Revelando histórias,
desvendando o invisível
“Se não for eu, então quem?”:
as responsabilidades de uma jovem adulta
As mudanças que chegam, enquanto assumimos protagonismo em nossa história, assustam. Para Bruna Correia, tornar-se adulta foi uma escolha da qual não podia fugir.
Por Dhenef Andrade, Felipe Rocha e Fernando Matias
18h40. Terça-feira. Somos surpreendidos com o giro da maçaneta, enquanto repassamos os detalhes da entrevista no corredor. Bruna, que com certeza escutou os murmúrios por trás da porta, recebe-nos com sorriso no rosto e pés descalços, ainda vestida com as roupas do longo dia. Enquanto entramos enfileirados no apartamento 801, ela faz questão de se apresentar com um abraço para cada um de nós. Aos nossos pés, com o rabo agitado pelos novos visitantes, Malu, uma shih-tzu de pelos caramelos e laço vermelho no topo da cabeça. Mais ao fundo, Theo, um siamês que prefere avaliar de longe antes de se aproximar.
Alguns minutos antes, o apartamento estava em silêncio e os animais, sozinhos. Bruna Correia, estudante de direito, estivera fora de casa desde às 6h. Conciliando trabalho e graduação, a vida de Bruna não parecia se distanciar da vida de tantos outros jovens de 21 anos. Ao menos essa era a primeira camada do profundo solo em que estávamos prestes a caminhar.
Ainda na sala, ela posiciona uma cadeira em frente ao sofá e se senta de lado. A configuração que se forma faz lembrar uma reunião no meio da semana entre amigos de longa data que revezam atualizações sobre suas vidas. Nesse caso, Bruna é a única a relatar. E o faz sem amarras, durante duas horas, com a segurança — e vulnerabilidade — de alguém que não necessariamente estruturou um monólogo prévio, mas que aprendeu a se conhecer.
Conforme escutamos, as paredes do apartamento parecem se movimentar em uma contradição. Ao mesmo tempo em que se afastam, permitindo um espaço que somente a solidão poderia preencher, também se comprimem, em uma sensação claustrofóbica de responsabilidades. Dois sentimentos que Bruna conhece bem.
Nascida em Salvador, viveu lá até completar dois anos de idade, momento em que veio para Aracaju. O pai não faz parte da cena desde o nascimento dela, dor que Bruna considera a primeira da sua vida. “Na verdade o meu pai foi muito mais pai da minha irmã, que não é filha dele, do que o meu. Mas, ao mesmo tempo, como eu nunca tive essa presença, também não era algo que me fazia falta. Foi uma questão durante muitos anos para mim. Eu pensava que nunca conseguiria perdoá-lo, mas eu já o perdoei”.
Criar as filhas sozinha foi um desafio que Cristina, sua mãe, precisou administrar. Com grande parte da família ainda em Salvador, ela encontrou apoio na própria mãe e em uma de suas seis irmãs. A casa da tia, então, foi o cenário da infância de Bruna.
É nesse momento em que o primeiro peso, ainda que leve, inofensivo, foi colocado sobre seus ombros. Lucas, seu primo, compartilhou da mesma criação. Ou quase isso. A idade os aproximou: estudavam na mesma escola, brincavam as mesmas brincadeiras. As obrigações, no entanto, os distanciavam de forma nítida. Por ser mulher, ela reconhece que possuía expectativas diferentes das que eram esperadas de Lucas pela família. Para ela, a autonomia e a responsabilidade vinham intercambiáveis, mescladas entre si.
Apesar da mesma idade, Bruna sentia que precisava andar com o primo sob sua asa. “Eu sou muito extrovertida e minha família notava essa característica. Por conta disso, sempre esperavam que eu cuidasse dele, porque ele era muito tímido. Na escola sempre precisei agir como se fosse a mãe dele”. Ela relembra que perdeu a conta de quantas brigas precisou comprar por ele, com colegas de turma e professores. No sexto ano do ensino fundamental, Bruna trocou de escola e os primos se afastaram.
Gil, mãe de Lucas, teve complicações graves de Covid-19 e, infelizmente, faleceu no ano passado. Em meio ao luto, a atenção para o jovem se atenuou. Mesma idade, mesma criação, mas pessoas completamente diferentes: Lucas não estava acostumado às ordinariedades de um adulto. Circunstância que, dessa vez, não dizia respeito a Bruna.
Após a apuração oficial, marcada pelo stop no gravador, a conversa continua na varanda do apartamento.
Foto: Felipe Rocha
“A família que a gente não escolhe”
Ela, a mãe e a irmã passaram cinco anos vivendo na casa da tia, até que uma mudança se tornou inevitável. A relação com o marido da tia não era saudável e a sensação de lar era tênue. Desconfortáveis física e emocionalmente, elas se mudaram para o apartamento em que Bruna nos recebe hoje. Cristina era funcionária da prefeitura e recebia o salário duas vezes no ano. Mais um item à lista de epifanias que Bruna adquiriu com a maturidade: como a mãe conseguia manter a casa, duas filhas e a si mesma?
Durante anos, a casa possuía o mais básico de móveis e mobília, suficientes para o mínimo de conforto e sobrevivência.
Ela relembra de ser a única a não ter os livros didáticos, em uma sala de uma escola particular. Recusar convites para programas pré-adolescentes, como tomar sorvete ou passear no shopping, era comum sob a desculpa de que a mãe não a deixaria sair. A realidade era que Bruna não queria sentir que era um fardo para quem já tanto se sacrificava por ela e pela irmã. Ela sabia que, se pedisse R$ 5 e isso fosse tudo que a mãe tinha, ela daria.
Uma promessa de melhora deu vislumbre quando um telegrama chegou à porta. Cristina tinha sido convocada para assumir um cargo na Petrobras, dois anos depois de ter prestado concurso. Com os benefícios do novo trabalho, a prioridade foi trazer a sensação que faltou durante todos aqueles anos na casa da irmã. Os caixotes deram lugar a móveis e as paredes foram recebendo adereços, todos refletindo o sentimento de aconchego que elas buscavam. Busca que, no entanto, nem sempre se concretizou.
Na direita, o armário onde Bruna mantém as compras para adornar sua própria — futura — casa. Um gesto de autocuidado, segundo ela. Foto: Felipe Rocha
A autonomia dada a Bruna permitiu que ela desenvolvesse uma armadura para enfrentar as lutas que seriam entregues a ela, mas ao mesmo tempo imputou mais uma responsabilidade: o medo de decepcionar. Houve uma época em que ela e a irmã desconfiavam que Cristina possuísse mania com limpeza, ou que estivesse até mesmo apresentando sintomas de um transtorno obsessivo-compulsivo.
Discrepando completamente da pessoa que é hoje, Cristina tinha episódios de raiva caso chegasse em casa e encontrasse qualquer louça na pia, qualquer migalha no chão. A solução seria cíclica. Bruna teve que, mais uma vez, assumir uma responsabilidade para que o mínimo de estabilidade pudesse ser alcançado. Se algo incomodava sua mãe, então ela se assegurava de que isso nunca mais acontecesse. “Tudo na minha vida é ‘evitar que a minha mãe…’. Evitar que a minha mãe fique chateada comigo. Evitar que minha mãe fique estressada com alguma coisa”, conta em meio a um riso trágico-cômico.
Ela faz uma pausa. Marca categórica de um novo capítulo sendo aberto. Era o começo de uma crise que atingiria a relação de Bruna com a irmã. Sete anos separam suas idades, tempo suficiente para que suas fases de vida nunca coincidissem. Enquanto Bruna aprendia a caminhar, a irmã brincava de bonecas. Enquanto Bruna brincava de bonecas, a irmã saía com as amigas. Enquanto Bruna tentava compartilhar qualquer aleatoriedade do seu breve dia, a irmã estava ocupada dando atenção à adolescência. Uma distância além dos sete anos foi sendo criada entre elas, mas a irmandade prevalecia. Nunca deixariam de ser irmãs uma da outra.
Respectivamente, “você consegue” e “eu não sou meus erros”.
Conselhos marcados na pele, que Bruna repete a si mesma. Foto: Felipe Rocha
Com as novas obrigações de manter a casa sob controle, a apatia da irmã começou a incomodar, que demonstrava indiferença em relação ao lar e a si mesma. Ela passou por dois relacionamentos que transbordaram, atingindo a família inteira, marcados por intensa dependência emocional. E cada vez que agia assim, irritava Cristina como se jogasse um balde de terra suja no chão da sala. Bruna já havia sentido a responsabilidade por alguém de mesma idade, agora se sentia responsável por alguém sete anos mais velha.
“Eu não sou minha prioridade”
Visitamos a casa de Bruna três vezes. A história que escutamos nesta primeira visita é reverberada sempre que passamos pela porta. Todos os detalhes ficam cada vez mais densos, até assumirem a forma física da pessoa que vemos em nossa frente. Entendendo sua intensidade, seus maneirismos e seus pensamentos, é como se estivéssemos nos conhecendo novamente.
No início de 2020, um mês antes da pandemia ser declarada, a unidade em que Cristina trabalhava fechou e a notícia chegou acompanhada de uma certeza devastadora. Tia Cris, apelido oficial dado pelos amigos mais próximos, teria que se mudar para 1.360 km longe das filhas. Com a mudança da mãe, a sensação de lar se esvaiu até se tornar inexistente. Em meio às novas brigas pelos antigos motivos, Bruna viu a irmã sair de casa. Agora eram ela, Malu, Theo e o silêncio.
Todos os dias, são eles quem estão lá por ela. Chegando em casa, a energia é suficiente apenas para que ela deite no chão, no aguardo de alguma tranquilidade.
Foto: Felipe Rocha
O horizonte ficava cada vez mais borrado. Com as perspectivas pouco claras e os ombros pesados, Bruna canalizou a energia para o estágio que tinha na época. “Todo mundo tem sua válvula de escape. Tem gente que treina, que tem algum hobby. Eu trabalhava”.
Como se o trabalho fosse um parente seu, ela o tornou uma responsabilidade, que também não poderia ser contrariado. Ela lembra de ter passado horas além das que eram a obrigação, sem que restasse tempo para as primeiras aulas ou para o almoço. Acostumada a abraçar situações de outras pessoas, Bruna nunca olhou muito para si mesma.
“Eu setorizo minha vida em áreas. Tem a área do trabalho, da família, dos amigos, do relacionamento. Quando umas estão indo melhor, as outras vão por água abaixo. E minha luta é sempre tentar equilibrar essas áreas, pelo menos. Mas a área que sou eu comigo mesma vai ficando pra trás”.
Apesar das perdas no caminho, ela não se sente sozinha. Nem se permite sentir. Encontrou nos amigos uma outra configuração de família -, a “família que a gente escolhe”, ela nomeia. Quando perguntadas, Laura e Nathalia, amigas próximas, afirmam que Bruna é a pessoa com quem mais podem contar: arranja uma maneira de adicionar horas ao dia e estar presente a qualquer momento. E ela não sente que isso seja um fardo. Na realidade, são os amigos que a fazem conseguir suportar os fardos que carrega.
No último mês, a energia depositada no trabalho ricocheteou. Foi efetivada para o cargo de assessora na Procuradoria Geral do Estado. A realização profissional que fez, mesmo que por um momento, as outras áreas pesarem um pouco menos. Sem a mãe por perto para dar um abraço orgulhoso, recebeu do chefe as palavras que a fizeram se sentir envolvida por um. “Extremamente dedicada, sempre superou as expectativas para uma estagiária. Dedica 100% de si no trabalho, com muita responsabilidade. Posso confiar de olhos fechados”, revela Gabriel Villar, procurador com quem ela trabalha.
"Eu sempre me achei burra, mas quando eu tive que lidar com isso tudo e ainda me saí bem em provas e no trabalho, eu dei um tapinha em minhas costas e senti que tinha escolhido o caminho certo”. Foto: Felipe Rocha
E chegamos no ponto em que estamos agora. Designada a cuidar do trabalho, da faculdade, da própria casa, da casa da avó — que tem em Bruna o apoio mais próximo de alguém da família —, e de todos os outros, ela segue aprendendo a lidar com o passado, o presente e o futuro.
“Mesmo não parecendo uma escolha, pra mim teve que ser. A gente não escolhe quando vai estar triste, mas eu tive que escolher. Senão eu fico aqui depressiva, com um monte de gente precisando de mim, e eu chorando. Não era uma opção”.
Se há algum nervosismo, disfarça bem. Pensamentos seguem um fluxo natural.
Foto: Felipe Rocha