na segunda ocasião, minha imunidade estava muito baixa e eu tive infecção urinária e candidíase ao mesmo tempo. Eu fiquei desesperada porque foi a primeira vez que passei por isso. Fui em uma clínica que aceitava o meu seguro, mas ainda assim tive que pagar uma taxa por um exame de urina que não estava previsto”, detalha Mariana.
A designer também relatou a história de um colega brasileiro que também estava nos EUA. Na ocasião, o rapaz caiu de uma beliche e quebrou o dente, e como o tratamento odontológico lá é muito caro, ainda sairia mais barato se ele voltasse para o Brasil, fizesse o tratamento e depois voltasse para os estudos. “Uma coisa que se fala muito nos EUA é quando uma pessoa sofre um acidente, entra no hospital para ser cuidado e sai de lá com uma dívida enorme, porque não existe nada equivalente ao SUS lá. É um sistema extremamente falho. A saúde não deveria ser uma coisa que a gente precisasse lutar tanto para ter”, enfatiza Mariana.
Na tipologia internacional, existem três modelos de saúde. O primeiro modelo é o de saúde privada, em que os cidadãos pagam individualmente pelos atendimentos que necessitam, que é utilizado nos Estados Unidos, por exemplo. Mesmo que o preço que se pague, no final das contas, seja a vida de alguém. O segundo modelo é o bismarckiano, adotado em países como Alemanha e Japão, em que os seguros sociais são obrigatórios e financiados por políticas públicas quanto por iniciativa privada, como se fosse um modelo híbrido. Já o modelo beveridgiano, adota a cobertura universal e quem paga todas as contas é o governo, através de impostos. Esse tipo é usado em vários países europeus, como Dinamarca e Noruega, e também foi o modelo que inspirou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Mas não foi do dia para a noite que o sistema público de saúde se constituiu da forma como conhecemos hoje no Brasil. Em 1920, apenas alguns grupos sociais, como ferroviários e trabalhadores marítimos, conseguiam assistência à saúde e outros benefícios como aposentadoria. O restante da população tinha que sobreviver às necessidades de saúde com caridade, com amigos médicos ou casas de acolhimento. Na década seguinte, todos os trabalhadores inseridos no mercado formal tinham direito a fazer consultas e exames gratuitamente. Tudo estava sob a tutela do Ministério da Previdência e Assistência Social, que englobava algumas instituições para a assistência à saúde: o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), criado em 1966, e o Instituto de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), criado em 1974.
Vale ressaltar que, em 1964, o Brasil levou um golpe militar e foi instaurado o regime de ditadura, que durou 21 anos. Segundo Jairnilson Paim, médico, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e militante da reforma sanitária, nesse período, aqueles que estavam no poder tinham interesse em privatizar a saúde o máximo que pudessem. “Quando chega a ditadura, a ênfase passa a ser a compra de serviços no setor privado, ainda que fossem através do Inamps ou do INPS. Em 1975, o governo tentou criar o Sistema Nacional de Saúde, que buscava um diálogo maior entre as instituições da saúde, mas ainda não era um sistema único. Ou melhor, esse 'não-sistema' era insuficiente, descoordenado, mal distribuído, inadequado e ineficaz. Esse era o diagnóstico que se fazia naquela época”, explica Jairnilson.
Com esse argumento, os governantes tentaram justificar a lei de criação de um sistema nacional de saúde, mas que não saiu do papel. De acordo com o pesquisador, não era interessante para os empresários da indústria farmacêutica e hospitalar que as pessoas fossem atendidas de graça. Nesse contexto surge a reforma sanitária, um movimento que questionava o direito e a democratização da saúde e que tinha, dentre os objetivos, a criação do SUS.
A reforma foi pensada por várias cabeças de diferentes grupos sociais: lideranças comunitárias, intelectuais, estudantes, sindicatos e o povo. Todos defendiam e apresentavam a proposta do SUS, e com o tempo, essa proposta conquistou corações e mentes. Já em 1986, a reforma sanitária foi responsável por reunir mais de quatro mil representantes na oitava Conferência Nacional de Saúde, para decidir os rumos que o setor tomaria na nova Constituição, que seria elaborada em 1988. “Superada a ditadura, houve a conferência e os constituintes tiveram o bom senso e a sensibilidade de incorporar na Constituição algo que veio do povo, e não da cabeça de burocratas ou partidos políticos”, enfatiza Jairnilson.
Após este longo processo de redemocratização, o SUS foi implantado e passou a oferecer a todo cidadão brasileiro acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde enquanto um direito constitucional. “O SUS é um conjunto de organizações com o compromisso de prestar serviços à população, a partir de um conceito ampliado de saúde que não é só ausência de doença, é qualidade de vida, recuperação, prevenção e bem estar”, descreve o médico.
O SUS está presente em nossas vidas mesmo quando não estamos precisando de atendimentos, consultas ou procedimentos pessoais. O sistema também é responsável pela vigilância sanitária dos estabelecimentos e indústrias do país, a vacinação e controle de doenças, e ainda, atenção psicossocial de milhares de brasileiros.
Atuação do SUS vai além da prestação de assistência à saúde e abrange eixos paralelos que alcançam determinantes sociais . (Arte: Mira Marques)
Para a implementação dos serviços ofertados, a gestão do SUS é executada de forma integrada pelo Ministério da Saúde e as esferas municipais e estaduais. Segundo dados do ministério, em 2021, o SUS atendia 190 milhões de pessoas, sendo que 80% delas dependiam exclusivamente do sistema. Enquanto esse número aumenta, o investimento no setor no país sofre mais desmontes. A EC 95 é o maior exemplo disso. De acordo com o professor, essa emenda foi uma das medidas pensadas para, aos poucos, transformar o SUS em uma espécie de arremedo, criar as condições necessárias para que vissem o quanto o sistema está supostamente falido.
Trecho da entrevista com Jairnilson Paim, médico, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e militante da reforma sanitária a respeito da má gestão do orçamento público no Brasil.
Segundo Jairnilson, os cortes são lamentáveis e preocupantes, ainda mais porque a população aumentou, envelheceu, tem doenças crônicas e ainda passou pela pandemia do coronavírus e sofre com as sequelas dessa doença até hoje.
Esse foi um dos maiores ataques que se podia imaginar contra o SUS. Desde que essa emenda foi implementada, o SUS perdeu cerca de 40 bilhões de reais no orçamento, um sistema que sempre foi subfinanciado, ou seja, recebe uma quantidade de dinheiro inferior às necessidades que tem. Assim, a política econômica que tem sido desenvolvida nas últimas décadas faz com que o SUS receba um golpe de misericórdia, apenas para não morrer de imediato. A EC 95 deve ser enterrada.
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Jairnilson Paim
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Entendendo a realidade…
São 34 anos desde a criação do SUS e, com o passar das décadas, o Brasil foi tido como um espelho para o mundo quando o assunto é sistema público de saúde. Para entendermos melhor as mudanças trazidas pelo SUS, convidamos o leitor a entrar numa “máquina do tempo”, em que a viagem pode não ser prazerosa, mas servirá como mote para boas reflexões.
Com o SUS, a saúde pública tem sido, há um tempo, assunto em vários debates. A partir dele, pudemos ver intensas campanhas de mobilização e conscientização nacional no enfrentamento de diversas doenças, a exemplo do que aconteceu ainda no século passado com o surto de HIV/Aids. Os métodos adotados pelo Brasil possibilitaram, assim, o controle da doença.
Entretanto, as conquistas nesse segmento se veem ameaçadas quando tentamos entender o que a atual realidade nos diz. O nosso recorte atual não é, nem de longe, positivo. O cenário é assustador: de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), em maio de 2022, a taxa de vacinação infantil atingiu seu pior nível desde 1987 (quando ainda nem havia SUS). Esse contexto traz uma preocupação aos profissionais da saúde.
Em 2022, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) divulgou que o índice de vacinação contra sarampo, varíola e rubéola (Tríplice Viral), no Brasil, caiu de 93,1%, em 2019, para 71,49%, em 2021. Cenário também preocupante acontece com a cobertura vacinal da poliomielite, que em 2019 teve uma adesão de 84,2%, mas em 2021 atingiu apenas 67,7% do público. Ou seja, aproximadamente três em cada 10 crianças não estão imunizadas contra doenças potencialmente fatais ou que deixam sequelas graves. Essa realidade acende um sinal de alerta para o país, pois de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a erradicação ou o controle das doenças só podem ser feitos com uma taxa de vacinação acima de 95%.
Para uma das vacinas mais importantes do Plano Nacional de Imunização, a Bacilo de Calmette e Guérin, mais conhecida como vacina BCG, o recomendado pela OMS é uma cobertura de 90% do público alvo. A BCG previne a tuberculose e suas formas mais graves, como a meningite tuberculosa e a tuberculose miliar.
Essa situação pode não apresentar um impacto instantâneo, mas gradativamente a não vacinação de crianças pode trazer sérios problemas no futuro. É o que explica o médico infectologista e diretor de vigilância da Secretaria Estadual da Saúde, Marco Aurélio Góes.
“As baixas coberturas vacinais trazem o risco da reintrodução de doenças que estavam eliminadas ou de descontrole de doenças que estavam sob controle. Um grande exemplo que tivemos foi o sarampo. A doença já era considerada erradicada pelo Brasil, mas uma taxa de transmissão descontrolada na região Norte do país por pessoas não vacinadas mostrou a importância de uma cobertura vacinal massificada”, destaca.
A pesquisa “As razões da queda na vacinação infantil”, realizada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), traz alguns fatores para melhor entendermos esse “fenômeno”. Um deles é a percepção enganosa dos pais ao acharem que, devido ao fato de as doenças não terem a mesma incidência, os filhos não precisam ser vacinados.
“Quando se via crianças ficando paralíticas ou precisando de ventilação mecânica, a população se sensibilizava muito. Fazer com que essas doenças se tornem raras devido ao alto grau de vacinação e a baixa transmissão traz a sensação de que não precisamos vacinar nossos filhos, uma vez que poucos casos são vistos”, avalia Marco.
O diretor comenta, ainda, que a comunicação é uma aliada imprescindível no combate às doenças. Para que o Brasil pudesse alcançar o sucesso na vacinação anos atrás, foi preciso uma mobilização muito grande feita por meio da mídia. Hoje, os cidadãos têm um leque maior para acessar a informação, ou seja, a conscientização precisa ser feita em todos os canais possíveis a fim de mostrar àquele indivíduo o motivo da necessidade da imunização.
Na opinião do pesquisador da UFBA Jairnilson Paim, há outros fatores que impactam na derrocada da vacinação infantil, como o congelamento de investimentos na saúde. Com isso, medidas que eram importantes, hoje, tornaram-se raridade. “Antigamente, a criança não precisava ser levada ao posto de saúde para ser vacinada contra BCG. Na imensa maioria das vezes, a criança nascia (com a maioria dos partos sendo realizados de forma cesárea) e já recebia a sua dose. Hoje, isso não acontece mais porque falta vacina nos postos. Essa falta acarreta diretamente no resultado”, destaca Jairnilson.
Igualmente decisivo nesse cenário de queda está o movimento anti-vacina e a adesão desse discurso. Vemos o Presidente da República descredibilizar as vacinas em rede nacional e incitar o pensamento de que os imunizantes não são seguros nem necessários.
A baixa adesão vacinal também é uma realidade em Sergipe, das 133.760 crianças esperadas em 2022 para receberem o imunizante, apenas 76.345 compareceram às Unidades de Saúde, representando um percentual de 57,08%, muito aquém dos 95% recomendados pela OMS para erradicar determinada doença.
São muitos os desafios para recuperarmos a vacinação em massa que consagrou o Brasil como país modelo dessa estratégia. A Secretaria Estadual de Sergipe tem implementado campanhas visando a maior adesão dos cidadãos aos imunizantes. Entendendo as diferentes realidades da população, planos estratégicos foram traçados. O drive-in, no qual o indivíduo pode ir até o ponto de imunização, foi muito importante durante o período de vacinação contra covid-19, por exemplo.
Outra estratégia adotada foi o carro da vacina, que passa nas ruas das regiões menos favorecidas para não deixar que aqueles moradores fiquem sem proteção contra as doenças e que a população siga colaborando para o controle das respectivas enfermidades. Mapear como fazer essas campanhas e como conquistar a população novamente é o que fará virarmos o jogo.
Quase um século antes da criação do SUS, em 1904, houve uma das revoltas mais conhecidas no território brasileiro: a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, então capital federal. No entanto, é preciso contextualizar a situação. Já eram muitos os descontentamentos da população com o governo, que se agravaram após a criação de uma lei sugerida por Oswaldo Cruz, na qual tornava obrigatória a exigência de comprovantes vacinais para matrícula em escolas, passaportes, certidões de casamento etc. A população não via com bons olhos a possibilidade de ter sua casa “invadida” para que tomassem uma vacina, gerando debates sobre o poder do Estado sobre os indivíduos.
Os dados do Instituto Oswaldo Cruz apontam que, só em 1904, cerca de 3.500 pessoas morreram na cidade acometidas pela varíola. Hoje, as vacinas estão dispostas e organizadas para os cidadãos brasileiros desde o nascimento, seguindo as diretrizes do Cartão de Vacinação.
Caderneta de Vacinação é um instrumento importante para o acompanhamento da saúde infantil. (Arte: Mira Marques)
Desaprendemos a lidar com a loucura
“Quase estamos voltando às trevas da Idade Média”. Essa é a avaliação de Paim sobre o cenário da saúde mental à nível SUS no país. Pouco depois do Setembro Amarelo, mês dedicado à prevenção ao suicídio e a questões que visam diminuir o tabu sobre o tema, o alerta paralelo vai para o sucateamento do setor no âmbito público e o retorno às claras de práticas que levaram décadas para serem derrubadas seguem em destaque. O estigma do “louco” e o histórico da forma do tratamento deste na prática se baseavam na segregação por meio do enclausuramento aos moldes do sistema prisional, realidade não tão distantes do presente. Entre avanços e mudanças na conduta psicossocial do sujeito com sofrimento mental, o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer.
“O louco não era considerado nem um ser humano. Se você define o ser pelo pensamento racional, cartesiano, você exclui aquele que não se enquadra nesses critérios na própria categoria de humano. Então [o cuidado] surge como uma espécie de inclusão. O louco é sim ser humano cuja razão não está completamente ausente, o que acontece é a alienação dessa razão, que é a primeira definição de doença mental. É preciso restituir, assim, a razão ao louco e para isso é preciso isolá-lo e surge o modelo manicomial", afirma ele ao citar Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, como propagador desse método. "Acreditavam que as paredes dos manicômios eram terapêuticas e isso serviria para cura”, descreve o psicólogo e doutor em Saúde Coletiva Rogério Paes Henriques, também professor da UFS.
Foi em um local como esse que a arte peculiar de Arthur Bispo do Rosário emergiu. Na sua ficha médica constava que era negro, solteiro, alfabetizado, sem parentes, com antecedentes policiais e portador de esquizofrenia paranóide. Ele passou mais de 30 anos como paciente da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, hoje conhecida, entre outros nomes, como Aqueduto da Colônia de Psicopatas, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Atuação do SUS vai além da prestação de assistência à saúde e abrange eixos paralelos que alcançam determinantes sociais . (Arte: Mira Marques)
Esse modelo seguiu vigente até meados do século XX e no Brasil a mudança de aplicação do tratamento começa a partir dos anos 70, com o fim da ditadura militar e com a influência das ideias de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. "Se centrou aqui no Brasil muito em torno do Caps nessa ideia de resgate da cidadania e de inclusão social. A grande questão é que em nome dessa liberdade você vai desospitalizá-los e desinstitucionalizar-los, inserí-los socialmente. Mas aí a inserção social tem um reverso porque é um louco se aproximando dos ideais coletivos, então ele tem que ser um trabalhador, casar, se relacionar. Então acaba também sendo uma medida normativa”.
Desmontes na área mental do SUS são percebidos desde 2015, ainda na gestão de Dilma Rousseff (PT), o que foi continuado no governo de Michel Temer (MDB). A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que estrutura a Saúde Mental brasileira, passou a incluir os hospitais psiquiátricos como centrais na área.
“Ela teve que fazer um acordo com o MDB para poder ter apoio e colocou um psiquiatra para ser ministro da Saúde [Marcelo Castro] que abriu o espaço das políticas de saúde mental para os que tinham interesses privatistas em relação à assistência psiquiátrica. Então as comunidades terapêuticas, as inserções de práticas condenáveis, como eletrochoque, vão sendo retomadas desde então. Com o golpe de 2016, piora; em 2019 piora ainda mais. Inclusive muitas ações de saúde mental deixaram de ser do Ministério da Saúde e passaram a ser do Ministério da Cidadania”, sustenta Paim.
Criada em 2011, a Rede busca criar, diversificar e articular ações, serviços e cuidado para pessoas com sofrimento mental ou com demandas advindas do uso de drogas e/ ou álcool. Permeando por todas os níveis de atenção à Saúde, suas diretrizes incluem o respeito aos direitos humanos, a garantia de autonomia das pessoas, o acesso a serviços de qualidade e o combate ao estigma e ao preconceito, além de dar ênfase ao cuidado de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares. A psicóloga e coordenadora da RAPS em Aracaju, Camila Albuquerque, detalha o funcionamento dos equipamentos ofertados à população.
“Casos leves e moderados que, de maneira geral, não interferem no desenvolvimento da rotina diária, são cuidados utilizando recursos do próprio território da pessoa, ou seja, através das atividades comunitárias, fortalecendo as redes de suporte, nas Unidades Básicas de Saúde e nas Referências em Saúde mental, através do atendimento especializado em psicologia e psiquiatria, com regulação através da avaliação de risco e prioridade realizada pelo Núcleo de Avaliação, Auditoria e Regulação (Nucar). Nas Referências de Saúde Mental é prestado um cuidado específico aos casos moderados de saúde mental que são referenciados por outros serviços de saúde através de encaminhamento médico”.
Eixos de atuação da Rede de Atenção Psicossocial criada em 2011 fornece dispositivos para o acompanhamento e cuidado integral da saúde mental. (Arte: Mira Marques)
Na atual gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) a desestruturação de políticas públicas do setor são ainda mais evidentes, reflexo também dos cortes em sequência do orçamento à Saúde. Em seu primeiro ano de governo, uma das alterações primárias foi a inserção de comunidades terapêuticas (CT) como locais de tratamento e reabilitação aos usuários ou dependentes de drogas. Elas estão embasadas na chamada ‘Nova Lei das Drogas’ e passam, assim, a garantir parte dos recursos da União.
“Hoje a gente se depara com uma sociedade que por um lado vê os usuários de drogas como pecadores que precisam ser convertidos e aí surgem essas comunidades terapêuticas de viés religioso onde eles vão ter que se adequar aos preceitos religiosos e a cura é praticamente a conversão,a salvação pela palavra, pela bíblia e pela abstinência. O tratamento se dá nesse viés religioso. Eles colocam a pessoa para fazer uma opção binária: o vício e a virtude, o bem e o mal, o certo e o errado. É proibido o uso recreativo de drogas porque o que pauta é a lógica da abstinência. Se baseia nesse modelo bem rígido, verticalizado”, enfatiza Henriques.
O repasse de verba para as CT mais que dobrou de um ano para outro, indo de R$ 157 milhões, em 2019, para R$ 300 milhões, em 2020, de acordo com o Ministério da Cidadania. Com mais dinheiro à disposição, essas instituições cresceram exponencialmente no país. Saíram de 2.900 em 2018 para 16.963 estabelecimentos deste tipo em 2022. A expansão foi fomentada também pela formalização das comunidades, certificadas pelo governo federal, em 2021, como entidades que prestam serviço nas áreas de assistência social, de saúde e de educação, preocupando entidades ligadas ao cuidado em saúde mental. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) defendeu entendimento, durante evento com profissionais psicossociais, em agosto deste ano, que além de não realizarem um serviço no âmbito das áreas citadas pelo governo as comunidades terapêuticas, violam o princípio da autonomia, uma das diretrizes do SUS.
Ainda em 2017, um relatório de inspeção de 28 comunidades, realizado pelo CFP, Ministério Público Federal (MPF) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), apontou violações que possuem similaridade com as praticadas por hospitais psiquiátricos aos modes anteriores à Reforma Psiquiátrica. Falta de convivência familiar e comunitária, o uso de trancas nas portas, a existência de quartos de contenção e a imposição de crenças religiosas foram encontradas.
Em março deste ano, a Portaria 596/2022 revogou dispositivos que resultam no corte de dinheiro destinado ao Programa e o Incentivo Financeiro de Custeio Mensal para o Programa de Desinstitucionalização Integrante do Componente Estratégias de Desinstitucionalização da Raps. “Quando Bolsonaro assumiu, há três anos, ele vem acabando, ou tentando acabar, pelo menos, com todos os projetos de atenção que eram democráticos, no sentido de terem sido pensados por várias pessoas de vários campos. É um projeto que não leva em conta a alteridade, a diferença, é a crença em um mundo homogêneo, coeso", afirma Rogério.
Dentre outros exemplos mais recentes da mudança de tratamento da questão mental pelo governo federal, está a publicação de dois editais de chamamento, elaborados pela Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), do Ministério da Cidadania, para a seleção de até 33 propostas de Hospitais Psiquiátricos na modalidade de internação, hospital-dia, ambulatório ou pronto atendimento, interessados em celebrar termo de colaboração. O valor previsto de repasse é da ordem de 10 milhões de reais.
As duas ações da gestão Bolsonaro no setor foram duramente criticadas por entidades ligadas à gestão e fiscalização da saúde, como o Conselho Nacional de Secretário de Saúde (Conass) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Para elas tem-se a “ampliação do financiamento público para hospitais e instituições monovalentes e possivelmente asilares com o chamamento público nº 3/2022 e por outro, testemunhamos a destruição de mais uma política pública via Portaria 596/2022”.
Depois de 32 anos da reforma psiquiátrica, país enfrenta desafios quanto ao cuidado de pessoas em sofrimento mental. (Arte: Mira Marques e Dhenef Andrade)
Enquanto isso, o nível mais básico de acesso à Saúde mental pelo SUS, eixo importante da Raps que engloba as Unidades Básicas de Saúde (UBS), por exemplo, tem perdido ao longo dos anos o protagonismo necessário para a ampliação da oferta do serviço à comunidade. Da mesma forma, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) perdem espaço nos investimentos do governo.
Esses equipamentos, conforme explica Camila, são voltados para casos avaliados e considerados como graves e crônicos, caracterizados por grande sofrimento mental, perda considerável da autonomia e prejuízo do exercício das atividades cotidianas. “Eles terão suas demandas atendidas, prioritariamente nos Caps, substitutivos do modelo asilar existentes nos hospitais psiquiátricos. O Caps é um serviço porta aberta, ou seja, qualquer pessoa que chegue no serviço será acolhida e terá sua demanda avaliada e encaminhada, tanto nos casos de efetiva inserção no serviço quanto nos casos onde a equipe avalia que a pessoa precisa ser cuidado em outro ponto da Rede realizando o encaminhamento qualificado. Lá, são ofertados grupos, oficinas, atendimentos individuais, atividades no território e acompanhamento com equipe multiprofissional”, afirma.
Aracaju dispõe de seis destes dispositivos, dos quais quatro são direcionados a pessoas em sofrimento psíquico devido a transtornos mentais graves e crônicos, sendo um deles voltado ao público infantil e os demais ao público adulto. Os restantes são voltados a pessoas em sofrimento psíquico devido ao uso prejudicial de álcool e/ou outras drogas, chamado de Caps AD. Completam a rede o Hospital São José, com 16 leitos psiquiátricos que abrangem o atendimento de todo o estado, com retaguarda para até 72 horas de permanência. Além disso, há o Projeto de Redução de Danos (PRD), com a equipe de Redutores de Danos, e o Consultório na Rua (CnaR), que conta com equipe multidisciplinar e considerados serviços itinerantes, visto que circulam no território de todo o município ofertando cuidados e educação em saúde.
O salto qualitativo da atenção à Saúde Mental provocado pela Reforma Psiquiátrica, incentivada também pelo movimento sanitarista e aprovada em 2001, vê-se comprometido com o retorno de práticas incoerentes com o cuidado a quem enfrenta sofrimento psíquico. Tanto com o financiamento de hospitais psiquiátricos e CTs quanto com o corte de verba para a desinstitucionalização, que visa sua reintegração social.
A demanda por serviços de saúde oferecidos pelo SUS, reprimida durante os dois anos de emergência sanitária por conta da covid-19, também atinge a saúde mental oferecida aos usuários. A área já era abastecida com menos do que o necessário para a prestação de atendimentos, isso envolve não só a verba para a sustentação do setor, como também a abrangência de profissionais e a permanência destes na Saúde Pública. A pandemia também contribuiu para o aumento da procura por atendimento psicológico.
No primeiro ano da pandemia, a OMS já apontava preocupação de uma epidemia paralela de doenças mentais provocadas, também, pelo desgaste no enfrentamento de uma doença desconhecida e das medidas de isolamento para frear as contaminações e mortes. Grupos de risco para covid-19, como profissionais da saúde e idosos, e os que já possuíam algum transtorno mental, foram listados como mais inclinados a responderem com maior sofrimento à crise. As consequências da pandemia na saúde mental da população mundial resultaram em um aumento de 25% de ansiedade e depressão. Em 2019, 1 bilhão de pessoas conviviam com algum tipo de doença mental.
“Aracaju também sentiu os impactos desse aumento repentino das demandas em saúde mental, principalmente em relação aos casos leves e moderados, certa agravação nos quadros crônicos e um aumento da população em situação de rua, visto que no período pandêmico o município recebeu pessoas de outros estados”, detalha a coordenadora do RAPS de Aracaju.
Com a incidência de casos, os 194 países-membros da OMS, incluindo o Brasil, assinaram um plano de reforma da atenção e cuidado à saúde mental. O documento, formalizado em 2013 e renovado até 2030, foca em três vertentes: aumento de investimentos no setor; ação intersetorial, dado o contexto amplo que envolve a questão mental; e o reforço à atenção por meio de dispositivos diferentes e distantes de cuidados oferecidos por hospitais psiquiátricos. As recentes práticas adotadas no âmbito federal, nos últimos anos, afastam todas as linhas defendidas pela OMS.
Embora possua fragilidades estruturais e de investimento, em comparação com países desenvolvidos, o Brasil ainda é visto como referência. Nos Estados Unidos, por exemplo, a jornalista Alisa Roth, de XX anos, e autora do livro “Insano: O Tratamento Criminal Americano às Doenças Mentais”, em livre tradução, explica que o país é frágil em lidar com esse extrato vulnerável da população. A abordagem nesses casos recai para o sistema penal. De acordo com a Associação Americana de Psicologia, em 2020, dos cerca de 2,3 milhões de encarcerados, 37% deles possuem algum histórico de doença mental.
Rogério, que também coordenou o programa de Residência em Saúde Mental do HU-UFS, avalia que a manutenção desse entendimento pode levar a um retorno ao panorama visto durante a Ditadura, mais especificamente durante a vigência do Ato Institucional 5 (AI-5). "Houve um aumento de internações de mais de 300% entre 1973 e 1976, onde o AI-5 vigorava, mas sem a potência anterior, com um início de abertura política feita com base na internação massiva de pessoas, porque até então se prendia, com uso do poder de polícia. A longo prazo isso [atuais medidas] pode levar a essa volta do aumento das internações, das Comunidades Terapêuticas, aumento da contratação de leitos públicos em hospitais privados e a gente desaprendendo a lidar com a loucura".